Terezín

Terezín,
onde um lugar vivo assombra as nossas mãos mortas

 

 

Em Terezín toda a merenda
sabe ao vazio que a memória vigia.
Avançamos sobre as salas e os corredores
frios, e dar a mão aos amigos cumpre a inutilidade
de enroscar as torneiras em fila
esperando água,
receber a imagem recuperada,
pela metade, dos homens que por ali resistiam. 

Imagino o que será
beber água nos campos de trabalho,
ou nos de concentração: a terminologia da violência soa mais-que-perversa,
cultiva-nos um pouco por todos os atentados. Urge-nos.
Como se houvesse distinção quando a sede já não é a forma elementar imperativa
da força humana.
Por baixo de um drama subjaz outra e outra amputação.
Um crente andrajoso, arrastando-se na mão de deus. 

A água embutida no sal conservava a garganta carcomida.
Baratas estariam de acordo: rápido, indolor,
mais do que a água
jorrante de mentira. 

Talvez aqueles homens que vergavam a cabeça para
que lhes pingassem na boca uns quantos pingos
escassos
de água
procurassem a morte pela fenda,
a vitamina fatal dos inocentes. 

A água mata em Terezín, a água mata quando não
mata a sede. 

Se não acreditam que mesmo os mais malévolos
eram, prisioneiros dos campos nazi, a mais pura das formas
minguando,
convido-vos a sair desta casa,
e a bater à porta de alguém para quem a água
ruma sempre a uma forma de vida. 

Em Terezín, fevereiro de 2016,
engasguei de não haver secura bastante para limpar
a história húmida calada dos tijolos bem alinhados,
serpente sem tempo, roendo-nos os pés acolchoados. 

Chegámos a uma vala,
“aqui fuzilavam os prisioneiros”.
Mas não era um campo de morte,
mas não era um campo de concentração.
Eram só uns tiros,
e a água que matava jamais a sede. 

De volta a Praga, no autocarro,
pude detestar o homem checo
que grunhia — achou que não merecêssemos a língua dos homens,
achou-nos dentro demais do nosso fora bárbaro,
e retumbantes no valor de um bilhete de volta.
Talvez tenha entrevisto uma fraqueza na discórdia,
um golpe de estado na melodia estranha.
Comentei isso com os meus colegas.
Falámos.
Matámos alguma sede.
Procurámos respostas e
conseguimos alguma coisa que fez a duração da paz. 

Chegados ao nosso destino,
de volta ao nosso quarto de hotel,
disse que amava quem amava,
e soube que não havia nada mais frágil que essa liberdade
de dizer “odeio-te” para dizer “amo-te”,
compreendendo, ou não, o que a nós
nos não querem jamais confirmar. 

Hoje deixo que Terezín cresça na ponta dos dedos.
Lembro-a crepuscular quando uso o corpo
para acenar ao trilho escolhido.
Penso, sobretudo, que não há máximas na estrada,
apenas vontades antigas.
Que só persiste a liberdade
— ela não é, ela está na corda bamba das mãos bambas —
quando aprendermos que nada há a confirmar.
Que a memória é a velocidade mais ou menos acidental
de um automóvel sem travões.
É na viagem que escrevemos,
em cada paisagem esquecida, 

o torso quebrado que nos calha que nos perscruta que nos obriga
a ter sede.

Perfil de Maria Brás Ferreira aqui.

Depois das Cinco

Chegar a casa e merendar, leite achocolatado, uma sandes de fiambre e queijo,

Não havia intolerâncias, o sol punha-se na janela, lentamente, a eternidade

Além das cortinas que a mãe tricotou, ouviam-se os garotos que esperavam

Os autocarros que os levariam às respectivas aldeias, que mais tarde se acendiam

Nos montes do horizonte escuro, amanhã seria um dia certo, custava a geada,

As primeiras horas de casaco e luvas, mas havia sol nos intervalos,

Estávamos inteiros, ainda longe de nos tornarmos nos homens

Que o destino faria de nós, a geada onde o Sol não chegava, permanecia

Por várias semanas, esperando a primavera, que chegaria sempre,

Mais um dia acabava, caminhava-se para casa antes de cair uma nova geada,

Um subia pelo adro, outro descia pela rua até ao fim do bairro,

Até amanhã, certos como a vida, o sangue jovem e imortal que tínhamos,

Sem imaginar primaveras impossíveis, que não chegariam a todos,

Sem pensar em cemitérios onde erva nova crescerá, porque sempre cresceu.

 

Turku

 

22.01.2021

[O sol crepita no zinco do barracão]

O sol crepita no zinco do barracão.
Os cães espumam encarniçados.
Um vespeiro zumbe na sombra.
Uma foice pende de um prego –

o cabo está rachado,
e a lâmina, romba,
funde-se sob o verdete.
Ulcerado também o prego.

Os ratos urinam pelos cantos.
As batatas apodrecem nas sacas.
O bafio emana das arcas.
Os morcegos oscilam nas vigas.

Decénios de pó acumulado
no chão de terra batida.
Aranhas que disputam as moscas
às osgas e aos morcegos.

Uma brisa salobra desliza
pela frincha do portão,
riçando bolores que foram frutos:
nêsperas, ameixas, pêras, limões.

Ao fundo, no alguidar reluzente,
boia afogada uma ninhada de gatos.
A mãe, ainda jovem, enrodilhada
nos pés da dona, mia, esfaimada.

Seltzer

 

1.

Aqui está o meu quarto, sorrindo como uma floresta

de umbigos                       contudo, em segredo

                                                               tão triste e imundo.

 

2.

respira fundo o suficiente e estamos possessos.

respira novamente e estaremos perdidos.

 

3.

a melhor coisa de hoje

é a ideia do amanhã.

                               faremos um piquenique.

 

4. quem pode argumentar com 6000 andorinhas

voando de uma nuvem única,

                                                               como alegria.

 

5. quando morrermos poderemos ver a Virgem Maria

sentada diante do pai, do filho, e do Espírito Santo

 

agora mesmo contento-me contigo

com o teu soutien desapertado     (sob uma árvore)

no ferryboat da Staten Island.

 

Jim Carroll

Encomenda

Hoje fui aos correios buscar uma encomenda vinda de Portugal,

Uma caixa de papelão, castanha, enviada há quase um mês,

Em pandemias tudo parece mover-se a passo de caracol,

Falta a baba com tanto açaime no focinho, mal se respira com medo,

Na caixa um frasco revestido com o carinho rendado de minha mãe,

Dentro orégãos, daí talvez o atraso, além do medo a desconfiança,

Três ou quatro postas de bacalhau que regressam à Escandinávia,

Para me ajudarem a passar um Natal solitário e um saco de plástico

Com castanhas, contudo, no nó do saco, dois cabelos longos,

Um castanho e outro prateado, de minha mãe, sorrio finalmente

Com tal inesperada visita, pego nos cabelos e guardo-os no livro querido

De um conterrâneo, há tesouros mais importantes no acaso,

Pode parecer pouco, mas hoje, depois de muito tempo, toquei a minha mãe.

 

04.12.2020

 

Turku