“Quem pensou o mais profundo, ama o mais vivo.” (Hölderlin, Sócrates e Alcibíades)
Há um toque metafísico no “inactual” de Nietzsche (conceito que ganhou lastro com a publicação das quatro Inactuais, Unzeitgemäße Betrachtungen, 1873-1876), ou no mínimo uma recusa em permanecer refém do tempo capturado pelas ninharias do dia-a-dia (ser inactual é pôr em perspectiva o presente, confrontando-o com passado e o futuro, agarrando um qualquer tipo de eternidade). Mas, leitores de actualidades, onde podemos encontrar hoje protecção contra o dilúvio de informações tóxicas despejadas sobre o mundo (e não são apenas as fake news)?
Separar-se do ruído de massas histriónico para higienizar a mente (logoterapia), quem consegue pensar sacudido por rajadas de discursos irrelevantes, axiologicamente igualitários, onde o bom se perde na amálgama quantitativa que nivela e atrofia? O meu reino por uma comunicação viral, fama efémera, sem o tom iconoclasta que lhe imprimiu Andy Warhol. Liturgia para massas. Nietzsche criticou o igualitarismo rousseauniano, ainda por cima falso (julgava-se meio-génio), por ter destruído as boas hierarquias: valores, gostos, pensamentos... ficaram dispostos horizontalmente, dinamitando o vislumbre de uma civilização adequada aos “espíritos livres”, cheia de embriaguez trágica, contendo sempre mais vida do que morte. Uma cosmologia fisiológica. Uma teodiceia do corpo e da Terra. Um fatalismo não ataráxico e resignado, amor fati dionisíaco e alegre. É por isso que o solitário de Sils-Maria preferia Voltaire, a quem dedicou Humano, Demasiado Humano (1878-1880), a Rousseau (apesar de se encontrarem no gosto pela solidão, única condição de exaltação pessoal, e nas caminhadas vitais). Voltaire tinha uma nobreza de espírito (“noblesse d’esprit”), um estilo refinado, gosto linguístico, mas também bom humor (para Nietzsche mais importante do que se pensa) e recusava visceralmente as crenças religiosas, reino das boas consciência estupidificadas.
O estilo aforístico nietzschiano revolta-se contra o pensamento pesado e longo, fastidioso, empenhado em fabricar demonstrações tão completas que o leitor, ainda a meio do texto, sente que já pode morrer. Pelo contrário, ele exige um leitor activo e inventor. Reafirmar este tipo de pensamento parece uma pequena nota de rodapé na história da filosofia. Mas, na verdade, a mim afigura-se-me mais como um milagre dionisíaco, encontrar um pensamento simultaneamente tão lúcido, preciso, rico, intenso, veloz e irónico... é uma bênção rara, raríssima. E depois, mesmo quando tudo lhe parece irremediável, combate o niilismo que preenche cada bolsa de ar do Ocidente (ele próprio se considera niilista), hoje e sempre, pelo menos desde que Sócrates justapôs a verdade e o bem, secundado depois pela devoção quase erótica do cristianismo pelos mais fracos (que finalmente, pelo número, se tornaram os mais fortes: “É preciso amar sempre os fortes contra os fracos”, “Anti-Darwin”, Fragmento Póstumo, 1888). Nietzsche nunca se cansou de compor hinos à vida, sem cariz metafísico, à vontade de viver, que é sempre auto-superação, de cada um dos impulsos orgânicos. Contra a ascese cristã, escreveu milhares de páginas sobre uma espécie de religião da vida onde se louva sem reservas a Terra. Zaratustra é o profeta de outro homem e de outro tempo, o sobre-homem e o eterno retorno, que vão habitar o novo mundo sem Deus, isto é, sem qualquer cântico que chame permanentemente o Além e disponha uma tábua de valores que impõe uma consciência triste. É a vitória da vida (como vontade de potência, não há nele nem metafísica, já o disse, nem um biologismo redutor, tanto mais que Prometeu, Édipo ou Antígona venceram, afirmaram-se pelo aniquilamento exemplar, a vontade de potência sobreviveu à morte biológica, e continua a arrepiar-nos sempre que os lemos ou vemos representados, bastando para isso proteger-se do “dilúvio” que referi acima).
