João Bosco da Silva, Teoria da Perdição Unificada

João Bosco da Silva
Teoria da Perdição Unificada
poesia

Enfermaria 6, Lisboa,
março de 2017, 182 pp.
Capa de João Alves Ferreira

15€

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João Bosco da Silva nasceu em Bragança (1985). Passou a maior parte da sua infância e adolescência em Torre de Dona Chama. Estudou no Porto. Vive na Finlândia. 

Livros de poesia: Os Poemas de Ninguém (Atelier, 2009), Disse-me António Montes (Mosaico de Palavras, 2010), Bater Palmas E Sete Palmos De Terra Nos Olhos (Mosaico de Palavras, 2011), Saber Esperar Pelo Vazio (Mosaico de Palavras, 2012), Destilações (não edições, 2014), Trepanação de Jerónimo Bosch (Mariposa Azual, 2015). 

Algumas participações em antologias e revistas:  Revista Inútil n.2, Meditações Sobre O Fim, HARIEMUJ,  Voo Rasante, Mariposa Azual, Caderno 3, Enfermaria 6, Flanzine 8 - Lol&Pop, Flan de Tal, Bukakke, Copus Dei, Persona, do lado esquerdo.

Escrever ou tão pequena parte ser no mundo

Escrever é penoso,muitas formas de escrever, diferentes maneiras de dizer a mesma coisa, é sempre possível encontrar uma frase mais bonita do que esta, a palavra escarrapachada no papel desagrada, as palavras nunca são as mais belas, as escolhidas não são as ideais, existem mais graciosas, mais apuradas, ao texto faltam parafusos, uma vírgula aqui que não devia, uma frase para ali que se repete, que não bate certo, os chavões aos pulos, o dicionário fechado, e no fim, qual fim, o texto não tem fim, morre de cansaço, de tédio, o texto não bate certo, sente-se a desarmonia, texto feio, o texto sofre de fealdade, não se pode ter texto mais grotesco do que o que escrevemos, o que nos pertence é fraco e custa aceitar a limitação, a ausência de apuro, a elegância foge para os textos dos outros, não só dos consagrados, mesmo um zé-ninguém, autor de romances de facebook, bate mais certeiramente nas teclas, isto de escrever seria tão mais fácil se em vez de escrever fechasse os olhos a pensar no texto e adormecesse sem nunca ter escrito e acordasse no dia seguinte esquecido de que alguma vez quis ou tentei escrever, não vale a pena o esforço, isto, se pensar bem nisto desligo e volto para debaixo dos cobertores, o macaco aprende, oh se aprende, lembremos o anúncio do Gervásio que levava o objecto ao contentor do lixo, o macaco sabe, o macaco escreve, mas escrever não é deixar de ser macaco, claro que não é, pegadas de animal por todo o lado, o texto manco à conta da limitação intelectual, educativa, e eu a perseguir a perfeição, a sujar o menos possível o caderno para não o conspurcar com o esterco cuspido pelo cérebro, chamemos assim o quadrado de osso e pus, escrever esgota a vaidade, queria ser escritor e agora quero ser nada, para ser escritor é preciso escrever e nada do que aqui está, nada nos jornais, nada nos livros é escrita, palha, isso temos de sobra, resmas de nada, o vazio assalta-nos, a caneta trespassa a folha para dar lugar a nada, é triste rodear o vazio durante tantos anos, ainda no outro dia o melhor ou um dos melhores ou seise um dos melhores escritores portugueses comentava que poderia morrer depois de publicar os trinta livros que planeara, que depois disso se fechava um ciclo, e eu a ler aquilo e a imaginar o escritor morto e os trinta livros empilhados numa livraria ou na feira da ladra ou numa cave bolorenta, os trinta volumes, o tal ciclo, quarenta anos de escrita, tudo isso a valer rigorosamente nada, não nos enganemos em relação a isto, aqueles trinta livros valem o mesmo que a palha entalada entre a dentuça do burro, o escritor, esse tal melhor escritor, também é primo do macaco, os seus livros são papel, vestígios de uma civilização à beira de acabar, estamos à beira da extinção, como estivemos desde que apareceu tudo, nada dura, nada presta, e um dia o circo termina, e escrever dói tanto e não leva a lado algum e, mesmo assim, mesmo assim, aqui estamos. 

