A história verdadeira por detrás das recentes e violentas colecções de cromos distribuídas gratuitamente nos supermercados

O Supermercado Dois Paus decidiu um dia ter uma reunião alargada. Era uma sexta-feira à noite, e como todos os agentes envolvidos tinham família e filhos, decidiu-se que a reunião deveria manter-se à noite para fomentar os laços entre avós e netos.

O objectivo poderia ser simples, mas cedo se revelou extenso demais para tais mentes ávidas de criatividade: fazer mais dinheiro, isto é, causar uma subida no registo das coisas de dez numa folha oficial sobre o quanto determinada coisa tem, o que, perante a diversidade das coisas, é equivalente a dizer registo “do número de olhos de borboletas no mundo” ou registo “das vezes em que a humanidade foi à casa-de-banho”.

Um senhor, que tinha um fato bonito e era muito jovem e cheio de ideias jovens, muito, muito fora da caixa, teve uma ideia simples:

— Vamos mentir!

Um silêncio incomodado tomou conta da sala; o chefe, de ar não assim tão jovem, embora a camisa justa permitisse adivinhar os músculos definidos e a cintura elegante, e igualmente o nome do ginásio em que passou a manhã, fez-lhe um olhar que só poderia ter uma única interpretação numa reunião de publicitários: “já foi feito”. O jovem foi imediatamente despedido. O pânico instalou-se. Ser despedido era como estar fora de uma coisa em que antes se estava dentro, e isso não é bom, em nenhuma circunstância, embora as coisas por vezes sejam relativas, não todas, o sexo ou o tempo, por exemplo. Ao fim de alguns instantes, mais precisamente três segundos que custaram vinte milhões de coisas de dez (time is money, time is money), alguém arriscou:

— Vamos enganar!

Ninguém parecia acreditar no que estava a ouvir. Uma tal calamidade só acontecera há cerca de uma semana, quando o Silva foi despedido por ter sugerido que se deveria pensar a sério sobre o que é isto da publicidade. O chefe de abdominais definidos e dentes impecáveis nem precisou de dizer nada. O artista levantou-se o mais rapidamente que pôde, e saltou para a morte, lançando-se da janela para o passeio, com a devida consciência de que naquele ramo as ideias já tentadas são ainda piores do que as más ideias. Foi este, aliás, o seu último pensamento.

— Malta, então, novas ideias! Pensem fora da caixa! Pensem fora da caixa!

A sua capacidade de motivação era extraordinária, e logo todos se puseram a pensar em como deviam ser empreendedores e comprar um carro novo na manhã seguinte. Mas naquele dia, aconteceu que uma mulher, que sofria de hemorragias há já algum tempo, depois de ter parido o segundo filho, aproximou-se do chefe, dizendo:

— As crianças! As crianças!

A ideia era tão clara e nova que todos se admiraram. Numa edição conjunta de mentes, um plano simples foi divisado, eficaz e certeiro: uma colecção de cromos! Uma colecção de cromos! Uma colecção de cromos! Todos gritavam o mantra como se de uma epifania se tratasse, saltando todos os estádios necessários ao nirvana. Mas uma colecção de quê?

— De animais!

— De super-heróis!

— De jogadores de futebol!

— De lesmas!

— De batráquios!

— De dinossauros!

— De ardinas!

— De alentejanos!

— De perfumes!

— De coisas!

O nível erótico da sala era tal que logo ali o chefe engravidou uma colaboradora, depois de devidamente assinados os papéis que permitiram juridicamente o sexo entre os intervenientes, uma vez que sempre foi muito difícil fazer amor sozinho, por mais que os homens continuem a tentar.

A ideia que vingou foi a de “coisas”, por ser menos genérica do que “animais” ou “super-heróis”. A todos veio o famoso verso “tão concreta e definida como outra coisa qualquer”, pois a música tinha sido recentemente usada para vender sanitas a pessoas com prisão crónica de ventre, esventrando a palavra “sonho” e substituindo-a por “sanita”.

No dia seguinte a campanha foi lançada e foi um imediato sucesso. O Três Pedras e o Cinco Cinco Cinco naturalmente copiaram a ideia, porque quando é fresca uma ideia copiada não é uma ideia copiada, é como se fosse nova.

***

Passados dois dias, na mesma exacta galáxia e no mesmo exacto planeta, um pai zeloso, que com a devida noção do ridículo amava o seu filho de forma bastante lamechas, ansioso por ir para casa com o seu rico menino, depois de um dia de trabalho, tropeça numa birra. Era uma birra feia, não daquelas em que a criança assegura que a sua vontade é superior aos astros e que os pais superam com amor; não, era uma birra que cheirava ao Supermercado Dois Paus, tinha uma cor definida, a cor do plástico, das coisas, cheirava a colecção de cromos de coisas, que alguém enfiara no bolso do filho com a melhor das intenções mas muito a despropósito, quando nem sequer os pais tinham por hábito ir ao Dois Paus, ou ao Cinco Cinco Cinco, ou ainda ao Três Pedras. Era uma birra focada, precisa, determinada: a birra do Dois Paus.

