Se tens noite

Se tens noite   confunde-a com o teu rosto

e deixa que o sereno retire das entranhas

da terra um pequeno ruído   uma haste

em que se erga um pequeno vulcão definitivo

um testamento ao fim dos dias   se tens noite

guarda-a devagar na minha garganta

suspira-a como se o transtorno que te causa

a unidade das coisas não te afectasse

como se fosses indiferente à pressa do consolo

ao amparo dos tristes   à comunhão dos séculos

se tens noite   meu amor   meu acalanto

se tens noite   não a deixes de cuspir

como quem naufraga   como quem espera o caos

que sempre se forma em quem sente as coisas

e se deixa seduzir e se deixa levar até entender

como somos areia repetida na mesma engrenagem

que espera a revolução dos outros para dormir

uma nobre sesta à eternidade dos Titãs

e se tens noite   meu bem   não te esqueças

de a atirar à roda   e à pólvora   e a todos

os rudimentos que fizeram de nós tribos sem tribo

planetas sem aves   estertores sem ruído

se tens noite   põe-na devagar na minha mão

que seja a primeira a dizer que a teve

como quem segurou um livro   se tens noite

se tens noite   que digo eu   estou farto

estou condicionado ao mesmo arbusto

às mesmas pinhas que tinham pequenas

reentrâncias de onde saíam sementes que nunca

eram pinhões   lembras-te?   como as púnhamos

na boca e tinham asas e nada daquilo

era o que nos prometeram   e quando era noite

aprendíamos a distinguir pinheiro bravo

de pinheiro manso   e claro   como podia eu

criança como tu   saber que os pinheiros lutavam

e que uns herdariam o reino dos céus enquanto

aqueles que habitavam a minha infância

deixavam-se sobreviver como agulhas   agora sei

e tu   se tens noite   diz-me se não é verdade

que não há mata mais erguida mais alcandorada

do que aquela em que o arvoredo nos retém

como um ponto de onde nunca se regressa.

a lição

o professor está num salário de sessenta mil
e de vez em quando convida a poeta
a vir falar sobre poemas nas suas aulas de poética
o professor frequentemente comenta
que não entende porque é que a poeta
que ele sabe que está num salário de cerca de vinte mil
num emprego que não é a tempo inteiro
não se tenta tornar uma professora também 

a poeta normalmente responde-lhe
que não sente que tenha
grande coisa a ensinar a ninguém
e acrescenta talvez desnecessariamente
que não ter um certo tipo de salário
é o preço que ela escolheu pagar
por uma considerável liberdade 

a poeta de vez em quando repara
que não se sente
particularmente confortável
nesta amizade
mas também
não particularmente desconfortável 

o professor acha a poeta exótica
ela veio de um país estrangeiro
fala a língua dele com um sotaque
que ele a princípio teve dificuldade em classificar
e pensou até de início que ela viesse
de um destes países que estão no centro da europa
certamente não um daqueles lugares mais caóticos
um pouco abaixo da linha dos alpes ou dos pirinéus
a poeta achou que este era
mais um comentário aborrecido sobre sotaques
na vida de uma pessoa
que escolhera viver como poeta
num país estrangeiro qualquer
por razões que não lhe importava
explicar a ninguém 

a poeta não costumava pensar muito
em que tipo de relação tinha com o professor
até que um dia ele lhe perguntou
com que palavra exactamente
se poderia descrever essa relação
a poeta pensou que naquela manhã
um dos seus gatos
uma criatura de outro jeito
doce, calma e brincalhona
trouxera para casa um rato
que teve de se fazer de morto
com um grande caos na cozinha
para poder escapar com vida 

a poeta pensou em como
prendido o gato
para poder abrir a porta
viu o alívio tenso no corpo do rato
assim que ele pôde dardejar
através das vedações dos jardins
a uma velocidade luminosa  

a poeta cujo jeito para o negócio
tinha sobretudo a ver
com errância e melancolia
lembrou-se ainda
de um poema de joão miguel fernandes jorge
sobre comer a última lata de chouriço enlatado no texas
a poeta fez um ar confuso
e brindou o professor com um gélido silêncio
que ela esperou que fosse suficiente
para ele perceber  

o professor puxou a gola do casaco para cima
e endireitou os ombros
a poeta pensou neste gesto em termos
de expressões vagamente sexistas
não raro aplicadas a treinadores de futebol
no seu pequeno país um pouco abaixo
da linha dos pirinéus 

a poeta passou parte da adolescência em nápoles
e concede que às vezes pensa em certas situações
com uma violência desnecessária
pensa no mundo em termos
de enzo scanno e michele solara
a poeta entende racionalmente
que agora vive num mundo
mais civilizado do que esse
exceptuando quando não  

noutro dia a meio de uma aula
o professor sentiu necessidade de apontar
que discordava do uso que a poeta
fazia da palavra errático
no quinto verso da segunda estrofe
do terceiro poema do seu mais recente livro  

o professor notou que era uma palavra
de conotações desnecessariamente negativas
a poeta queria ter respondido
que de vez em quando era preciso aturar
muitas coisas com conotações
desnecessariamente negativas
para chegar a um pouco de verdade e beleza
mas entendeu que esta resposta
seria talvez moralista 