Nilton Santiago, "Os milagres como quarto estado da matéria (pouco antes do amanhecer, quando os gatos guiam o trânsito)"

Tradução de Sandra Santos

São estas as ruínas e as chuvas do outono,
entrar no metro atravessando a porta duma igreja
chorar pela afonia dum grilo, caminhar e voltar a entrar na igreja
mas desta vez através da chuva,
e ver-te então atravessar a passadeira
enquanto um casal de gatos guia o trânsito.
Eis aqui o primeiro milagre:
tu entrando no céu através dos teus sinais,
não há astrónomo nem fumador que tenha imaginado
um céu com tanto decote
desde logo não sabes quem diabo era Baudelaire
nem que às vezes há que vestir saias más compridas (e menos transparentes)
sob a chuva
mas não interessa, de quimera em quimera e de quimera em clareza
e vice-versa
fazes com que o infinito se detenha bruscamente,
que o Big Bang comece a contrair-se
como um grande tomate no micro-ondas
ou que as moças tatuadas nos braços dos taxistas deixem de fumar
e abandonem a lida do amor para entrar furtivamente
nas paróquias.
Eis aqui o segundo milagre:
entrar na estação e ver-te lutar com o entorno para que te deixe passar
entre tanta luz e vice-versa
não levar um cêntimo no bolso e pedir-te o cartão do metro,
satisfazer-me com o mel do teu sorriso e das tuas covas,
olharmo-nos sem nenhum dos típicos desígnios destinados
aos frios amores por correspondência.

Eis aqui o terceiro milagre:
há dois lugares livres juntos,
sentamo-nos, sei que me bofeteio por observar-te assim a entreperna
falamos então para deixar de sorrir,
falamos do novo estado da matéria que acabam de descobrir
nos olhos de frango,
falamos sem nos darmos conta de cada vez que sorris
saem centenas de borboletas de entre o teu decote e o meu olhar.
De repente, num piscar de olhos, chegamos à última estação
(onde ainda é primavera e onde há minotauros
distraídos com aquelas raparigas trazidas de Ho Chi Minh ou de Creta)
e, como quem não quer a coisa, aproveito para fazer-te as típicas perguntas
que te faria um elefante a ponto de morrer,
enquanto dou três voltas ao meu coração em redor do teu
que se esconde uma e outra vez,
como se esconde o som no ventre de uma campainha.

Acabamos de nos conhecer mas já demos cinco beijos
não faremos coisas politicamente incorrectas,
isso é certo
o amor já me sussurrou ao ouvido que hoje também não é a minha noite
e bem o sei: hoje sou esta ruína, esta chuva de outono,
este fardo que não tem nada que dizer-te.
São horas de ires ao bar onde combinaste com o teu namorado
e de eu voltar a casa
(em passos vagarosos)
já sucederam uns quantos milagres esta noite
e há que saber retirar-se a tempo para lamber as feridas.

E calma amigos, dizem que as ratazanas
podem viver mais tempo sem água que os camelos.


LOS MILAGROS COMO CUARTO ESTADO DE LA MATERIA (POCO ANTES DEL AMANECER, CUANDO LOS GATOS DIRIGEN EL TRÁFICO)
 
Son estas las ruinas y las lluvias del otoño,
entrar en el metro atravesando la puerta de una iglesia
llorar por la afonía de un grillo, caminar y volver a entrar a la iglesia
pero esta vez a través de la lluvia,
y entonces verte cruzar el paso de cebra
mientras una pareja de gatos dirige el tráfico.
He aquí el primer milagro:
tú entrando en el cielo a través de tus lunares,
no hay astrónomo ni fumeta que haya imaginado un cielo con tanto escote
desde luego no sabes quién diablos era Baudelaire
ni que a veces hay que llevar faldas más largas (y menos transparentes)
bajo la lluvia
pero da lo mismo, de quimera a quimera y de quimera a claridad
y viceversa
haces que el infinito se detenga de sopetón,
que el Big Bang empiece a contraerse
como un gran tomate en el microondas
o que las chicas tatuadas en los brazos de los taxistas dejen de fumar
y abandonen las labores del amor para entrar a hurtadillas
en las parroquias.
He aquí el segundo milagro:
entrar en la estación y verte pelear con el torno para que te deje pasar
entre tanta luz y viceversa
no llevar un céntimo en el bolsillo y pedirte la tarjeta del metro,
comerme con la miel de tu sonrisa los hoyuelos de tus mejillas,
mirarnos sin ninguno de los típicos designios destinados
a los fríos amores por correspondencia.
 
