Sanduíche

Na cesta
de piquenique
agora aberta, entre

duas fatias de pão

uma faca
reluz ao sol

Você
analisa as fatias
de pão

Você
sente o cheiro
do trigo

Você
imagina o gosto
da faca

Daí você morde

Uma nesga de sangue
Um bocado de grama

As lagartas que rastejam
sobre as suas unhas

são ainda mais bonitas

porque rastejam
sobre as suas unhas

E nos sentimos
como Warren Beatty
e Natalie Wood
naquele filme

de 1961

cujo título original
também fala de grama

e de esplendor
e de juventude

Se um banhista
for morto

atrás desta árvore

que nos faz
sombra e companhia

mesmo assim
ficará tudo bem

porque somos
como Warren Wood
e Natalie Beatty
naquele outro filme

em que não morre
ninguém.

[o cansaço alonga-se]

o cansaço alonga-se
nas ruas da cidade
exilada

sem rios para desaguar
a dor
roça as paredes das casas
e espraia-se nos bancos
dos jardins

não há notícia das chuvas
nem dos bandos de corpos
que mastigavam a sede

sobrevivem

meia dúzia de janelas
indefesas
e os acenos da memória

o último habitante feriu-se
quando tentou escalar
os dias

SAGA – Haikus Islandeses

IMG_2554.JPG

Em direção ao céu

os degraus

imitando um vulcão.

 

Contra o horizonte branco

dançam timidamente

as flores coloridas.

 

Envolvendo dentes-de-leão

uma renda –

longe a minha mãe.

 

Nesses mesmos seios

a saliva

de outro.

 

Sobre as ondas solidificadas

cresce o musgo –

dragões adormecidos.

 

“Não passarás”

disse o mar –

tornou-se ilha.

 

Agulhas caindo

numa lata de bolachas

vazia.

 

Alma lavada

com as entranhas

da terra.

 

Gotas caindo

na lagoa quente –

música de felicidade.

 

De barriga vazia

cheio de cansaço

e felicidade.

 

Mergulhando sob o azul

alguém toca piano

no meu esqueleto.

 

O musgo

cobre de suavidade

a violência arrefecida.

 

Ouço a guitarra

de Mike Oldfield –

chuva na Islândia.

 

Como estrelas cadentes

as gotas de chuva

percorrendo a janela.

 

Com os anos

tornei-me capaz

de ver apenas.

 

No azul quente

dos teus olhos

aqueço a alma.

 

No pêlo molhado

da égua

a marca da sela.

 

O poeta era leve

Saga

nem se cansou.

 

No pêlo do cavalo

Cai a chuva miúda –

verão islandês.

 

O que deus

deixou por acabar

o mais belo.

 

Nas arestas verdes

pastam

as ovelhas.

 

Caindo do infinito

mergulha a água

na terra.

 

Ainda não tiveram

tempo os riachos

de esculpir a terra.

 

Sobre verdes campos

os fardos

já esperam o Inverno.

 

Alguém regressa a casa

chove

amanhã amanhecerá.

 

É a chuva que cai

ou é apenas o mundo

a ser?

 

Pés molhados

copo de Brennivín

espera.

 

Depois de tantos anos

que pressa levam

as águas dos glaciares?

 

Contra os vidros

a chuva

acaricia-me o cansaço.

 

Ante que o verde branco

as ovelhas continuam

a pastar.

 

Não ouvir nada

além do vento –

que sorte a minha!

 

Em frente à cascata

três cavalos

contemplam a erva.

 

Do alto da montanha

vejo o mar

fecho os olhos vejo tudo.

 

Em cima da fraga

escutar atentamente

o silêncio.

 

Atirar calhaus

monte abaixo

e ver onde param.

 

Que fúrias divinas

terão esculpido

tais montanhas?

 

A pequena igreja

sobre a obra

de deuses antigos.

 

O templo maior é aquele

onde a chuva cai

livremente.

 

Depois de uma longa caminhada

os três cavalos

continuam no mesmo lugar.

 

Gotas de água

numa teia

esperam o Sol.

 

Abri o frasco

de tubarão fermentado

logo me arrependi.

 

Lá fora o vento

canta algo

que só compreendo dentro.

 

As luzes dos carros

passam

levando as vidas.

 

Inspirar fundo

o azul primitivo

da noite nórdica.

 

As nuvens afastam-se

e o verde

ilumina-se.

 

Milhares de anos

azul cortando

o verde.

 

Quase chegaram

a terra

os trolls de Reynisfjara.

 

Depois de tecer

a teia

a aranha espera.

 

A traça não compreende

a natureza

do vidro.

 

Vinho italiano

trutas islandesas

saudade portuguesa.

 

Até no paraíso o português

terá saudades

do seu buraco.

 

Nos montes o verde

escurece

na garrafa aclara.

 

Que pedem as vacas

que mugem

na escuridão?

 

À entrada da porta

o gato cinzento

despede-se dos viajantes.

 

O açúcar na chávena

arrefece –

chove no porto.

 

Más notícias

vêm de longe –

chove no porto.

