o dia dos teus anos

começo hoje a festejar o dia dos teus anos
dona filomena me aponta por chegar sempre tarde à casa
minha mãe fala devagar o meu nome
dona filomena me aponta por chegar sempre triste 
e subir as escadas como se derrubasse o mundo
minha mãe fala baixo o meu nome
eu peço: mais alto, por favor
é que dona filomena às vezes grita no apartamento do lado
se eu fosse um náufrago
e teu nome uma concha
escutaria o que os vizinhos já conhecem
é que dona filomena nunca pisou nesse prédio
minha mãe esquece meu nome quando desligo o telemóvel
carlos, desculpe-me
há dias que sou eu mesmo
em outros sou dona filomena
e também minha mãe
e também o tavares quando não abre a tabacaria
quando eu era um náufrago
e teu nome uma ilha
as coisas não costumavam mudar de forma
pois era eu mesmo
e eu mesmo
e às vezes você (eu mesmo)
mas logo hoje festejo o dia dos teus anos
e celebro o apartamento como uma instituição
pois teu nome e dona filomena e a tabacaria
e todas as coisas bonitas e tristes da cidade são o mesmo 
maço de papéis quando: uso óculos escuros
lavo as mãos na água fria
sento de costas e deito a cabeça na janela do metro
mas logo hoje (o dia dos teus anos) sou dona filomena
e também a paragem do autocarro e também algumas prendas
e sobretudo eu mesmo e a alegria do mundo
logo hoje
a casa respira tempos que não são teus

FALÉSIAS

Lembra-me uma estátua de Afrodite
afogada – ruína intocada
de um cemitério que permaneceu
submerso enquanto o vento
soprava falésias e do areal apagava
os nossos passos; como se,
devido a um acidente climático,
um mar secasse e revelasse o que jaz:
a ossada de um navio naufragado
e também você, devolvida a mim
como os mortos de Pompéia.

Está próxima. Escuto-a a respirar
mas chego a temer o impulso
de acariciá-la como se o seu abrir de olhos
fosse transformá-la numa destas criaturas
que um deus desfez em sal para a purgação
de uma sede malsã. Vejo-a. Escuto-a
e pesa a suspeita – mármore
sobre o peito – de também estar submerso.
Ouço-a e depois o vento sobre a erva rasteira
pelas alamedas do condomínio.
No outro lado da parede, irrompe
um choro de criança. É o térreo.
A escada aos andares de cima
está sobre o teto e cada passo
ressoa como que vindo da madrugada absoluta.
A insônia é uma encruzilhada de rios
que lentamente secam: o ontem
ainda preso à pele, mas não como cicatriz,
não como gota de orvalho – na superfície
da epiderme como algo banal (outra nódoa
de gordura no casado puído)
enquanto velo o seu torso a se encher
e a se esvaziar: seguidamente, inesgotavelmente,
como se a mim fosse dado contemplar, grão
após grão, como se forma o infindo areal
em que nos achamos.

der himmel über berlin

para ulf stolterfoht 

“alguns vieram em auxílio do céu”
disse ulf através da sra. waldrop
através de mim. caem os muros
diante desse telefone-sem-fio 

ou haviam caído antes por obra
de tradução, política e marretas,
e eis o céu novamente. em auxílio
dele eis a teologia que fabrica 

nuvens brancas sem as manchas
que lhe punham canaletto e cuyp.
do céu como paraíso em heaven 
vem o sopro da teologia tomista. 

rupturas aparentes, não no muro,
mas na parede de escolástica, ou ―
permitida a licença poética ― nas
palavras hermeticamente fechadas 

dos livros da lei, tão pouco prática.
anjos alçam o céu, que ne nous tombe 
pas sur la tête, que não suma sob co2.
alguém engasga em socorro do céu.