Aquí el tercer milagro:
hay dos asientos libres juntos,
nos sentamos, sé que me juego un bofetón por mirarte así la entrepierna
hablamos entonces para dejar de sonreír,
hablamos del nuevo estado de la materia que acaban de descubrir
en los ojos de pollo,
hablamos sin darnos cuenta de que cada vez que sonríes
salen cientos de mariposas entre tu escote y mi mirada.
De repente, en un plis plas, llegamos a la última estación
(donde aún es primavera y donde hay minotauros
distrayéndose con aquellas muchachas traídas de Ho Chi Minh
o de Creta)
y, como quién no quiere la cosa, aprovecho para hacerte las típicas preguntas
que te haría un elefante a punto de morir,
mientras le doy tres vueltas a mi corazón alrededor de tu corazón
que se esconde una y otra vez,
como se esconde el sonido en el vientre de una campana.
 
Nos acabamos de conocer pero ya nos damos cinco besos
no haremos cosas políticamente incorrectas,
eso seguro
el amor ya me ha susurrado al oído que tampoco hoy es mi noche
y bien lo sé: hoy soy yo esta ruina, esta lluvia de otoño,
este pelmazo que no tiene nada que decirte.
Es hora de que te vayas al bar donde has quedado con tu chico
y que yo me marche a casa
(paso de ir al picnic)
ya sobran unos cuantos milagros esta noche
y hay que saber retirarse a tiempo para lamerse las heridas.
 
Y tranquilos amigos, dicen que las ratas
pueden vivir más tiempo sin agua que los camellos.


NILTON SANTIAGO nasceu na cidade de Lima, Peru, embora resida em Barcelona há vários anos. Publicou os títulos de poesia El libro de los espejos (2º Premio Copé de Poesía 2003), La oscuridad de los gatos era nuestra oscuridad (Premio Internacional de Poesía Joven Fundación Centro de Poesía José Hierro, Madrid 2012), El equipaje del ángel (XXVII Premio Tiflos de Poesía, Visor Libros 2014) e Las musas se han ido de copas, com o qual obteve o XV Premio Casa de América de Poesía Americana (Visor Libros, Madrid 2015). Finalmente, Para retrasar los relojes de arena (Vallejo & Co., 2015) é o seu primeiro libro de crónicas. 

Merecedor de uma menção honrosa do Premio Adonáis de Poesía 2014, parte da sua obra literária foi reunida na antologia A otro perro con este hueso (Editorial Casa de Poesía, Costa Rica 2016).


Notas sobre Friedrich Nietzsche (o caminhante inactual)

Nietzsche por Edvard Munch

Nietzsche por Edvard Munch

Quem pensou o mais profundo, ama o mais vivo.” (Hölderlin, Sócrates e Alcibíades)

Há um toque metafísico no “inactual” de Nietzsche (conceito que ganhou lastro com a publicação das quatro Inactuais, Unzeitgemäße Betrachtungen, 1873-1876), ou no mínimo uma recusa em permanecer refém do tempo capturado pelas ninharias do dia-a-dia (ser inactual é pôr em perspectiva o presente, confrontando-o com passado e o futuro, agarrando um qualquer tipo de eternidade). Mas, leitores de actualidades, onde podemos encontrar hoje protecção contra o dilúvio de informações tóxicas despejadas sobre o mundo (e não são apenas as fake news)?

