Carta de Charles Bukowski a Henry Miller

Tradução de João Coles

O casal Webb publicou duas obras de Henry Miller depois de ter publicado os seguintes livros de Bukowski: It Cacthes My Heart in Its Hands e Crucifix in Deathland

[A Henry Miller]
16 de Agosto de 1965

bom, é o meu 45º aniversário, e com esta desculpa esfarrapada tomo a liberdade de lhe escrever – apesar de imaginar muito bem que recebe cartas suficientes que lhe dão cabo da cachimónia. até eu as recebo, a maioria delas bastante vivaz e eléctrica. é quando eles começam a falar de poemas que se tornam insípidos. e ainda apensam os poemas. a ouvir Chopin – sim, por Krristo, sou quadrado em certas coisas – e a beberricar uma cerveja. conheci o seu amigo Doc Fink e as suas piadas sobre os judeus, e também a sua espécie de concepção laxista sobre a sonoridade e a autenticidade. ele trouxe cerveja e a mulher atrelada, ouvi-o e ofereci-lhe uma colagem ou qualquer coisa que tinha feito. ele é o seu protegido, mas, merda, isso não é novidade nenhuma – muitos de nós somos.

em todo o caso, ele ofereceu-me aquele livro de Céline – como é que se chama? – Viagem ao fim da noite. oiça bem, a maioria dos escritores dá-me vómitos. as palavras deles não chegam sequer a tocar no papel. milhares de milhões de escritores e as palavras deles, palavras que não chegam sequer a tocar no papel. mas Céline fez-me ter vergonha do pobre escritor que sou, deu-me vontade de mandar tudo pelos ares. um maldito dum mestre a sussurrar dentro da minha cabeça. deus do céu, parecia um rapazinho outra vez. todo ouvidos. nada se mete entre Céline e Dostoiévski a não ser que seja Henry Miller. enfim, depois de me sentir mal após descobrir a minha pequenez, retomei a leitura, e deixei-me guiar pela mão, de boa vontade. Céline era um filósofo que sabia que a filosofia era inútil; um fodilhão que sabia que foder era praticamente uma impostura; Céline era um anjo que cuspia nos olhos dos anjos e descia pela rua fora. Céline sabia tudo; quero dizer que ele sabia tanto quanto havia para saber se tivermos dois braços, dois pés, uma gaita, alguns anos de vida ou menos do que isso, antes de tudo o mais. claro que ele tinha uma gaita. mas o Henry sabe isso. ele não escrevia como o [Jean] Genet, que escreve muito, muito bem, que escreve bem de mais, que escreve tão bem que nos põe a dormir. oh diabo, enquanto isto estão aos tiros nos telhados; na noite passada deitaram um Molotov na Hollywood Blvd. e na Ivar, que é bastante próxima, mas não próxima o suficiente para me beijar. eu trabalho com pretos e a maioria deles adora-me, portanto talvez devesse pendurar um cartaz ao pescoço a dizer, EI EI! OS PRETOS ADORAM-ME!! mas isso tão-pouco funcionaria porque depois um cabrão dum branco qualquer me daria um tiro. santo Deus, está aqui uma mulher a dar de comer a um miúdo, e enquanto lhe escrevo inclino-me para a frente e digo-lhe, “oooooh, prova um bocado de banana, PROVA UM BOCADO DE BANANA!!” eu, o bebé durão. enfim, passamos todos por isso. têm estado nisto desde que comecei a carta, tenho o rádio ligado e estou a fumar um charuto reles com a minha cerveja. por isso, se isto estiver confuso não é por ter um macaco verde debaixo da mesa a agarrar-me os tomates.

