Breve Diário de uma Pandemia

Visitei o meu tio morto no Brasil, fazia mais de 20 anos que não o via,

Tive febre, estive duas semanas fechado em casa ao regressar,

Enfiaram-me um cotonete até ao cérebro e disseram que negativo,

Tive medo, não por mim, mas por quem me está longe e me é,

Os meus dias foram entre o hospital e casa e poucas visitas

Ao supermercado quando o frigorífico tinha fome e eu sede,

Tive medo, de não regressar só a casa, medo que mais uma máscara

Não fosse suficiente, cansei-me de ler o medo dos outros,

As estatísticas exclusivas e as demasiado inclusivas,

Estive mais duas semanas em casa, ao ponto de parecer uma prisão,

Desta vez não tive febre, nem mais um cotonete no nariz,

Fiz trinta e cinco anos e poucos dias depois morreu a minha avó,

Com quase noventa e cinco, mas foi apenas uma pneumonia normal,

Depois regressei ao hospital, o que matava continuava a matar,

Bebi, bebi mais do que nunca, sem medo, porque na verdade

Da vida não se leva nada, porque a vida não é nada, isso vê-se quando

Puxamos as pálpebras a um corpo ainda quente,

Tive medo, mais medo do que normalmente tenho,

A incerteza, que julguei tão minha, agora universal,

E tanto palhaço, tanto especialista do palpite, nunca vi,

Sabe-se muito pouco de quase nadas, mesmo assim, nunca vi tantas certezas

Nos lábios dos idiotas do costume, tive medo e tenho medo,

Não sei quando voltarei a dar um abraço sem medo à minha mãe,

Ao meu pai que apesar de duro, sei que é frágil como qualquer vida,

Fui falange, mas o meu medo maior foi dos grandes vírus,

Esses loiros idiotas que com o seu poder ignorante mandam no mundo.

Turku

04.06.2020