Separar-se do ruído de massas histriónico para higienizar a mente (logoterapia), quem consegue pensar sacudido por rajadas de discursos irrelevantes, axiologicamente igualitários, onde o bom se perde na amálgama quantitativa que nivela e atrofia? O meu reino por uma comunicação viral, fama efémera, sem o tom iconoclasta que lhe imprimiu Andy Warhol. Liturgia para massas. Nietzsche criticou o igualitarismo rousseauniano, ainda por cima falso (julgava-se meio-génio), por ter destruído as boas hierarquias: valores, gostos, pensamentos... ficaram dispostos horizontalmente, dinamitando o vislumbre de uma civilização adequada aos “espíritos livres”, cheia de embriaguez trágica, contendo sempre mais vida do que morte. Uma cosmologia fisiológica. Uma teodiceia do corpo e da Terra. Um fatalismo não ataráxico e resignado, amor fati dionisíaco e alegre. É por isso que o solitário de Sils-Maria preferia Voltaire, a quem dedicou Humano, Demasiado Humano (1878-1880), a Rousseau (apesar de se encontrarem no gosto pela solidão, única condição de exaltação pessoal, e nas caminhadas vitais). Voltaire tinha uma nobreza de espírito (“noblesse d’esprit”), um estilo refinado, gosto linguístico, mas também bom humor (para Nietzsche mais importante do que se pensa) e recusava visceralmente as crenças religiosas, reino das boas consciência estupidificadas.

O estilo aforístico nietzschiano revolta-se contra o pensamento pesado e longo, fastidioso, empenhado em fabricar demonstrações tão completas que o leitor, ainda a meio do texto, sente que já pode morrer. Pelo contrário, ele exige um leitor activo e inventor. Reafirmar este tipo de pensamento parece uma pequena nota de rodapé na história da filosofia. Mas, na verdade, a mim afigura-se-me mais como um milagre dionisíaco, encontrar um pensamento simultaneamente tão lúcido, preciso, rico, intenso, veloz e irónico... é uma bênção rara, raríssima. E depois, mesmo quando tudo lhe parece irremediável, combate o niilismo que preenche cada bolsa de ar do Ocidente (ele próprio se considera niilista), hoje e sempre, pelo menos desde que Sócrates justapôs a verdade e o bem, secundado depois pela devoção quase erótica do cristianismo pelos mais fracos (que finalmente, pelo número, se tornaram os mais fortes: “É preciso amar sempre os fortes contra os fracos”, “Anti-Darwin”, Fragmento Póstumo, 1888). Nietzsche nunca se cansou de compor hinos à vida, sem cariz metafísico, à vontade de viver, que é sempre auto-superação, de cada um dos impulsos orgânicos. Contra a ascese cristã, escreveu milhares de páginas sobre uma espécie de religião da vida onde se louva sem reservas a Terra. Zaratustra é o profeta de outro homem e de outro tempo, o sobre-homem e o eterno retorno, que vão habitar o novo mundo sem Deus, isto é, sem qualquer cântico que chame permanentemente o Além e disponha uma tábua de valores que impõe uma consciência triste. É a vitória da vida (como vontade de potência, não há nele nem metafísica, já o disse, nem um biologismo redutor, tanto mais que Prometeu, Édipo ou Antígona venceram, afirmaram-se pelo aniquilamento exemplar, a vontade de potência sobreviveu à morte biológica, e continua a arrepiar-nos sempre que os lemos ou vemos representados, bastando para isso proteger-se do “dilúvio” que referi acima).

Como pôde, repito, acontecer este milagre? Hipótese: porque Nietzsche deixou a Universidade, porque era um bom filólogo e porque tinha um pensamento temerário, intrépido e lúcido. Haveria, pois, de denunciar os próprios limites da razão (sem o semi-deus ex machina kantiano), percebendo desde muito cedo que só conseguia pensar bem enquanto caminhava, decretando que o corpo passaria a ser a “grande razão” (sem hipertrofia racional, defendendo continuamente um processo diferente de produzir verdades pelo jogo dos instintos, o logos nietzschiano nunca apaga o enigmático), ele foi o pensador mais cintilante do século xix, um fluxo de raios contra o torpor crítico. Descobrindo como o niilismo percorre, depois de Sócrates, toda a história da humanidade, que há outros valores além dos velhos e viciados bem e mal, compaixão, humildade... e que o homem vai desaparecer para que nasça o sobre-homem, solitário (por isso é inconcebível colocar Nietzsche no fascismo de massas nazi) e legislador, não um fazedor de leis para os outros, mas um ser reservado que se vai compondo a si mesmo, ciente das linhas de fuga que não o deixam petrificar, mantendo vivo o trabalho de se tornar aquilo que é (o célebre “torna-te aquilo que és”).

