Dois poemas de Dirceu Villa

sr. barbáro

um poema fere o sr. barbáro na primavera,
no inverno, em qualquer estação; debaixo do
braço, na virilha, na garganta, todos fatais ao
mais rude bufão; que sabe ler, e não sabe ler.

o sr. barbáro pede ajuda de deus quando quer
matar, quando põe pedras na boca para falar,
quando cospe atacando cores e abre um ânus
dentro do crânio; o sr. barbáro caga na bolsa.

soldado, sonha-se o sr. barbáro, e bate muita
continência [o incontinente]; o sr. barbáro é são,
mas é demente. o sr. barbáro tem um esgoto sob
a língua, olhos de estuprador e impotente. não

separa ódio de comoção, ou virtude de covardia:
o sr. barbáro gritava à tv numa poltrona até o dia
em que lhe deram poder. o sr. barbáro parece ter
ratos no rosto. haver vida o fere, é um desgosto.

gentileschi

schloss weißenstein, suzana tem nojo e dor nos olhos, sua
nudez sentada se contorce diante de dois velhos cobiçosos
a despeito do nojo e da dor [ou por causa do nojo e da dor].
artemisia amarrota-lhe os olhos diante do esgar rosnado de

quem segreda o assalto de seu sexo; em quatro anos, suzana
se torna judite, ganha a ajuda de uma amiga, e os dois velhos
se fundem no grande holofernes: as mãos das mulheres forçam
o corpo contorcido do general, a espada trincha pele, músculos

nervos, ossos. a determinação nos olhos de judite e de sua ajuda
só se equipara ao desespero nos olhos da cabeça quase solta
do corpo que fora dois e jaz agora um: as mulheres se afastam
do combate [técnicas da vingança exata] no museo nazionale. 

Susana e os anciãos, Artemisia Gentileschi (detalhe)

Susana e os anciãos, Artemisia Gentileschi (detalhe)

Dois Poemas de Dirceu Villa

cosmopolis

roma. sob os meus pés, amálgama. trajano
faz serpear a história; raízes envolvem os 
pés de estátuas, os deuses todos cegos e,
no rosto do busto de césar, os olhos sem

pálpebras de mussolini revivem. no panteão,
ciclópico, jeová penetra em forma de luz e
banha pessoas de bermudas floridas, celular
nas mãos, paciência; convicção alguma em

formas clássicas: museu; imergem no tevere
pedras de pontes, cores do casario, e o céu
se suja de vida e de séculos [ombros de atlas].
eterno repúdio aos não-cidadãos, a velha e

viva ordem eqüestre; talvez, assim, o soldado
limpe a longa espada enquanto rola a cabeça
da santa, em são clemente, masolino: soa a voz 
revolta de emma bonino, pálpebras apertadas.

***

terror sagrado

todas as palavras juntas em qualquer ordem imaginável
não reconstruirão o cosmos; a mão trêmula de abraão;
mitra ordena a suas estrelas desfazer o touro; um naco
de pedra vem inscrito dez vezes com raios, terror sagrado. 

membros da família rastejam buscando a carne do irmão;
com tanto sangue na boca o assassino sufoca após ter
matado a todos; o carro desgovernado pára somente em
pedaços contra o muro; o tirano cai fatiado nas entranhas 

por outro tirano; é um ruído que encontram atrás do muro,
é um sinal que se emite pelo cristal líquido, é a radiação
de encontro ao ouvido, um sussurro; são as ondas que
oferecem o inimigo sobre o altar, uma injeção no cérebro, 

o que faz gozar. as falas comprimidas em grunhidos de
parte a parte, criaturas se esgueiram revivendo das sombras
dos séculos; pedem sangue; pedem sanha; pedem surtos;
zeus esmaga raios com os dedos; os filhos, devora saturno.


[Perfil de Dirceu Villa na Enfermaria 6 aqui]

pele de cervo

estalam os olhos escuros,
no incrível escuro sozinhos,
onde rasgam a bala o caminho.
é bela a estrada da neve no azul de metal.
céu, céu, e quantas estrelas o sabem?
pele de cervo, suas patas se agitam
ao sentir a tensão
na paisagem.
                      pressente inocente animal
faca de mão trinchadora, o segredo
dos homens armados. as faixas de sangue
pintam o branco, a mente uma página em branco
no horror de mesas metálicas,
no frio solitário das facas.
                     pele de cervo, tremor sob os músculos,
ruído nenhum escondido no vale,
o seu último sopro em cena,
crianças se escondem minúsculo.
céu, céu e estrelas brilhando,
                     brilho de pontas, cinco brilhando,
doze se contam no céu aureolado,
e cheira a churrasco o seu riso.
quem compra, a que preço de sonho,
o maior pesadelo? correm perdidas no medo,
pressente inocente animal.
pele de cervo, o que foge
e nunca reage: o céu, no escuro sozinho,
tímidas patas no estranho caminho.
céu, céu e as estrelas, distâncias astrais,
                     a mesa do frio,
neve e orvalho, bocas de sangue no azul.
crianças se curvam minúsculo, nuas
órbitas abrem, e o banho.
                     pele de cervo: o escravo, o estranho.

respondendo à hipótese do vazio

se nunca mais repleto o mundo
— dentro em nós, apenas— canta
em cada esquina, cada luz solar, 
inundação no riso, brilho em pele, 
prestes mesmo ao nada exorbitante, 
espelho de conflitos puro, raro
de reflexo, rente de célula a célula  
não mais que grito em cacos, dê 
um passo atrás saindo à sombra
e eis o sol: se agora queima a cútis, 
ou por mera aurora ainda avaro, 
fique. desça a cortina dos olhos, 
a fricção gentil de mão a mão. tão sós, 
nos cumpre sempre descobrir o sol.