— Mas porque é que não vamos ao Dois Paus?

— Não costumamos ir.

— Mas porquê? Mas porquê?

— Se continuas a gritar, é que nunca mais vamos...

— Mas então podemos ir?...

— Não agora.

— Mas quando?

— Não sei, não sei...

— Hoje?

— Hoje não.

— Porque não hoje?...

— Porque não costumamos ir.

— Mas porquê? Mas porquê? Eu queria as cartas!...

— Não temos dinheiro para isso.

— Mas as cartas não se pagam, eles dão, eles dão as cartas com as coisas...

Esse é um argumento de peso, os filhos da puta pensaram em tudo, o chefe da camisa bem justa sabe muito; atacar as crianças, atacar as crianças, e ele bem sabia: uns pais dizem que não e, depois de muitos gritos, tiram as cartas que ninguém pediu para dar, arrancam-nas perante as lágrimas consumistas e consumidas dos filhos, dizem disparates incompreensíveis para uma criança: “eles conseguiram, estás a fazer o que eles querem que tu faças, não vás nisso”, e põem os miúdos de castigo por terem levantado a voz para os pais; ah, mas outros, talvez a maior parte, ah, vira à esquerda e em vez de ir ao Leva Dois Paga Três opta pelo Dois Paus. Afinal, tinha de ir às compras, não era? No banco detrás, a criança sorri, consciente do seu poder sobre as coisas, confiante na sua colecção de coisas. Cinicamente, no ginásio, o chefe observa no espelho a definição quase exemplar dos seus músculos. É um homem, de facto, muito bem sucedido.

Com os melhores cumprimentos,

Pedro Braga Falcão

Da admiração

Brigitte Bardot no atelier de Picasso em 1958.png

A admiração habita no mundo da ética, sendo simultaneamente um valor e um modo de nos relacionarmos com outrem (não apenas humanos). Hoje, parece fora de moda, a hipertrofia da autoestima orientou a admiração para dentro, acomodando-a nas diversas modalidades do narcisismo. No máximo, quando se trata de pessoas, o outro é um espelho onde nos podemos admirar.

Pelo contrário, a verdadeira admiração é uma forma de buscar o grande, o belo, o bom..., e desta forma ela é inspiradora, torna-nos melhores. Por isso, Victor Hugo queria tanto admirar como ser admirado. Este discurso, um pouco lamechas, eu sei, pode ser irradiado com uma nota de 1880 de Friedrich Nietzsche: “Para o inferno com todos os imitadores e seguidores e bajuladores e admiradores e devotos!” Mas esta incandescência retórica, de alguém que foi tão pouco admirado em vida, não resiste à força da definição que nos deixou René Descartes nas Paixões da Alma: “A admiração é uma súbita surpresa da alma que a leva a considerar com atenção objectos que lhe parecem raros e extraordinários.” (II, 70; cf. ainda 53 e 71). Objectos ou pessoas, claro. Reconhecimento feliz, pois, do extraordinário, que permite a constatação venturosa da superioridade do outro. Mais, a dinamite nietzschiana cede à sua própria disposição apolínea, no mesmo ano da nota anterior refere que “Se não soubermos ler um livro pelo amor do outro, como será pobre! Devemos senti-lo como o autor.” (Isto levanta interessantes questões hermenêuticas, que não cabem aqui).

Mas é nesta valorização do exterior, do que está fora de nós que as coisas se toldam, em 1968 Gilles Deleuze dizia que “A doença das pessoas de hoje é que elas já não sabem admirar nada”. (O medo da superioridade do outro conduz ou ao desdém ou à inveja). No seu comentário a Nietzsche (Nietzsche et la philosophie, 1962), mostrava como os tempos estavam propícios a odiar tudo o que era amável ou admirável, diminuir tudo através de facécias e interpretações vulgares, ver em todas as coisas uma armadilha, sobrevalorizando a prudência. Contra isto, disse mais tarde que ao trabalhar sobre um autor procurava “nada escrever que o possa afectar de tristeza, ou, se está morto, o faça chorar na sua campa.” (Conversações). E isto, é bom que se diga, não o impediu, como não impedirá ninguém, de ser lúcido ou crítico. A admiração, para quem não é minúsculo, eleva, mesmo quando não alimenta a emulação. Ao contrário da mesquinhez, que amplifica, ou inventa, a penúria e o defeito, a admiração destaca o extraordinário, como escreveu Descartes. E é esse “extraordinário” que encontro na natureza ainda relativamente natural, nos animais e em certos humanos (sobretudo aqueles que conseguiram tornar-se heterogeneamente eles mesmos). Com alguns, para imensa felicidade minha, costumo conviver. Uma felicidade espontânea, por estar junto deles, ouvi-los e vê-los. Uma felicidade diferida porque me inspiram, me permitem pensar e ser melhor, mesmo quando não lhes rendo inteira justiça. No final, espero que a minha admiração lhes dê algum retorno, que não seja eu o único favorecido.

