Terra, 2335

A ausência de prova não é prova de ausência. Deus está aqui (e não em toda a parte), reclinado no seu intrínseco divã, entre os costumes perfumados da fama e a excelsa respiração da manhã. Mas o seu rosto, oriundo da especulação secular, está abalado. Alguns movimentos involuntários, tremuras e contorções, tiques e trejeitos visivelmente inoperantes que interferem com a placidez do estereótipo e reflectem a falência da representação, desafiam agora os seus consabidos poderes ancestrais. Ao seu lado, o seu cuidador, um androide de grandes olhos ovais e extrema dedicação, cumpre o seu ritual. 

Nisto, à volta da cabeça de deus, forma-se uma grande nuvem de moscas que coroa a sua paralisia cerebral. O seu voo é denso, circular e constante. A infinita rigidez de deus impede-o de as enxotar.

Estamos em pleno planeta Terra. A cena decorre num imenso jardim, onde o verde se conjuga maravilhosamente com o castanho e o branco das margaridas ensaia uma coreografia com o amarelo das acácias, e a luz do sol cai a pique sobre os baloiços, os aquedutos e as estátuas. Ao longe, do interior de uma oficina de protótipos angelicais, ouvem-se os risos de androides embriagados. O último humano foi avistado há cerca de 300 anos. Reina a mais indecorosa paz.

Jonas

a William Zeytounlian

E veio a palavra do SENHOR a Jonas, filho de Amitai, dizendo: Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive, e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até à minha presença. Jonas foge. Quem era ele para ir a Nínive, pregar? Dele riem já em sua aldeia, e Nínive é tanto maior. Embarca para Társis, ou qualquer dos pontos mais próximos do abismo, onde acaba o mundo quadrado. Céu de bonança, os ventos enfunam as velas, logo Társis ou o fim do mundo, longe de Nínive e da voz de toró e trovejadas do Senhor. À noite, no barco que balouçava tranquilo sobre as águas, tem um pesadelo terrível, uma tormenta se abate sobre eles, ameaça estraçalhar barco e tripulação, os viajantes clamam cada qual a seu deus, promulga-se de Jonas a culpa, lançam-no barco afora, um grande peixe o engole, três dias e três noites de digestão, a sua. Acorda, encharcado de suor. Chegaram a Társis, sãos, salvos. Jonas ali se estabelece. O tempo passa. Chegam notícias de que um homem, um certo Jonas, recebera a palavra do Senhor, fora a Nínive, pregara, os habitantes o ouviram, vestiram-se de saco de estopa, lançaram cinzas sobre a cabeça, o Senhor deles se apiedou, arrependeu-se do mal que queria fazer sobrevir-lhes, perdoou-os. Jonas sente uma nostalgia inexplicável, sem nome, dedica-se à plantação de aboboreiras, os negócios progridem, exporta para os quatro cantos, inclusive para Nínive. Mas há o sonho recorrente, o mesmo, que deixa de ser pesadelo, sonho pelo qual anseia toda noite, Jonas de volta no barco, uma tormenta se abate sobre eles, ameaça estraçalhar tudo e todos, os viajantes clamam cada qual a seu deus, promulga-se de Jonas a culpa, lançam-no barco afora, um grande peixe o engole, três dias e três noites de digestão, a sua. Mas Jonas agora avança na narrativa do sonho, passa a cada ano um pouco mais do ponto em que despertara naquela primeira noite do pesadelo agora sonho, Jonas no grande peixe, três dias e três noites, clama, clama, clama, o Senhor o ouve, apieda-se, o grande peixe o vomita nas areias, Jonas vai a Nínive, prega, os habitantes o ouvem, vestem-se de saco de estopa, lançam cinzas sobre a cabeça, o Senhor deles se apieda, arrepende-se do mal que queria fazer sobrevir-lhes, perdoa-os, é ele o Jonas de que outro Jonas, em Társis, ouve falar. Mas é apenas um sonho. Ele está em Társis, tem o monopólio da plantação de aboboreiras, mas caminha como se algas rodeassem sua cabeça, Jonas é um grande peixe com um Jonas em suas entranhas. Quando morre, rodeado de seus filhos e netos, seu testamento consiste de uma única sentença: Enterrem-me em Nínive. Proibitivos os custos, questões de saúde pública, transportar cadáveres em longas viagens pelos mares, cheiro de decomposição enojando os passageiros no convés. Os filhos decidem cremá-lo. Suas cinzas, espargem no mar.