Nietzsche nunca quis, e esta é uma das críticas mais frequentes, prolongar as queixas dos oprimidos (Guy Debord: “ceux qui sont toujours prêts à prolonger la plainte des opprimés”). Detestava, sem remissão, os predicadores da morte, que medram no reino da vitimização. Instigadores da escravatura voluntária (“antes querer o nada, do que nada querer”, Para a Genealogia da Moral, III), a vida vivida como desvanecimento. Por isso, a questão irremissível que se levanta quando se lê Nietzsche com alguma lentidão (a boa lentidão filológica, ruminar paciente) é acerca do nosso estilo de vida. Nietzsche não saiu dessa interrogação durante, pelo menos, os últimos anos da década de 80, tudo o que pensou e escreveu nesse tempo prendeu-se com a pergunta “que faço eu da minha vida?” Ecce Homo, autobiografia evangélica (um evangelho pagão, “é preciso renaturalizar o homem!”, diz o autor frequentemente), celebração de si mesmo, concluído imediatamente antes de cair na loucura, é um auto-elogio sincero (não enuncia sobranceria ou confusão mental), um “valeu a pena viver esta vida!” Tanto que, enquanto mestre do tempo do eterno retorno, “quero vê-la retornar infinitamente”. Relembremos que nos últimos dez anos de vida mental activa, Nietzsche caminha quase todos os dias, várias horas, ora nos Alpes, ora em Turim, ora nos montes por detrás de Nice, ora... Nietzsche é um caminhante obsessivo (“a minha única forma de existência possível – fazer caminhadas”, carta a Peter Gast, 1879). É isso que lhe permite escrever as grandes obras da década de 80 (Gaia Ciência, Zaratustra, Para Além Bem e Mal, Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, e um sem número de notas que, com toda a certeza, dariam lugar a mais um livro, não, noutros termos, à montagem pérfida que a irmã fez de A Vontade de Potência, mas a um onde a arte viesse conjurar todo o niilismo mortífero, fechando assim o círculo que iniciou em O Nascimento da Tragédia, 1872). Outra forma de propor uma teodiceia dionisíaca, encenada a partir das velhas tragédias gregas (Ésquilo e Sófocles), conjugando o vital e o sublime. Escreve enquanto caminha, escreve a toda a hora, em qualquer lugar, mas sobretudo quando lança uma perna atrás da outra, músculos retesados, porque “só os pensamentos que temos enquanto caminhamos valem alguma coisa” (Crepúsculo dos Ídolos, 1888). Escreve linhas extraordinárias e ninguém percebe, a indiferença é quase total, “alguns nascem póstumos”. Está tudo ocupado a produzir moraleira, tricotando o bem e o mal para os últimos homens (a acreditar em George Steiner, George Orwell quis chamar a 1984 O Último Homem na Europa). Enquanto ele revela o fundamental para termos uma vida que valha a pena, uma vida terrena, agarrada à Terra, mas sem raízes, para podermos exercer um nomadismo vital, para, como o “grego dionisíaco, querermos a verdade da natureza em toda a sua pujança.” (Nascimento da Tragédia). Para nos esquivarmos das setas envenenadas (com o pior dos venenos: o anodismo) que caiem sobre o presente.

