Playlist de 'Gatos no Quintal'

José Pedro Moreira, um dos nossos editores e autor do recém-publicado Gatos no quintal, cura uma playlist para acompanhar o livro.

Aproveitamos para recordar que a apresentação do livro é hoje, pelas 18h, no Bar Irreal. A apresentação está a cargo de Simão Valente e contará com leituras de Tatiana Faia e João Coles.

Rebuçado, Berlim, Uma mulher e a sua vida, Nº 23 (Slow art)

Rebuçado

O meu pai e o meu avô materno
partilhavam o matutino.
O primeiro lia-o seriamente
antes de ir trabalhar.
A seguir eu levava, brincando, o novo
mundo ao reformado, dez portas
e oito décadas mais à frente.
Não sei se o lia.  

O desemprego da Grande Crise,
a guerra e a ocupação nazi,
a luta pela reconstrução,  
a reforma, recente e reduzida,
quando por fim havia amplo emprego
e hippies a cantar por todo o lado. 

Sem manchete nem memória, o novo
mundo, em plena crise do petróleo, entrava
de calções e recebia um rebuçado.


Berlim

Poucas memórias são memoráveis
mas lá estava eu em cima do Muro
numa nuvem de jovens gafanhotos
famintos de História em primeira mão.

Do lado capitalista, saquinhos de plástico  
repletos de cascalho colorido
alimentavam falsos testemunhos
por um punhado de marcos.

Do outro, aluguei escopro e martelo
(uma foice não ceifava nada desse
betão armado), subi a um escadote
comunitário e arregacei as mangas.

Por uma unha negra (o operário
só me dera dez minutos) levei
duas lascas da Guerra Fria para casa,
uma delas vagamente grafitada.

Depois de viúva, a mãe arrumou
as memórias, confiando as minhas
à minha metade mais sentimental: 
«caso ele se recorde um dia».



Uma mulher e a sua vida

Um homem e a sua vida
Yehuda Amichai

De uma tia doce e enrugada
como um figo seco pelo fim do outono
todo o mundo louva a sabedoria. 

Assim a sobrinha, sua menina   
de quarenta anos, apaixonada,
ao apresentar-lhe o namorado careca. 

Na sala, a tia oferece ambas as faces   
a beijinhos estranhos e familiares,
escuta, observa, serve chá de erva-príncipe     
em chávenas da Vista Alegre   

e puxa a sobrinha para a cozinha.
Lá, com o bolo-rei fatiado, dá-lhe
a sua benção salomónica: «Fode,
minha filha! Fode, mas não te cases».




Nº 23 (SLOW ART)

 

para a Zé

 

Pintemos o quarto outra vez,  
outra vez o quarto como novo.

Não digo de branco, talvez
cor-de-rosa meia-idade.

Mais vivo do que o verniz de unhas
tão na moda entre senhoras que

contam os seus dias sentadas
no sofá da pedicura.

Menos primário do que o encarnado  
dos caloiros da paixão. 

Não chamemos nenhum pintor,
nenhuma arquitecta de interiores. 

Sejamos nós mesmos, tu e eu.
Tiremos os cortinados     

e dois pincéis aos nossos filhos,    
desses de Educação Visual.

Todos os dias um quadradinho, 
não mais do que uma hora.  

