A pele da Europa revisitada das alturas

i

A superfície do mar vista do avião
parece a tua pele ampliada à lupa 

não minto se digo que desta altitude
está seco ao meu olhar o corpo do Atlântico  

como chora um corpo líquido
senão cuspindo pedras conchas
corpos para quem foram inúteis
as tábuas que também dão à costa 

ii

a abóbada da europa abate-se
sobre os mares e oceano
e sobre as espáduas do Atlas
enfraquecido agora pelos aromas das flores
que em terra se abrem atrozes 

não sobra quase espaço
entre a terra e o mar
e os corpos não param
de dar à costa devolvidos
por terem defeito
ou não agradarem aos compradores
(escolher a opção que melhor se aplica) 

tudo se repete e a cada novo rapto
se soma mais uma gota de violência

Dois poemas sobre a Antiguidade (Yiorgos Seferis e A.E. Stallings)

Eurípides, o ateniense

 

Yiorgos Seferis

de Hmerologio Katastromatos G’ (Diário de Bordo III), 1953-55

 

Envelheceu entre os fogos de Troia
e as pedreiras da Sicília. 

Gostava de grutas na praia e imagens do mar.
Viu as veias dos homens
como uma rede dos deuses, onde nos prendem como a animais ferozes;
tentou romper através dela.
Era um homem difícil, tinha poucos amigos
Quando chegou o dia, despedaçaram-no os cães.  


Consolação para Tamar

A.  E. Stallings
De Archaic Smile (1999)

na ocasião de ela ter partido um vaso antigo 

Sabes que arqueóloga não sou, Tamar,
E para mim é tudo um pó ou outro.
Ainda assim, tem de contar alguma coisa sobreviver à meteorologia
Das Idades – terramoto, inundação e guerra –  

Só para se estilhaçar nas tuas mãos.
Talvez tenha sido a gravidade, ou estava fadado –
Embora eu me pergunte se não tivesse esperado
Tantos anos em gavetas, eras em terras distantes, 

E na música dos teus dedos, só um bocadinho
Encorajou-se com o teu sangue, e assim se esqueceu
Que não era botão de rosa, mas vaso,
E, tentando abrir-se para ti, fez-se frágil.  


Ευριπίδης, Αθηναίος

 

Γέρασε ανάμεσα στη φωτιά της Τροίας
και στα λατομεία της Σικελίας. 

Του άρεσαν οι σπηλιές στην αμμουδιά κι οι ζωγραφιές της θάλασσας.
Είδε τις φλέβες των ανθρώπων
σαν ένα δίχτυ των θεών, όπου μας πιάνουν σαν τ’ αγρίμια·
προσπάθησε να το τρυπήσει.
Ήταν στρυφνός, οι φίλοι του ήταν λίγοι·
ήρθε ο καιρός και τον σπαράξαν τα σκυλιά. 


 Consolation for Tamar

 

on the occasion of her breaking an ancient pot

 

You know I am no archaeologist, Tamar,
And that to me it is all one dust or another.
Still, it must mean something to survive the weather
Of the Ages—earthquake, flood, and war— 

Only to shatter in your very hands.
Perhaps it was gravity, or maybe fated—
Although I wonder if it had not waited
Those years in drawers, aeons in distant lands, 

And in your fingers' music, just a little
Was emboldened by your blood, and so forgot
That it was not a rosebud, but a pot,
And, trying to unfold for you, was brittle

Tininha

Tininha diz ao papá: «Papá, que é isto? A Via Láctea os numinosos espaços nocturnos já não me surpreendem! Parecem só um tecto de sala, que a tia de quem menos gosto decorou. Papá, que é isto?» «Ó Tininha! É lavar a cara com água fria! É partir para uma voluptuosa volta — de mota, no mato.» Tininha acatou e atestou: deu de caras com a surpresa do bicho. O bicho — a Via Láctea os numinosos espaços nocturnos — ferida-acordeão que o sopro de Tininha agrava ou mitiga. Tininha viu: a noite cicatriza em dia, o dia cicatriza em noite.

De Canto da Alforreca, Douda Correria, 2016

Que Túmulo em que Talhão

Para homenagear João Moita pelo prémio APE de poesia 2023 atribuído ao livro Que Túmulo em que Talhão, editora Guerra e Paz, recuperamos a recensão que Victor Gonçalves fez para a Enfermaria há cerca de um ano. O texto foi revisto.