 

Inalo o fumo

A chuva cai

Os carros passam.

 

Escrevo

porque os mortos

me visitam.

 

Islândia, Agosto de 2020

"Olhem bem como poisou a tinta"

Olhem bem como poisou a tinta
Saturno é senão a vítima castigada por um
génio pior que aquele que por ele espalha
o motivo do nosso horror precipitado

É verdade que os seus filhos
não podendo sequer sufocar o
primeiro choro escorrem-lhe já
desbordados pela beiça apavorada
mas a sorte é principal nesse sangue
juvenil e primordial sangue de onde
pende a cabeça miúda decepada
sangue vertendo finamente até aos
cavados feitos pelo gigante na carne
alva terna e maculada de inocência

Saturno curva-se ante uma pena eterna
o crime escorregadio da moral e do poder
cometido pelos homens todos do mundo
será justa a absolvição para um infanticídio
perdão para a fatalidade absoluta?

Olhando para o meneio do olhar lutuoso
salgando a carne húmida com as lágrimas
ferventes fala-nos do caos da tormenta
feita em seu rosto e esgota-se a divindade
nessa poluída fabulação de virtude

Vai sem castigo porque tu és só a pequenez
semeada nos homens e inevitavelmente
Júpiter dará a sua volta professa no céu infinito
vindo salvar essa tua tirania da já seca imortalidade

A educação na serra

I will not play at tug o' war.
I'd rather play at hug o' war,
Where everyone hugs
Instead of tugs,
Where everyone giggles
And rolls on the rug.
Where everyone kisses.
And everyone grins.
And everyone cuddles.
And everyone wins. 

Shel Silverstein

 

 Antes de chegar à casa
para assistir ao leve tremor das araucárias
descubro que a edificação fora projetada por Lúcio Costa
em algum momento perdido do século passado
e que, há poucos anos, o grupo católico ultraconservador Arautos do Evangelho
decidiu, mesmo sob protestos de moradores locais, erigir uma igreja
ao estilo gótico no frágil coração do bairro
Também descubro que parentes do dono da casa
um imigrante belga que desembarcara na Normandia
para lutar contra os nazistas
ajuizaram ação popular com o objetivo de interromper as obras da igreja
ou de, subsidiariamente, compelir o grupo católico ultraconservador Arautos do Evangelho
a implementar uma série de obrigações: a construção de estacionamento próprio
para os frequentadores, o isolamento acústico do templo, a adequação
da infraestrutura do prédio à rede de água e esgoto da cidade
etc., etc., etc.
Descubro, ainda, que o dono da casa – hoje quase centenário – casara-se
com uma imigrante americana, de família espanhola, após tê-la conhecido
em um evento da empresa de abrasivos em que ambos trabalhavam
Na época do encontro, ainda não existiam nem a casa, nem a igreja
tampouco L., o neto mais bonito do casal de imigrantes
que aparece, ainda criança, em algumas das diversas fotografias
espalhadas pelos cômodos do lugar, fotografias que aprenderam
a conviver com a farra das traças, com o cheiro da madeira
castigada pela umidade, com os risos que se ouvem
do lado de fora dos porta-retratos
O verão não grita sobre estes pinheiros, recém-plantados
para ocultar a efígie austera da igreja
que o grupo católico ultraconservador Arautos do Evangelho
mandou erguer nas imediações
As noites também preferem ser compridas
a emitir qualquer barulho que atrapalhe os vagalumes
ou as lagartixas à espreita dos vagalumes
Na rede branca estendida entre duas décadas, Ana P. me lembra Silvina Ocampo
ao brincar de esconder o rosto dos meus olhares, que, mesmo depois
de todo esse tempo, não cansam de cruzar-lhe as poses e as caretas
como a rios tímidos
Então, abandona a rede, joga-se na poltrona e espera a próxima chuva
enquanto J. costura, desmancha e torna a costurar
o sudário de sonhos que vaza dos seus desenhos inacabados
Não se fazem repúblicas sem novos desejos
e foi por isso – e não por causa da insolação – que P. ardeu em febre
dias depois de escutar um poema de João Cabral de Melo Neto
pela primeira vez na vida
Ana C. diz chorar sempre que lê O cão sem plumas
e se depara com aquelas imagens, insistentes feito prendas trágicas
A Ana C. de que falo nunca traduziu Katherine Mansfield
e segue tão viva quanto as esperanças de X., para quem o mundo
continua sendo capaz de fazer charme, apesar de tudo
Não quero ser obrigado a discorrer sobre revisionismo histórico
negacionismo climático ou crises constitucionais
Quero, isto sim, dizer que Clara também carrega, ao menos em parte, o nome
da mulher que amo
E. nos conta da sua infância em Miguel Pereira e de como o seu pai
é loucamente apaixonado pela música Nikita, cantada por Elton John
Com a câmera do seu celular, E. registra todas as nossas horas de distração no quintal
Ao fundo da tela, pode-se ver a arquitetura da igreja
Os pinheiros recém-plantados ainda são pequenos demais
para que se devolva à casa a sua velha paisagem.