Etnografia do Algarve

Êxtase costuma ser da cor do lazúli
O algarve é uma região
Onde existem povos com o jumento domesticado
E outros que não chegaram a tempo
Da escolaridade obrigatória
Nas ruas vêm-se estrangeiros de muito dinheiro
E outros com não muito dinheiro
Por vezes irlandeses gordos e embriagados
E franceses sem capacidade financeira para o sul
Do seu próprio país

O algarve começa neste século
A sua mais frondosa crise de identidade

Pendentes de um bezerro dourado
Ou de um jogo de sombras estrangeiras
O algarve morre aos poucos
Como um areal infinito e atemporal
Que teima em encerrar-se no vácuo
De uma ampulheta dourada

Êxtase costuma ser uma palavra
  Da cor do lazúli
E o que salva o algarve são
Pescadores escondidos em impermeáveis
Verdes, roxos e violetas   de 1986
Encostados às suas bicicletas
Encostadas às suas vontades
Juntos numa esquina sem nada para dizer
O que salva o algarve são senhoras com os dentes necessários
E um lenço a cobrir-lhes o cabelo
Vendem fruta da horta no mercado
Sem cálice nem corola  
O que salva o algarve
É a ria deserta no inverno
E não o deserto de filas de carros
Como se de um conto do Cortázar se tratasse
Sob um sol ardente
Nas manhãs de verão
O que salva o algarve não são as palmeiras que nunca antes estiveram
À la venice beach, chico
São as alfarrobeiras tristes
E as oliveiras mudas
É o canavial que acompanha os riachos
Da serra-mãe
Talvez a revolução seja isso e eu não a veja
Êxtase é da cor do lazúli

Quatro poemas de Israel Azevedo

DANTE

Dura
como pedra, a face
austera. Pesada pena
ao punho crava.
Crava ao punho, a lavra.
Na rubra touca, belas:
folhas de louro
paralelas.

 

ESBOÇO PARA FRANZ KLINE

fortuita moldura ampara a pintura
onde uma face afilada adorna a figura
de dois olhos tristes
de estreita abertura.

 

KOŠICE

mais
do que vastas
obras
entre mãos
tornadas
cores
que cintilam
aos cachos
que dos altares
deslizam
a ter
com olhares
que
arqueiam.

 

TUAREG

atai aos lábios,
    o silêncio de mil desertos

moldai aos ventos,
             dois olhos de areia.


Interior, apontamentos para um ficção

É um vilarejo cujo o calcário do caminhos
obriga os homens a um andar curvado,
ensimesmado, de uma inata errância –
o andar de um homem de algum modo
exilado, embora seja a mesma
a aldeia e mesma a hóstia mascada
e a distância é um abismo que se escava
em busca de seu incólume azul.

Em meio à violência, a melancolia
degenerou para uma suavidade acalanto.
Branco frêmito de chuva entrecortado
pelo guincho de porcos no abatedouro
e a desesperança, crescente, condensa-se
nas manhãs de céu baixo e na neblina
que faz arder a memória e a carne.

Nas esquinas, pick ups enferrujadas
e fios de eletricidade que se cruzam
e engaiolam o infinito. Há obras
interrompidas: montes de areia,
tijolos empilhados, pedras em britas,
a chuva de ontem que ainda goteja
de uma laje inacabada.

De súbito, dois pierrots
(ágeis como acrobatas de um circo
mambembe, inúteis como bailarinos
que encenam uma sonata ao luar
para uma plateia de crianças cegas) –

Dois pierrots, enfim, empertigados
desembainham espadas e duelam.
São homens  - igualmente
tristes brutos vingativos.

O que morre, crucifixa o azul com os olhos
e não consegue delimitar uma única fronteira:
o que é nuvem, o que é chuva,
o que é sol, o que é abutre,
o que é a vida que se desenlaça.

Duelaram pela miséria de uma mulher
de vestidos esgarçados:
grávida, mas que ao sentir
o que gera em suas entranhas, pressente
o arpejo de um mar que não conhece,
mas que traz na fissura dos ossos.

O mar de um país de assassinos.