Exactamente uma hora menos dez pássaros

Ao segundo passa e se conta à boca fechada, sempre pela direita enquanto não houver outra distracção. Se sai desta localidade em linha recta, por carril. Se fundem paralelos, logo desaparecem do fim para o princípio de alguns veículos próximos de um silo estacionado na paisagem abandonada. Encostas barbeadas com a raiva do pulso que não sossega, até ver sangue por si escrito numa disposição seca. A sombra que faz uma arquitectura de passagem inferior à localidade, outra, apontamentos de usos e costumes publicitados na badana dos caminhos. Matéria descendente, o banco estreito se desagua ao lado de um tubo de queda gravítica. A solidão dobrada pela calandra pessoalíssima de cada uma das pessoas que, assim, se procuram pelo engano das lentes. O rosto dissimulado pela tampa de uma caixa de visita, impresso na profundidade de uma criança. Perturbação, azáfama de contornos. Construções em quartel. Complexo de bombeiro, uma piscina abandonada pela memória líquida. Volume preenchido, ao centro. Alto rendimento. O nome do atleta descalço por conveniência ao terreno que pisa. O corpo uma zona industrial desmantelada, a parte que pertence ao mar foge para um ponto longe. Reunião imóvel de sacos bem fechados, dentro se leva dessa cortiça expandida pelas lágrimas abandonadas para fora de vidros em movimento. Cobertura especificamente inclinada para fora, como está construída. Uma passageira em pessoa eleva-se, imperturbada pelo gesto próprio da resignação. Outra cobertura, sim. Se lhe enrugam telhas pela testa, em um lugar de cota prévia à catástrofe. Altimétrica, a maior parte de uma cor e o conceito de massa rotunda de pele em redemoinho. Pé-de-vento, estrada inclinada nuns graffiti brancos de habitação plural. Passagem, outra, inferior. A imagem de Cristo, urbano em oposição a uma colina. Incivilizado depósito de água, em altura, indicado por placas à margem da via rápida. Uma linha vermelha. Paragem. A alma em movimento se dissipa pela excepção de um homem que descansa o corpo da paisagem do lado esquerdo, as tatuagens o seu telhado exposto aos pássaros, elementos flectidos à vista. O declive que o envolve, abraçado por árvores nuas. O sentimento é um pigmento imóvel. Matéria para arder, volver. Direita sombra artificial, luzes de presença pelo túnel do qual se diz alguns metros. Objectiva paisagem inteira de luz, que inunda o fim em frente. Cidade. Castelo, grua, Panteão, draga, contentor, rebocador. O país mesmo da cidade e da localidade, é piscina artificial em tons de azul esbatido. Quase não é azul, ao lado de uns braços de rio. Tem uma estrutura simples que não o suporta inclinado, por cemitérios impermeáveis. O cacilheiro vesgo a fugir para fora do olho que vê isto. Águas-furtadas. Casario rasteiro, onde morreram drogados no pouco espaço que os separava das paredes e nasceram poucas árvores. Muros de suporte no lugar de tudo danificado. Aqueduto livre das águas. Pilares toscos betonados contra o terreno, incompreendidos agora à vista de todos. Prédio engolido pelo exército silencioso da vegetação. Parque de estacionamento. Pessoas sentadas a olhar des-Norte, um sentido possível pelo carril. Mão no peito, óculos-escuros, palmadas nas costas. Reunião informal, uma manifestação de insensibilidade ordeira. Mão no braço, outro. Menina, menino. Crianças na Linha 7. Semáforo. Parque de manobras. Torres gémeas. Plataforma. A carruagem, visivelmente, em decomposição estanca o movimento do sangue pelas mãos, pelos braços. Escorre do outro lado ao vidro, me suja. Não é meu, desço escadas em carne viva. Vou, já venho. Alguém fala pelos aparelhos. Não ouço. Subo escadas, por baixo das escadas. Escadas rolantes. Não quis vir por aí, chego bem a tempo de um pássaro na berma do suicídio. Se esqueceu eles das asas, ou é aventura programada. Matematicamente se exercita de zeros, pela largura do fosso calçado por um número de carril. Vaso comunicante. Aviso. O chão estremece num lamento dilatante. Óleo quente. Portas se abrem. A respiração aspirada por um barulho de motor. Procissão de malas fechadas. O diálogo que se solta por alguém que se apanha do ar. Uma freira passa do lado dentro ao pássaro, um bando chega. A voz no altifalante, voo raso pela linha de cota zero do cais. Faróis acesos de dia, no rosto da locomotiva. Pulsações digitais, números na cor do sangue. A mala no braço pendurado da mulher. Informação: chávena de café em branco no fundo azul, dois cavalos dois campónios verdes claro em fundo mais escuro de verde. Roldanas metálicas. Quatro pássaros de súbito, o da frente com comida pelo