A poesia repete-se e reinventa-se permanentemente, é, como as outras artes, reacionária e progressista, tem um pé no passado e outro no futuro. Se, por um lado, pelo menos desde o modernismo, desapareceram quase todas as restrições formais; por outro, permanecem campos específicos, edições e prémios, por exemplo, que não a deixam confundir com o resto da ficção. Há, até, a crença popular (pouco justificada) do talento poético da cultura portuguesa, provando o reconhecimento de um ethos que a diferencia no mundo das artes da palavra.

A obra de João Moita (ele recusa tê-la, cada livro, diz, é um começo, mas a bandana de Que Túmulo em que Talhão seleciona Fome — Enfermaria 6, 2015/17 — e Uma Pedra sobre a Boca — Guerra e Paz, 2019; juntando-se a isso um trabalho profundo de tradução poética: Antonio Gamoneda, Saint-John Perse, Arthur Rimbaud, Pierre Louÿs, Paul Verlaine, Walt Whitman) tem a marca da inclemência, há sempre uma tensão que atravessa o que é dito e mostrado. Um sopro frio sacode o espúrio e o sagrado (o que se considera como tal), como nos cínicos gregos, que para serem autênticos tanto se lhes dava como se lhes deu. Neste sentido, talvez a poesia de João Moita seja dedicada a Deus, impotente ou tolerante perante o mal, um evangelho do negativo. Por isso, capturando sem falhas o concreto e o sensorial, Que Túmulo em que Talhão foi composto com símbolos incomuns: foice, bafio, ranço, peçonha, salobra, asfixia, vertigem oblíqua, gangrena, podridão, emboscada, putrefação, morte, cadáver, chiqueiro, epidemia, matança, veneno, negrume, lamaçal, vísceras, visco, pestilento, tumor, bafo, entulho, escuridão, náusea, indigesta, fome, mórbido. A solidão pobre, o tédio, as iras domésticas, uma paz que sufoca… Talvez para melhor confinar a linguagem à função de descrição física e de localização. Ou achar que são as melhores palavras para ir para lá da linguagem.

Não sei se João Moita quis exprimir ou expulsar sentidos que o compõem ou se deixou que algo emergisse através (sim, atravessando-o) dele. Die Sprache spricht («A linguagem fala», Martin Heidegger, que admirava Hölderlin e achava que o Ser habita na poesia). Respeitando a sua vontade de desaparecer por trás dos livros que vai escrevendo, avanço a hipótese de uma linguagem da Lezíria assomar na ponta da sua caneta, ditando o fulgor amoral, patético, repugnante, viril, cruel… da vida/morte. Um livro que podia, assim, não ser assinado, mesmo reconhecendo que a linguagem da lezíria não escolheu o João por acaso. Creio saber que ele não gosta nem da embriaguez dionisíaca nem do humanismo apolíneo, tomados nesta dicotomia simplista, é também avesso, quando se concentra no individual, tanto à autocomiseração quanto à autoglorificação. Daí compreender-se que tenha procurado «representar a natureza em toda a sua esplendorosa indiferença e amoralidade».

Quis também «Eximir o sujeito poético ao poema». Sim, e não. Por um lado, contra ele, é indesmentível que estabelece um discurso direto com o leitor no primeiro poema, um prelúdio disparado imperativamente. Quer introduzir-nos no desencanto, para enquadrar a leitura do livro, e abrir horizontes de expetativas existenciais. E o sujeito poético emerge noutros lugares: pp. 64 («será a minha vida»), 67 («augúrio / que não decifro»), 76 («onde me detenho», «minha vida»), nas pp. 79 e 82 ainda mais claro, repete-se um «eu» e aparece um «ouço». Como o futuro foi anulado, culmina num «eu» a imolar-se na última estrofe do livro:

E eu,
couraçado pela solidão,
busco companhia
no milheiral
benzido
pelas chamas.
(p. 82)

Por outro lado, a favor do que disse, é surpreendente encontrar tão poucas vezes o sujeito poético, e nada de metapoesia (ultimamente tornou-se um vício, sobretudo nos jovens artífices). Mais, o humano quase se ausenta de Que Túmulo em que Talhão, «crianças da vila», «homem dobrado» e pouco mais. E mesmo quando aparece uma «mãe», é de gatos que se trata. Este desaparecimento desvia o protagonismo para a lezíria, sentimos que a desolação do ecossistema precisa da escassez humana, talvez exposta em contraluz nos mistérios da ausência-presença. Sem nós, a Lezíria viveria numa amoralidade exultante. É por isso que a luz direta que João Moita diz lançar sobre a natureza talvez não morra aí, ela acerta na Lezíria, certamente, mas reflete-se em algo para lá dela, e nesse além está, acredito, o humano, mas também o divino. Terei sucumbido ao magnetismo da ausência?

