0- Sempre gostei de críticos (nunca, que me lembre, lhes atirei setas), antigamente porque me guiavam no labirinto cinematográfico, nem sempre bem (a vida é acrobacia, certo?), mas eu acreditava neles e tudo se passava lindamente. Recentemente, porque alguns são uma caixa de ressonância inteligente das obras (ou produtos), e outros porque rasteiram oportunamente os acontecimentos-slogan que conquistaram parte da realidade pós-moderna, contribuindo para o “melhor dos mundos possíveis”. Além disso, o seu défice de senso comum afasta-os aristocraticamente da realidade prosaica, e quando são atacados podem viver a derrota como um belo fatalismo.
1- Um crítico deve estar para lá do autor (figura evanescente que apesar do enfraquecimento ontológico e político ressuscita constantemente para nos lembrar de que nem tudo o que se escreve é ou vertido directamente por um demiurgo ou o resultado sem porquê da escrita automática, alguns autores continuam a ganhar a imortalidade sem necessidade de morrer). Um crítico começa por perceber o texto (embora este “perceber” tenha pano para centenas de mangas), e a partir dele chega ao autor (mesmo quando não quer, neste caso o autor assombra-o). Desta forma, o crítico começa a sua aventura hermenêutica preso a um objecto que o precede, sem contencioso, ele entra na órbita da coisa que quer celebrar (ou aniquilar, embora os bons críticos raramente andem armados). Começa assim, mas depois acelera e vinga-se, esteticamente no mundo da arte, daquela precedência. Se o texto nasce primeiro, o crítico apanha-o rapidamente e cerca-o, às vezes soprando-lhe uma vitalidade que provoca rodopios, lançando-o em espiral até ao escaparate da glória, noutras ocasiões envolve-o num “abraço de urso”, ou ainda escalpeliza-o para revelar, com fanfarras às vezes, que a pilosidade craniana esconde sempre uma careca. Um crítico está, pois, feito para o predomínio, sem o esplendor, contudo, dos autores, certos autores, claro. De uma forma ou de outra, ele só subsiste no hospedeiro, mesmo quando o abandona, reeditando docemente a vitória de Pirro.
2- Agora, a sério (ou: “agora a sério”?). Sem os críticos profissionais (alguns até não são remunerados, mas evitemos mais explicações) o mundo da arte estaria menos monitorizado racionalmente, tudo, ou quase, ficaria nas mãos dos espectadores, que penso não serem especialmente lúcidos, sobretudo nos horizontes restritos de Portugal, onde os juízos de gosto se deixam contaminar pela piedade e pela vingança, onde, fora isso, o isomorfismo é a principal condição de possibilidade do prazer estético (no máximo, gosta-se do que se compreende à primeira; como acolher então qualquer tipo de vanguardismo, a essência da arte?). Não, o espectador não é melhor do que o crítico, muitas vezes, aliás, não passa de um crítico frustrado. Não o é, em primeiro lugar, porque geralmente não conhece tão bem o ecossistema onde a obra emerge e vive; depois, porque não desenvolveu a vertigem de crítico, isto é, um atirar-se à obra sem saber se regressa vivo dela, não se trata de catarse (salvífica, como sabemos), antes da continuação do velho impulso de Empédocles, lançando-se para o interior do vulcão do Monte Etna apenas porque queria saber o que se passava lá dentro; em terceiro lugar, falta ao espectador a visão periférica do crítico, o objecto da crítica está sempre acompanhado por estacas que o mantêm de pé (história, influências, omissões, projecções...), a análise de um filme exige conhecer-se quase toda a história do cinema, por exemplo; por último, um crítico deve ter vocabulário crítico, não tanto como o pletórico conceptualismo de António Guerreiro, mas o suficiente para estar dentro do tom discursivo da obra que aborda.
3- Se me permitem uma conclusão simples: o crítico pode ser um padre que baptiza ou excomunga a obra, mas no essencial ele ajuda o espectador a compreendê-la melhor, e nenhum aspira, apesar de aqui se utilizar alguma terminologia teológica, a substituir a omnisciência divina.
Post scriptum:
a) Depois de escrever este elogio, li numa crítica de vinhos (sempre me fascinaram as notas de provas vinícolas, poemas aplicados, com papilas gustativas e castas à mistura), feita por Manuel Carvalho e Pedro Garcias para um suplemento do Jornal Público (Fugas), de 26/11/2016, esta bela e precisa nota de intenções: “A crítica que fazemos na Fugas cumpre exactamente esse objectivo de mediação. Como toda a crítica, é subjectiva e vincula apenas quem a faz. Vale o que vale. As notas que atribuímos correspondem a uma avaliação individual, sempre influenciada pelo nosso gosto, e não têm a veleidade de ser definitivas. Na verdade, devem ser sempre relativizadas.”
b) Sei que a minha tese luta contra as reacções virulentas do estruturalismo da década de 60 (prolongadas na actualidade nos campos mais analíticos) ao reino da interpretação. Susan Sontag, estilo heroína pirómana, atacou este reino que, no seu entendimento, nada mais era do que o ressentimento dos medíocres e impotentes contra os génios artísticos. Propunha, pois, substituir a hermenêutica (arma dos imbecis), por um “erotismo artístico”, cujo objectivo seria revelar a obra em si e não o seu sentido, sempre contaminado pela interpretação, diz em “Against Interpretation”: “In place of a hermeneutics we need an erotic of art.” Com isto, os críticos seriam banidos da civilização (e os autores escondidos atrás das obras), substituídos por apontadores neutros (deliramos, bem sei) que iluminariam as zonas nevrálgicas das peças para guiarem os espectadores até ao óbvio das forças espasmódicas que compõem o belo e a verdade.