Apontamento de 12 de Fevereiro, ano 2012

Tem caído neve com muita intensidade nos últimos dias em Roma, resultado de um anticiclone responsável pelas baixas temperaturas que por pouco estilhaçam o velho continente nas suas imaginárias fronteiras. Aos mais débeis e aos mais descuidados este sopro boreal valeu-lhes o último suspiro. Resultados previsíveis de eventos inesperados.  Não se imaginava, contudo, a insólita aparição de lobos junto dos antigos castelos romanos. Em alguma história de Roma conta-se que Rómulo desaparecera por entre as nuvens durante uma tempestade, conduzido por uma águia. Teria o seu quê de poético pensar que no meio desta nuvem branca que desceu sobre Roma, e na forma de quem os amamentou, vieram Remo e o já perdoado Rómulo observar a cidade que pelo tempo e pelo sangue lhes pertence.

         

 

nem tudo é um mal de rosas

há batidas na porta. a madeira chama a mão que vibra. alguém nos aguarda e alguém nos procura. quantas mais vezes vamos precisar de racionar a febre de querer somente um corpo de igual para igual. um corpo que se reconhece em ser danificado. corroído por calor, por palavra e por ser somente um corpo: aberto, recíproco e intransponível à imanência


o escritor apaixonou-se por uma mulher que não o lê, e o desamor tornou-se beleza fúngica


existe um dialecto próprio no qual o coração ficou sujeite. um que martiriza a tentativa de viver tudo em grito. há, de facto, mais esforço para renovar a inominável. e o escritor, que constrói a vida na escadaria das palavras, fica encostado no lado direito, pois é nesse que se é ultrapassado. podia continuar, mas a linguística é pele a ser esperada e não coagida. a cada gota de suor que uma letra solta é um dia menos de contemplação.


chegas a casa e as pessoas lembram-te quem tu és. chegas à natureza de onde és origem, e as terras que pisas sabem o teu nome e ainda guardam o molde do teu pé. em forma de lembrança, de teima, ou de simples coágulo epulótico. chegas a casa e há um significado no teu corpo. chegas a casa e uma feitiçaria faz-te sorrir por entre os olhos da saudade, num acto de loucura ou de fé, e na validade das duas, compreendes a fragilidade da tua raça. és homem de poucos pedidos e um só tamanho. chegas a casa e percebes as saudades que tinhas do barulho da máquina de lavar. chegas a casa e emocionas-te com as tuas próprias palavras. chegas a casa e a voz da tua mãe é música que te leva para dentro de todas as memórias onde foste somente um corpo feliz, sem medos, arestas, ou nequícia. chegas a casa e as plantas mostram-te a circularidade da vida com a morte, presa num casulo de orvalho que brilha perante os seus últimos segundos de existência. chegas a casa e nada mais interessa, porque nunca nada mais interessou. não te interessa a verdade, a realidade, os cigarros ou descobrir o amor de uma mulher. quando chegas a casa, em frente à janela da cozinha esvoaça uma borboleta desconhecendo a presença dos teus olhos, e ainda assim, tu significas. tu és. e tu sentes. 

19.

Costumava dizer: não são os momentos, a soma ou ausência de, que nos dão as conclusões. E apenas a subsistência ao alento que nos permite esperar, esperar mais e melhor. foi assim, já perto do seu final, que aguardou pacientemente por quem lhe chegasse para descalçar os sapatos gastos, lhe despisse as meias com delicadeza e lhe beijasse os pés com irreversível  bondade. Quando isso estava prestes a aconteceu, deu por vontade própria –como sempre quis – a sua outra face, a pior, e pode então calar-se de vez.