João Bosco da Silva, Roncos

João Bosco da Silva, Roncos
poesia

Enfermaria 6, março de 2017, 18 páginas

Os poemas desta publicação integram o livro Teoria da Perdição Unificada, de João Bosco da Silva, a ser publicado em breve pela Enfermaria 6

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Da ausência dos passos na areia

para o Filipe Marques, com admiração e amizade

 

I. 

no alto do estio
a flor abre-se ao apelo
da voz, no topo do insondável. 
visitará de novo a onda
o seu navio, no casco golpeará 
o poema dos marinheiros. 

 

II. 

a ilha de Pharos é um promontório
sagrado, na nossa casa onde deus dorme. 
seguirei os passos do frio rumo
às estrelas pendentes no dorso
de alguém triunfando sobre a eternidade. 
e de noite o meu coração
é recortado no interior de uma vala
desocupada. 

 

III. 

colossal, as colunas
deitam fumo nas horas
declinantes da madrugada. 
um suspiro poderia
retê-las, dar-lhes força -  
silenciá-las. 

deita-te de ti para mim
diz a ousadia do primeiro
verbo, a chama
textual. 
também os pássaros sabem
o nosso futuro, a separação
de mim para ti

IV. 

e a maré pensará voltar
nos braços dos cabelos e da nudez. 
a morte é uma suspeita
que apalpa o tempo, 
desfazendo-o. 

só nós, os inclementes, saboreamos
a terra, 
o terremoto do poeta a casa especial
um messias perdido na voragem
dos sulcos
da sua vinha.  

- o sangue embalsamado – 

V. 

é o tempo contínuo
que liquida
as suas escolhas. 
fomos expulsos, dizias. 
fomos traídos, 
eu sei. 
a idade mais longe poupar-nos-á. 
um silêncio desperta
nos ramos e na pedra. 

VI. 

abrimos a morte com as mãos  
da noite. 
as sete palavras já foram anunciadas? 
a carne palpita desde o alto? 
cheiro a giesta quando sou homem

navego nos lírios na ausência
de deus, 
uma palavra sólida.

Dezembro de 2016

O veneno do nacionalismo

George Steiner

George Steiner

Nunca percebi (dentro da inteligibilidade que envolve o nosso tempo) a palavra (ou frase) de ordem que coloca a “soberania nacional” como o desígnio máximo de uma comunidade, sinto sempre que há um oportunismo revivalista invocando o Leviathan hobbesiano ou a Vontade Geral rousseauniana (correspondendo vagamente à direita e à esquerda políticas, respectivamente), que como sabemos são conceitos, ou signos mais difusos, que acabaram por aquartelar-se numa performatividade dramatúrgica em vez de traçarem com a clareza possível os elementos que configuram o sentido de pertença a uma população que originalmente parecia atomizada pelo vírus do egoísmo.

Sei bem que é uma frase para cartazes, que se insinuam em cada rotunda com uma evidência inquestionável, poupa reflexão e alimenta a pequena veia nacionalista. Mas é também reaccionária e perigosamente beligerante, lógica tribal e ódio/medo do estrangeiro (o conhecido contra o estranho e o medo de perder recursos, no celebrado “vêm roubar-nos os empregos!”).

Como manifesto anti-nacionalista, aconselho este texto de George Steiner, escrito na longínqua década de 70 do século xx (provando que a actualidade revisita o passado mais vezes do que se pensa), um ensaio do The New Yorker traduzido para português pela Gradiva (George Steiner, The New Yorker, trad. Joana Pedroso Correira e Miguel Serras Pereira, 2010).

O nacionalismo é o veneno da história do nosso tempo. Nada é mais brutalmente absurdo do que a tendência por parte dos seres humanos de se atirarem às chamas ou de se matarem uns aos outros em nome da nacionalidade ou movidos pelo sortilégio pueril de uma bandeira. A cidadania é um pacto bilateral que está, ou deveria estar, sempre sujeito a um exame crítico, sendo, se necessário, revogável. Não há cidade humana pela qual valha a pena incorrer-se numa grande injustiça ou numa grande mentira. A morte de Sócrates pesa mais do que a sobrevivência de Atenas. Nada enobrece tanto a história de França como a vontade que levou franceses a raiarem a queda colectiva no abismo, a enfraquecerem radicalmente os laços da nacionalidade (como sucedeu, na realidade), por ocasião do caso Dreyfus. […] A pátria de cada um de nós é a parcela de espaço comum e corrente – pode ser um quarto de hotel ou um banco no parque mais próximo – que a cerrada vigilância e perseguição dos modernos regimes burocráticos ocidentais ou orientais ainda consentem ao nosso trabalho. As árvores têm raízes, mas os seres humanos têm pernas que lhes permitem partir depois de em consciência terem dito ‘não’. (p. 53)

 

«você não sabe»

você não sabe
o que é dobrar
              uma primavera
você só entende
de invernos,
de edredons,
camisinhas,
band-aid,
merthiolate,
e seriados

um cavalo atravessa furioso
                                  esse lago
fundo dos teus olhos
galopando, galopando, galopando

você não sabe
o que são anzóis
você não sabe
o que é um cavalo

a saliva escorrendo da tua boca
escorrendo pelo canto esquerdo
                              dos teus lábios
vermelhos-sangue,

uma isca escapando do anzol

você me chove e chove muito
chove imensa constelação
você não sabe
como molha dentro de mim
como boiam minhas entranhas
                                   e afundam

gravitarei teu corpo marítimo
navegarei tuas paisagens noturnas

cansei de ser um peixe
no lago dos teus olhos
serei um anjo
na primavera das tuas coxas
roendo a geografia tópica
              dos teus segredos

de balde em balde
encherei teus olhos
serei teu lago
largo,              profundo

serei a primavera que não conhece


Explicação das palavras

Entendo agora as palavras que não se esgotam
E como elas tocam a alma
Mesmo sem o tremendo poder das mãos.
Já sei como envergam um manto intensamente tecido,
Ressuscitando a cada vírgula, mesmo após um parágrafo.
É preciso, portanto, deixar jorrar como uma tempestade
Todas as memórias que carregam,
Torná-las espelhos exactos. Precisos.

Não são factos, mas novas verdades que as palavras carregam.
Há nelas um sangue luminoso que jorra depois do silêncio
Uma memória que se desnuda sem medos
Quando libertamos a voz para as palavras.
Uma escuridão que se rasga num quieto brilho
Como um ventre que se abre para uma vida nova.

Por vezes inunda-nos um cântico translúcido
E conduzimos as vozes das palavras em gestos simples
Como uma orquestra perfeita. Precisa.
São mais do que gestos, aquilo que as palavras nos oferecem.
Uma intensidade luminosa,
Sem rede, num trapézio que toca os céus.

Entendo-as, agora que os instrumentos se afinaram.
Oferecem hoje tempestades perfeitas.
São proféticas as palavras. 
Sempre sedosamente raras
Antecipando tempos e marcando um sulco profundo na memória.
As palavras são ventre e trapézio. Espelho preciso.