Expressionismo niilista. O único consolo — numa remissão tão frugal que é preciso ter a força de um estoico experiente — está, pontualmente, na indiferença. Mesmo quando não compõe uma imagem de fealdade e desarmonia, acaba por escrever: «acocoradas sob as telhas / as sombras preparam / uma emboscada». Quem se lembraria de mostrar num poema que

O frio eriça
as vísceras dos frangos,
enxameadas de moscas
para a postura
dos ovos.
(pp. 31-32)

No mesmo poema — do capítulo «A Vila», o outro é «Os Campos» — retoma episódios de elementos naturais que invadem a polis decadente, percorrida pelo destino do desaparecimento: «o sonar de um morcego / varre a ignomínia do quintal». Neste caso, o metafórico ganhou a relevância exata de um lirismo negro, como sucede na estrofe que se segue:

O sol lança chispas
sobre o caixão.
Jazem azuis e bolorentos
os limões,
como as chagas
imputrescíveis
da devoção.
(p. 33)

Há nisto um ver as coisas a partir de um ângulo pós-convencional, mas há também a vontade de inverter a pastoral, e desde logo uma das figuras mais emolduradas, a aurora: «Amanhece na campina / como o caruncho alastra / no sudário» (p. 39) Uma lírica perfurante para chegar à vida nua campestre, ou um neorrealismo desumanizado:

Coalha de lêndeas
o pêlo das grandes
ratazanas,
mosquitos sedentos
mugem os úberes
das vacas da charneca,
rodopiam,
em sua grande
transumância,
as pedras frias
do entardecer.
(pp. 50-51)

A aurora, o belo crepúsculo dos românticos, a terra, a luz, o céu…, nada disto tem suficiente força redentora para fazer frente ao poeta, ou aos poemas. Nem mesmo a metafísica resiste ao teste de esforço hermenêutico:

Cai varado
um deus
como um limão
na aridez
da charneca.
(p. 59)

É a segunda vez que limões e divino se cruzam, não o limão jovial dos cocktails, mas o da acidez que também apodrece, e antes cai desamparado. É por isso que me senti assombrado pela ideia da decomposição (termo que o João usa), do orgânico, seguramente, mas também a decomposição de uma certa forma de escrever poesia. É assim que ousa criar esta surpreendente analogia: «o negrume de um céu / de amoras pisadas.» (p. 69) Uma traição ao hábito, a que alguns chamam inventividade. Mas pode também ser, deixem-me arriscar, uma extrema fidelidade aos pormenores, envolvidos, dia e noite, num bafo pestilento.

Parque Eduardo VII

Sentado num banco, a dominar a cidade,
deveria acalentar meus sonhos de grandeza,
ver-me rei do que avisto, até à Arrábida; em vez disso,
sinto cobrir-me um manto, um peso estranho
que traz algum alívio à raiva e à teima dos últimos dias,
nos quais abri e folheei obras curiosas
sobre como fabricar uma bomba nuclear
(coisa cara e que, confesso, não será o que me falta
para a vida, agora, pendente das estatísticas;
com a curva de estupidez a subir, vertiginosa).
Estes enormes obeliscos encimados por louros,
hão-de estar alinhados com o cais das colunas,
numa grandiosa perspectiva à la française,
(Isto suponho, não estudei o assunto),
o que sei é que andam escavadoras lá em baixo
a revolver o Tejo e a transformar o cais, talvez,
numa marina, num polo de atracção acrescida
para as hordas de turistas que (pois é, desapareceram)
hão-de voltar cheias de apetite. Deus não permita.
Entre os enormes falos coroados, havia, no Natal,
um presépio gigante, não sei se ainda há,
o que há, aqui na minha frente, é uma asserção em pedra
do pénis em ruína do João Cutileiro, bem escorado,
e que terá causado escândalo e polémica,
sem que eu me tenha comovido um pêlo.
Porque nem todos os pénis chegam a falo,
e o pobre amontoado, junto aos quatro obeliscos
altíssimos, perde à partida a luta pelo símbolo
e nem chega a ser insulto, para não falar em arte.
Que me perdoem os que amam a obra, eu amo
Lisboa e, pelos vistos, finjo honrá-la, falando.
Já vejo que a tarde não me cura totalmente
a raiva que crescia. Não me vale o peso do manto inverso,
faltam-me uns olhos melhores, dois faróis
que me lessem por dentro até eu adormecer.

17/11/2020