um tudo-nada bêbedo, como é hábito, sim. Chopin revive sob os dedos de...quem? Pennario, Rubenstein? o meu ouvido não é grande coisa. os ossos de Chopin estão mortos e continuam aos tiros nos telhados e eu sentado numa cozinha suja e barulhenta no inferno escrevendo a Henry Miller. mais uma cerveja, mais uma cerveja. persisto com a teoria de não desistir; eu não vou desistir de escrever se tudo voltar à estaca zero, não vou desistir mesmo que mandem um coro de prostitutas pontapear-me os olhos e um grupo de seis zés-pereiras mariconços a dar no bongo à la Havana, meu Deus. não comecei a escrever até cumprir 35 anos e se esperar outros 35 não restará grande coisa de mim. enfim, cumpro quarenta e cinco esta noite e estou a escrever a Henry Miller. tudo bem. acho que o Doc Fink me acha um snob. é que eu não acredito em ir bater à porta de alguém. sempre fui um solitário. vou ser franco: não gosto da maioria das pessoas – elas cansam-me, baralham-me, revolvem-me os olhos, roubam-me, mentem-me, fodem-me, enganam-me, ensinam-me, insultam-me, amam-me; mas, mais do que tudo, falam falam FALAM até que me sinta que nem um gato enrabado à força por um elefante. não me faz bem nenhum, em demasia não me faz bem nenhum. nas fábricas e nos matadouros as pessoas estão demasiado ocupadas para falar, e, por isso mesmo, gostaria de agradecer pela bondade dos meus patrões ricos. quando eles me despedem nunca oiço as vozes deles, e sou o maior filho da mãe que mais vezes se demitiu e foi demitido que alguma vez conhecerá; mas nunca oiço as vozes deles. é atencioso e delicado e cortês e eu saio dali porta fora e nem sequer penso em disparar de um telhado sobre alguém. penso: bem, vou dormir durante uma semana e depois ponho-me à procura. ou vou para casa dar umas trancadas e beber durante a noite inteira. este tipo de coisas. encaixo-me perfeitamente nestes planos. sou um merdas. mas um solitário sobretudo. e agora que tive uns poemas publicados vêm bater-me à porta e continuo a não querer receber ninguém. a diferença é a seguinte, se formos uns solitários e uns zés-ninguém, somos doidos; se formos solitários e um tudo-nada conhecidos, nesse caso somos snobs. hão-de encontrar sempre a prateleira certa onde nos encaixar independentemente do que fizermos. até esta mulher aqui tem de me corrigir constantemente diga a porra que disser. posso acordar de manhã e dizer, “meu Deus, que calor.” aí ela dirá, “tu só achas que está calor. não está tanto calor quanto ontem. imagina que vivias em África...” este tipo de coisas.

onde é que eu estou? outra cerveja? com certeza.

agora a menina quer dactilografar. ok, dá-lhe, querida, dá-lhe. vou buscar a máquina e lá começa o choradinho. “raios me partam, digo-lhe, não vês que estou a escrever ao Henry Miller? não percebes que é o meu 45º aniversário?”

em todo o caso, espero que tenha recebido os 3 Crucifixos. o Webb deu-me 16 e não devia ter-mos dado porque tendo a distribuí-los a torto e a direito, a qualquer pessoa que esteja à minha volta quando estou bêbedo, mais os meus quadros, mas os quadros são um nojo, acho eu, continuo a tentar fazer com que o amarelo sobressaia entre as outras cores, talvez como a minha coluna vertebral. claro, sou amarelo, sou amarelo e sou rijo e estou cansado e estou bêbedo, e a vida dissipa-se como um peido e eu atravesso pelo meio. continuo a pensar no [D. H.] Lawrence a ordenhar as suas vacas, continuo a pensar na Frieda dele. sou um doido varrido. continuo a pensar nos rostos das fábricas, das cadeias, dos hospitais. não sinto compaixão por estes rostos, não os consigo decifrar, é só isso. como frutos silvestres a balouçar ao vento, como caca de pássaro sobre a estátua da vida. que raio. outra cerveja. bom, agora o [César] Franck está no ar. tomamos aquilo que nos dão. embora a S. [Sinfonia] em ré menor não seja má. quando fui casado com uma milionária, estava deitado no tapete bêbedo a ouvir a Sinfonia em ré menor do F. [Franck], ela ficou ali sentada e disse, “acho que essa música é feia” e assim soube naquele momento que o milhão sumira. já não havia volta a dar com ela. e para o provar, nessa mesma noite quando a fodi no quarto, as prateleiras todas caíram e as plantas e as bugigangas desabaram sobre as minhas costas e no meu cu. quero dizer, eu faço um bom serviço, mas não assim tão bom. ela também achou feio eu ter rido na altura. enfiei-o outra vez e vi o milhão a voar, a voar... “não gosto de um homem que faz pouco de si mesmo, não gosto de um homem que ri de si mesmo. gosto de um homem que tenha orgulho.” disse-me ela. bem, tenho de rir porque sou ridículo; tenho uma natureza efémera, eu cago e limpo o meu rabo, estou cheio de ranho e gosma e insectos e ideias grandiosas...mas na realidade sou um merdoso, nada mais do que um merdoso. ora, primeiro apareceu o tipo refinado com o alfinete roxo na gravata e a voz culta. porém, no fim de contas, ela acabou com um Esquimó, um pescador e professor japonês, o Tami, penso que era, é, esse o seu nome. o Tami ficou com o milhão; eu fiquei com o alfinete. presumo que não ouçam Franck.