bico. Extremidades de âncora na poça, barulhos de motor em corpo suspenso. Pássaro que se não demora. A senhora que se aproxima do senhor. Indica com o dedo, visível a direcção. Fim. Mão na cintura. O senhor olha para mim. A senhora também, e usa óculos. Aviso sonoro. É uma voz de senhora. Alguém fala pelos aparelhos. Está afastada. Não ouço. Barulho de motor próximo. À pele, avança por mim. Um rapaz com o cabelo rapado nas laterais da cabeça. Mão no bolso. Alguma barba. O sol por cu apertado, tarde de verão, vestido com a timidez de uns calções. Brancos. Barulhos de motor. Pretos. Gestão e manutenção de edifícios. Pest Control. As batidas da hora cardíaca em sopros. Dois pontos. Alguém fala pelos aparelhos, veste um pólo verde. Desaparece íngreme pela comunicação vertical entre pisos. Escadas. Outra criança, gorda, descalça os sapatos. Brancos. Usa chapéu com motivos redondos. Brancos. Alguém indeciso. Não ouço. Duas linhas depois um homem. Ambos braços, terminados em mãos que se adivinham infra-estrutura de um plano cortado. Ao acaso, passar repetidas vezes as unhas pelo rosto antes de este ser tapado pela mortalha transtornada de chapa e fixações. Rasgos, brânquias de respiração. Portas que se abrem. Uma conversa, um aviso sonoro. Um homem prostrado na aresta de um muro, que o protege da comunicação. Outra, vertical. Escadas. Olhos cravados – braille de solas – no chão de pássaros. Desaparece o aviso sonoro. A máquina desaparece. O barulho de motor desaparece. Silêncio que não existe. De um homem e mulher. Tarde é recente, duas setas obrigam o número a ficar quieto na posição dezasseis vírgula vinte metros. O eme é no fim. Casas decimais. O drogado estanca a estátua fendida do corpo pelo início das escadas. Comunicação vertical. Olha a via rápida do outro lado da fachada envidraçada, agarrado a um copo de papel fumegante. Ouço-lhe os grãos. Usa um casaco preso pela cintura, calça ténis. Brancos. Uma figura a tempo de um pássaro simultâneo a outro aviso sonoro, a uma máquina, a um barulho de motor. Transforma-se a paisagem, passam os veículos desta hora pela estrada em frente. A hora, mesma. Eu mesmo só já aqui, para a contar da esquerda para a direita. Rectângulos pontuais no revestimento da superfície construída. Hortas pobres de gémeos, passagem ínfima de esqueletos. Bainhas de cana, barreiras de insonorização que separam o barulho do motor – um mundo – das vozes da rádio que se transmite, sonâmbula dispersão, pelos homens em viaturas. Miniaturas de braço ao peito em gesso, com percursos a cumprir. Neste dia a uma hora. Moradas horrendas, mandadas construir à distância de um fio de telefone enrolado se sabe lá quantas voltas num pescoço em si mesmo transfronteiriço, entre o peito habitado pela dor e os olhos que não olham. Flores inomináveis às cores, passagens de um homem só. Picadeiro. SOS. Gabiões preenchidos com o lastro de profundidade límpida de um curso ou reserva de água. Um avião se alastra pelo sossegado instante de nuvens pictóricas, irreais, copiadas do céu artificial de um artista inexpressivo. Se leva o todo consigo, setas na mesma direcção do mistério. Coberturas inclinadamente industriais, com o passado degradado em cargas de pátina escorregadia e restos da refeição dos pássaros que se não contam. Postos de transformação. Linhas de alta tensão. Rotundas de pele. Estrela de inertes. Carros-bomba. Painéis solares. Juncos afastados do seu leito de cheia, composições concorrentes de linhas distintas. Urbano sentido suburbano, visto de outro ponto. Um metro, se tanto. Manilhas pelo terreno abandonado à boca do túnel. Pontos plantados de luz, afastados à mesma distância pelo alçado onde se fixam. O rio pela esquerda. Padrão de velas que se descobre na margem oposta. O barco e a ponte no cruzamento de pontos distintos em altimetria, salvo seja. O hospital das doenças tropicais, à distância de um braço mordido por um cão estrangeiro.  Águas estagnadas. A entrada curva na cidade de lado, alfazema circunscrita à casa do guarda da estação do meio, onde as chuvas não param. Largos pingos de gente tempestuosa, outras coberturas, invertidas, compactadas por camadas férteis de veias. Vida de que se depende gota a gota, asas cerâmicas no papel amarrotado de um rosto, de quem o vê por óculos. Obliteradores dos dedos ou a eles relativos, contam-se escombros implantados no final de um ponto. De embarque. A parte sobrante, outro segundo. Um tempo tolerado pelo estômago, refeição como as outras, esquecidas velocidades pela via do tracto tracejado, espaço sim espaço não pelos dez pássaros. Não contam nada, os pássaros, menos a um título.