e comentou apenas
que era exactamente
por ser uma palavra negativa
que a havia escolhido 

o professor declarou que
there was no need to get emotional now
over such a small thing
a poeta reflectiu
já quase no fim da sua paciência
que o professor ganhava a vida
a dizer a jovens adultos
que as palavras que escolhemos contavam
mas concedeu que este talvez
fosse um pensamento
um pouco passivo-agressivo 

no elevador a descerem em direcção ao rés-do-chão
o professor aproximou-se demasiado da poeta
até o seu ombro se colar ao ombro dela
a mão dele pousada sobre a sua pasta
a poeta tornou a pensar na palavra errático
o professor olhou a poeta nos olhos
e comentou que as suas pupilas estavam dilatadas
posicionando-se diante dela
ele afastou uma madeixa de cabelo
de cima dos olhos dela
ela colou uma mão à parede e não se mexeu
lembrando-se da sua juventude napolitana
ocorreu-lhe que estavam
ambos no ângulo certo
para que apenas uma de duas coisas acontecesse
e concluiu com alívio
que seria uma joelhada fácil de desferir 

um par de horas mais tarde o professor
enviou à poeta uma elaborada mensagem
que a poeta descreveria
embora concedendo
que não muito positivamente
como poesia erótica de mau gosto
sobre gatos e pupilas dilatadas
um pequeno mapa em quinze linhas
de uma fantasia sexual aborrecida e previsível
sobre dominador e dominado
caçador e caçado
que fez a poeta pensar
no imperialismo mal disfarçado da pax britannica
e naquele poema de alexandre o’neill
aquele em que todos estamos a pensar
a história da moral 

durante várias semanas
a poeta ficou sem saber o que responder
quando finalmente confrontou o professor
ele alegou a ignorância dela
a sua falta de familiaridade
com baudelaire e murnau
com o erotismo expressionista
do centro e do norte da europa
para aceder correctamente ao significado inocente
e apenas puramente literário daquela mensagem
o professor chamou a poeta de má amiga
invocou a mulher os dois filhos
o empréstimo da casa
o casamento de vinte cinco anos
a poeta pensou que eram demasiados pormenores
para uma mensagem tão idiota 

ponderou o quão mediocremente distante se sentia
em tudo aquilo dos poemas de amor
orgulhosos e solitários de hilda hilst
até das falhas da sua própria
má imaginação melodramática
e veio-lhe à memória sobretudo
aquele verso de um poeta grego
em que ele diz que dá força
passar tempo com os mortos
quando os vivos não chegam 

pensou por fim que já não valia a pena explicar
àquele homem
como para ela não existiam
significados literários puramente inocentes
sobretudo não se havia baudelaire e murnau
lá pelo meio
que há palavras que quando usadas
mesmo nas situações mais confusas
mesmo naquelas que nos deixam mais perplexos
exigem de nós apenas estar disposto
a morrer ou a matar
uma coragem quente e simples
de viver à deriva de um sopro
com uma clareza que é sempre
necessária e difícil
para todos e qualquer um  

Amsterdão, Outubro de 2017

Oxford, 28 de Janeiro de 2022

 

Soneto falso

Acordei com uma forma ambígua
entre o duche a escolha da roupa
e o espelho do guarda roupa
o prazer de não saber quem sou 

ao abotoar-me sei que estou na cena iii
do meu ato a palavra contém todos
os géneros mas os gritos ecoam ao retardador 

penso nos polícias (ganhando pouco mais
que o salário mínimo) em pasolini
e em quem trabalha como pode um corpo
esvaziar-se de vida às mãos dos outros
sem quase nada por tão pouco

Haikus Malteses

Xlendi Bay, Malta

 

Na figueira maltesa

um pisco canta

o fim do verão.

 

Rapidamente se esquece

o que milénios de pó

escondem.

 

À beira do mar

todos os amores

a espuma das ondas.

 

A caminho de África

três patos descansam

ao lado dos turistas.

 

Cabem nas pupilas

as falésias gigantes

o mar possível.

 

Longe destes olhos

que fechados

tocam o infinito.

 

O mar nada revela

ondula um momento –

eternidade para a carne.

 

Prende-se o mar

com as mesmas amarras

que o amor.

 

Onda contra a onda

que regressa –

uma mosca observa.

 

Num copo de Chardonnay

põe-se

o Sol.

 

O olhar de Calypso

na praia –

o verão parte.

 

Sobre a merda das pombas

pousa graciosamente

uma borboleta.

 

Vinda do mar

a tempestade –

aves silenciosas.

 

Sobre o fresco cagalhão

ejacular –

manhã de Novembro.

 

No caranguejo morto

a sombra

de um pequeno peixe.

 

Caranguejo morto

ao sol

perde o verde.

 

Pequeno camarão transparente

lutando pela vida

como um elefante.

 

As ondas brilham

ao sol –

mais um barco passou.

 

São alimento

a morte e o sol –

consumindo vida a vida.

 

Puxa a linha

o pescador –

outros regressam.

 

O sol e o mar

nas salinas abandonadas

continuam o trabalho.

 

Por trás

do farol apagado

põe-se o Sol

 

Malta, Novembro 2022