em todo o caso, espero que tenha recebido os livros. a mulher ocupou-se do trabalho sujo, foi lá abaixo ao mercado e trouxe uma caixa de cartão e recortou-a ela mesma. um amigo teu que afirmou que pagaria pelos livros disse, “cobrarei apenas as despesas de secretariado.” propus 5 paus por um livro, o que não era mau, e uma vez que os meus direitos de autor são de apenas 10 cêntimos por exemplar em cada um dos 3000 livros vendidos, pensava que estava a fazer um negócio da China. presumo que ele tenha achado o mesmo, porque já passaram 2 semanas e ainda não sei nada dele. mas mais tarde lá lhe disse, “se estás nas lonas, esquece.” e suponho que estejamos todos nas lonas. a tumba está sempre à espreita e não lhe podemos fugir com o rabo à seringa, nunca. houve uma vez que vivi num quarto em Atlanta a um dólar e 25 cêntimos por semana. vivi durante um mês com 8 dólares. e escrevi poemas nas margens de jornais emporcalhados que encontrava no chão. sem luz, sem aquecimento. não sei o que é que aconteceu a esses jornais. tenho uma vaga ideia do que me aconteceu a mim. isso é normal, mesmo quando a coisa se torna anormal. estou a dar-lhe muita palha esta noite. ainda está a ler?, pergunto-me. enfim, 45 anos é uma idade triste. 30 foi a pior de todas. sobrevivi-lhes. eu não finjo ter coragem. só me pergunto se a tenho.

agora prepare-se que vou praguejar: naturalmente que gostaria de o conhecer. gostaria de o ver sentado numa cadeira à minha frente. probabilidade praticamente nula. não sou grande espingarda a conversar. não me sinto bem a maioria das vezes. seria como um profeta conhecer Deus. depois ia à casa-de-banho mijar, e eu diria, olha, afinal Deus também mija. não odeie a adulação, Henry, já estava a merecer alguma. já passou por isso. só lhe chamo “Henry” por causa de umas cartas extensas e apatetadas de um estudante qualquer que insiste em chamar-me “Sr. Bukowski” o tempo todo até que me sinta enlevado, mas aquilo que ele quer mesmo fazer é rastejar pelo meu cadáver achatado. em todo o caso, se alguma vez decidir vir cá, ena pá, o meu número de telefone é NO-1-6385 e a morada está no envelope. agora estou a gozar consigo. esqueça.

Céline, Céline, oh meu Deus, Céline. como se inventou um homem daqueles??

outra cerveja.

de qualquer maneira, posto que é Céline, quero que saiba que já experimentei de tudo, independentemente do que escrevo: os bancos dos parques, as fábricas, as cadeias; fiz de segurança num prostíbulo em Forth Worth, trabalhei numa fábrica de biscoitos para cães, partilhei a cela com o inimigo público n.º 1 (que sorte!); tramei e fui tramado; estive nos hospitais com as tripas à mostra; fui para a cama com todas as putas e todas as mulheres loucas de Costa a Costa; todos os trabalhos terríveis, todas as mulheres terríveis, tudo, e só um pingo disto aparece na minha poesia porque ainda não sou homem o suficiente e talvez nunca o venha a ser; fui escorraçado na última La Grande Ronde Review por ser grosseiro, por a minha ortografia ser má. enfim, todo o tipo de golpadas. não comprei o exemplar, não tive coragem, mas contou-me outra pessoa. deram-se ao trabalho de me esfolar ao longo de 5 páginas e meia. talvez esteja a fazer progressos?? mas o que a maioria não percebe é que, apesar da minha ortografia ser má, escrevo boa parte das coisas bêbedo e os malditos dos dedos saltam ao lado e na manhã seguinte sinto-me demasiado indisposto para as ler, salto-as, ponho-as de lado, tal como farei com esta carta. a manhã não é forte o suficiente para aguentar a noite.

bom, em vez de me alongar, acho que me vou deter. certamente e sem dúvida alguma já falei o suficiente. depois de um início de loucos tenho picado o mesmo ponto faz 8 anos num trabalho horrível. mas no outro dia, vendi um quadro por $20. coisa nunca antes vista. alguém de uma pequena cidade na Florida alvejou-me com uma nota de vinte e disse, “mande-me um dos seus quadros.” parece que ainda não estou morto. o Henry nunca morrerá.