Como pôde, repito, acontecer este milagre? Hipótese: porque Nietzsche deixou a Universidade, porque era um bom filólogo e porque tinha um pensamento temerário, intrépido e lúcido. Haveria, pois, de denunciar os próprios limites da razão (sem o semi-deus ex machina kantiano), percebendo desde muito cedo que só conseguia pensar bem enquanto caminhava, decretando que o corpo passaria a ser a “grande razão” (sem hipertrofia racional, defendendo continuamente um processo diferente de produzir verdades pelo jogo dos instintos, o logos nietzschiano nunca apaga o enigmático), ele foi o pensador mais cintilante do século xix, um fluxo de raios contra o torpor crítico. Descobrindo como o niilismo percorre, depois de Sócrates, toda a história da humanidade, que há outros valores além dos velhos e viciados bem e mal, compaixão, humildade... e que o homem vai desaparecer para que nasça o sobre-homem, solitário (por isso é inconcebível colocar Nietzsche no fascismo de massas nazi) e legislador, não um fazedor de leis para os outros, mas um ser reservado que se vai compondo a si mesmo, ciente das linhas de fuga que não o deixam petrificar, mantendo vivo o trabalho de se tornar aquilo que é (o célebre “torna-te aquilo que és”).
Nietzsche nunca quis, e esta é uma das críticas mais frequentes, prolongar as queixas dos oprimidos (Guy Debord: “ceux qui sont toujours prêts à prolonger la plainte des opprimés”). Detestava, sem remissão, os predicadores da morte, que medram no reino da vitimização. Instigadores da escravatura voluntária (“antes querer o nada, do que nada querer”, Para a Genealogia da Moral, III), a vida vivida como desvanecimento. Por isso, a questão irremissível que se levanta quando se lê Nietzsche com alguma lentidão (a boa lentidão filológica, ruminar paciente) é acerca do nosso estilo de vida. Nietzsche não saiu dessa interrogação durante, pelo menos, os últimos anos da década de 80, tudo o que pensou e escreveu nesse tempo prendeu-se com a pergunta “que faço eu da minha vida?” Ecce Homo, autobiografia evangélica (um evangelho pagão, “é preciso renaturalizar o homem!”, diz o autor frequentemente), celebração de si mesmo, concluído imediatamente antes de cair na loucura, é um auto-elogio sincero (não enuncia sobranceria ou confusão mental), um “valeu a pena viver esta vida!” Tanto que, enquanto mestre do tempo do eterno retorno, “quero vê-la retornar infinitamente”. Relembremos que nos últimos dez anos de vida mental activa, Nietzsche caminha quase todos os dias, várias horas, ora nos Alpes, ora em Turim, ora nos montes por detrás de Nice, ora... Nietzsche é um caminhante obsessivo (“a minha única forma de existência possível – fazer caminhadas”, carta a Peter Gast, 1879). É isso que lhe permite escrever as grandes obras da década de 80 (Gaia Ciência, Zaratustra, Para Além Bem e Mal, Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, e um sem número de notas que, com toda a certeza, dariam lugar a mais um livro, não, noutros termos, à montagem pérfida que a irmã fez de A Vontade de Potência, mas a um onde a arte viesse conjurar todo o niilismo mortífero, fechando assim o círculo que iniciou em O Nascimento da Tragédia, 1872). Outra forma de propor uma teodiceia dionisíaca, encenada a partir das velhas tragédias gregas (Ésquilo e Sófocles), conjugando o vital e o sublime. Escreve enquanto caminha, escreve a toda a hora, em qualquer lugar, mas sobretudo quando lança uma perna atrás da outra, músculos retesados, porque “só os pensamentos que temos enquanto caminhamos valem alguma coisa” (Crepúsculo dos Ídolos, 1888). Escreve linhas extraordinárias e ninguém percebe, a indiferença é quase total, “alguns nascem póstumos”. Está tudo ocupado a produzir moraleira, tricotando o bem e o mal para os últimos homens (a acreditar em George Steiner, George Orwell quis chamar a 1984 O Último Homem na Europa). Enquanto ele revela o fundamental para termos uma vida que valha a pena, uma vida terrena, agarrada à Terra, mas sem raízes, para podermos exercer um nomadismo vital, para, como o “grego dionisíaco, querermos a verdade da natureza em toda a sua pujança.” (Nascimento da Tragédia). Para nos esquivarmos das setas envenenadas (com o pior dos venenos: o anodismo) que caiem sobre o presente.