Desenhos de Bukowski enviados em apenso a Henry Miller. Lê-se nas legendas "The Age of Christ" e "On turning it down for lack of money"

Sergio Maciel, Tanta vez o cântaro vai à fonte

Sergio Maciel
Tanta vez o cântaro vai à fonte
(poemas mudados para o meu corpo)
poesia

Enfermaria 6, janeiro de 2018, 22 páginas

[Ler e descarregar livro]


Sergio Maciel

Sergio Maciel (1992) é poeta, tradutor e editor da revista escamandro. É graduando em Letras Clássicas pela Universidade Federal do Paraná. Publicou recentemente seu primeiro livro de poemas, ratzara (Dybbuk, 2017). Além disso, é um dos integrantes do grupo de performance Pecora Loca.

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após o estampido, 
lasca tênue
no cascalho
                      sobre o entulho,
ainda se ouve (rente

à aurora):
um signo do infinito
a retina
roendo o rubro das bocas; 

acima,

uma pedra tortura outra
pedra,
            quase estrela,
nas treliças do mundo.

Playlist

sobre as pontas; basta o mormaço para secar; entre tantas corridas de fôlego

sobre as pontas

como argila em minhas mãos
meu corpo modula num esforço tétrico
alumínio sílica e água
digerindo-se por curvaturas
minerais
como em minhas mãos
como minhas mãos
já são dez dedos
inócuos
por impulso tátil
mastigo vestígio digital
como mãos


basta o mormaço para secar

foi logo ontem que meu pé esfarelou
todos os vinte e seis ossos e os vinte músculos individuais
a queratina já é resto de cultura agrícola
revolve num limite dos outros elementos
descompactando para maior infiltração
ela é migalha
ou paisagem areada


entre tantas corridas de fôlego

 sua vida sobre quatro apoios estáticos
em cima dela um copo de água dois ou cinco
tudo em volta grão
pilhas de canetas monte de caderno em branco
seus livros por ler e duas vidas por gestar
muito ar e ela sem
sua letra transformada em times new roman
espaçamento 1,5 mínimo de 100 laudas
há uma atualização pendente e ela sem
seu itinerário em rodas giratórias
banhas unhas pulmões miolos
seus pedaços abafados sobre grãos
compondo eles próprios a massa
de onde imerge o tubo que faz da sua traqueia
traqueia


história de uma banheira

Sylvia Plath
Tradução
de Stefano Calgaro

 

A fotográfica câmara do olho
grava as nuas paredes pintadas, enquanto uma luz elétrica
esfola os nervos de cromo do encanamento; 
tal pobreza assalta o ego; pega
nua no mero quarto atual, 
a estranha no espelho do lavabo
veste um sorriso público, repete nosso nome
mas escrupulosamente reflete o terror usual. 

Quão culpados nós somos quando o teto
não revela rachaduras que podem ser decifradas? Quando
o lavatório sustenta não ter mais chamada santa
que ablução física, e a toalha secamente
nega que as caras ferozes do troll espreitam
em suas dobras explícitas? Ou quando a janela, 
cega de vapor, não admitirá a escuridão
que envolve nossas expectativas em sombra ambígua? 

Vinte anos atrás, a banheira familiar
gerava uma leva de presságios; mas agora
a água da torneira não jorra perigo; cada caranguejo
e polvo – esperneando logo além da vista, 
esperando por alguma pausa acidental
em rito, para atacar – definitivamente se foi; 
o mar autêntico os nega e arrancará 
a carne fantástica até o osso. 

Tomamos o mergulho; sob a água, nossas pernas
vacilam, levemente verdes, estremecendo diferente
da genuína cor de pele; podem nossos sonhos
manchar as linhas intransigentes que desenham
a forma que nos encerra? O fato absoluto
Invade mesmo quando o olho revoltado
está fechado; a banheira existe atrás de nossas costas: 
suas superfícies reluzentes são em branco e verdadeiras. 

Ainda assim, os ridículos flancos nus incitam
a fabricação de algum tecido para cobrir
essa dureza; a precisão não deve seguir à solta: 
cada dia exige criarmos nosso mundo inteiro de novo, 
disfarçando o horror constante em um casaco
de ficções multicores; mascaramos nosso passado
no verde do éden, fingimos que a fruta iluminada do futuro
pode brotar do umbigo deste desperdício presente. 

Nesta banheira em particular, dois joelhos se sobressaem
como icebergs, enquanto mínimos pelos castanhos se arrepiam
nos braços e pernas em uma franja de algas; sabão verde
navega a maré que jorra dos mares
rebentando em praias legendárias; com fé 
nós deveremos embarcar em nosso navio imaginado
e navegar selvagemente entre ilhas sagradas da loucura
até que a morte estilhace as fabulosas estrelas e nos torne reais. 


tale of a tub 

The photographic chamber of the eye
records bare painted walls, while an electric light
lays the chromium nerves of plumbing raw; 
such poverty assaults the ego; caught
naked in the merely actual room, 
the stranger in the lavatory mirror
puts on a public grin, repeats our name
but scrupulously reflects the usual terror. 

Just how guilty are we when the ceiling
reveals no cracks that can be decoded? when washbowl
maintains it has no more holy calling
than physical ablution, and the towel
dryly disclaims that fierce troll faces lurk
in its explicit folds? or when the window, 
blind with steam, will not admit the dark
which shrouds our prospects in ambiguous shadow? 

Twenty years ago, the familiar tub
bred an ample batch of omens; but now
water faucets spawn no danger; each crab
and octopus — scrabbling just beyond the view, 
waiting for some accidental break
in ritual, to strike — is definitely gone; 
the authentic sea denies them and will pluck
fantastic flesh down to the honest bone. 

We take the plunge; under water our limbs
waver, faintly green, shuddering away
from the genuine color of skin; can our dreams
ever blur the intransigent lines which draw
the shape that shuts us in? absolute fact
intrudes even when the revolted eye
is closed; the tub exists behind our back; 
its glittering surfaces are blank and true. 

Yet always the ridiculous nude flanks urge
the fabrication of some cloth to cover
such starkness; accuracy must not stalk at large: 
each day demands we create our whole world over, 
disguising the constant horror in a coat
of many-colored fictions; we mask our past
in the green of Eden, pretend future’s shining fruit
can sprout from the navel of this present waste. 

In this particular tub, two knees jut up
like icebergs, while minute brown hairs rise
on arms and legs in a fringe of kelp; green soap
navigates the tidal slosh of seas
breaking on legendary beaches; in faith
we shall board our imagined ship and wildly sail
among sacred islands of the mad till death
shatters the fabulous stars and makes us real. 

Cinco poemas de Gabriel Resende Santos

potência

só em voga para a alma
dos que são pegos
em fins de semana
na folga da aula
e do estágio: o choque
da tropa que sempre
passou longe e que
de repente perto
virá a ser caldo
da composição
mais tarde alinhavada
no calhau do iphone:
abrir-se das mãos de fabro
na neblina de veneno
e do terceiro olho
até então vedado
que agora arde

é menos distinto
direto da bomba
medir o labor de fêmur ulna
e tendão pela luz
(a que vem na conta)
na pavuna na clausura
das turbas de trem e metrô
antes de reaver outro
metro: a mensura da língua
no falso reino do vigor


fotografia úmida

atrás da lente
voyeur
a vista cansada
súbita se reequilibra
ao conjurar a saída
da dívida da fome da raiva
no extremo do pé da mão do fio
do palimpsesto encardido
tatuagem sobre tatuagem
lábio sobre lábio

flash

no lugar da modelo
livros encharcados
na banheira das sirenas


calma

 reaja ao pavor
da ideia escapista
ao corte da visão
se a corda afrodisíaca
desnuda suas fortes
escamas distendendo
a mão premindo a
traqueia a ponto
de fazer feridas
sua presa moída
no aperto marcial
expelindo vida
não se entregue
à branda lírica
dessa luz do fim
e lance-se ao
tapa-olho e tape
o calvário do bicho
face que morre
asfixiada em couro
e algodão
arrefeça o ódio
em sintaxe
e circulação


a extroversão

 soltar as farpas
na própria língua
e pelo ferro filante
insinuante à mucosa
afetar misantropia
com dentes rúbidos
e na fisionomia
certo descaso
enquanto desova dos lanhos
sílaba por sílaba
a fala afoita
hemorrágica mas
enfim liberta