Como o rei que se perdeu

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Para a Penélope

Como Agamémnon, que sacrificara a filha para poder guerrear os troianos, Josué sacrificara a família para atingir o sucesso num país distante, mas esse sucesso, ainda não tangível, sabia a cascalho, a cacos de vidro às voltas na língua. Sucesso real, reconhecia agora, esventrado e perdido, espreitando um irrecuperável passado estampado em fotografias e memórias enegrecidas por comportamentos dignos de chimpanzé, de um primata a enxertar as paredes com murros, a partir pratos, molduras, portas, armários, a zurrar, minuto sim, minuto sim, a vomitar ódio e caos, era o terno sorriso da menina a puxar-lhe a manga da camisa para o sofá, a mulher a enlaçá-lo na cama e a cantar no chuveiro. Este era o sucesso que durante tantos anos o acompanhara e que, aos poucos, sem saber bem como, perdera, ou fora perdendo, visto que a mulher, mesmo que alterada e também consumida pelas suas próprias falhas, ainda o seguia. Ajoelhado na igreja, com a testa colada às mãos, a benzer-se sem parança, a repetir a ladainha apreendida na catequese, o pai nosso que estais…, mergulhava no passado, nos seus erros, imbecis erros, no que poderia ter feito melhor para ter actuado como alguém compassivo. Da igreja saltou para o balcão de um bar, local onde permaneceria semanas a fio esvaziando grades de cerveja, agarrado à possibilidade de perpetuamente anestesiar a mente, aplacar a dor, esse cruel torniquete que lhe ia estrangulando a sanidade e o afastava da família que tanto adorava mas que, devido à incapacidade de esquecer, de se perdoar a si e aos outros, fugia. A terapia por via do alcoolismo cedeu passagem ao sexo pago, ao estúpido esbanjar de dinheiro nas nádegas de uma Maria Francelina ou nos peitos de uma Marília, fêmeas medonhas que não rasuravam sentimentos fortes como a amargura e o nojo. Esgotadas várias técnicas curativas, despertou Josué uma manhã abalado por um turbulento pesadelo, o de ter perdido mesmo tudo, o de já não ter sequer a mulher e a filha a seu lado, e nesse momento várias partes do seu corpo explodiram, primeiro uma perna, depois um braço e uma orelha e, finalmente, após tanto e tão tristemente bater, o coração. Josué passou a existir como pessoa destituída de cara, de altura, de peso ou de beleza, para se tornar num tempo presente que olvidara o ódio e a raiva, que sacudira a mágoa para abraçar aquilo que de mais profundo a sua existência continha,  o amor.  A filha brincava com um comboio na carpete da sala, a mulher descascava cebolas, Josué, invisível, aproximava-se delas, acariciava-as, elas sentiam a sua presença, ele amava-as, mas não era o mesmo. 

 

 

Norman Lewis em Nápoles

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para o João Coles

Em Novembro de 2017, a BBC emitiu um documentário sobre o tempo que o escritor de viagens inglês Norman Lewis passou em Nápoles em 1944, o último ano da guerra, ao serviço do exército britânico. Baseado no livro de Lewis, Naples ’44, o documentário da BBC é narrado por Benedict Cumberbatch e uma das suas primeiras sequências, que há-de ser uma das primeiras coisas narradas no livro, é a descrição da chegada de Lewis aos templos em Paestum, à espera de fogo das tropas inimigas, de como ele e um bando de jovens soldados se abrigaram por entre as imensas colunas dessas velhas ruínas, que ali estavam há séculos e de como então se torna difícil de escapar a uma impressão de paz, de civilização.

O documentário, que já não está disponível no site da BBC, mas por aí há-de andar em DVD ou streaming, está cheio de imagens de filmes antigos e de clips de arquivo. Está também cheio das histórias dos encontros que Lewis teve com as pessoas que viviam na cidade, dos soldados americanos aliados à comovente aparição de duas orfãs cegas a mendigar num restaurante.

Em 1944, Nápoles era não só uma cidade ameaçada por bombardeamentos inimigos – a dada altura todo um quarteirão da cidade tem de ser evacuado porque se pensa que os alemães o haviam armadilhado –, mas também pelos terramotos em parte causados pela presença do Vesúvio. E, no entanto, apesar de toda a destruição, as pessoas continuavam a viver, continuavam a tentar. Como é horrível a guerra, é um lugar-comum, mas nada é tão verdadeiro: como o exército inimigo destruiu a cidade, assassinou mulheres e crianças, como o exército de libertação permitiu que a corrupção florescesse e forçou uma parte considerável das mulheres da cidade (então 1/3 da população) à prostituição. O quão resilientes e cheios de recursos eram os napolitanos. A meio de tudo isto, dá-se uma erupção do Vesúvio que muda a face da montanha para sempre.

Há duas coisas que importa dizer acerca deste documentário: a primeira é que a capacidade de Norman Lewis para a empatia é impressionante. Lewis era alguém tão discreto que costumava dizer que podia entrar e sair de uma sala sem ninguém reparar que ele lá tinha estado. A outra coisa de que este documentário nos lembra é que o mundo sem gentileza é um lugar avariado, que não funciona, que é exactamente a capacidade das pessoas para serem gentis uma das coisas que fazem estar vivo valer a pena. 

Nápoles é uma cidade com mais de três mil anos, caótica, desorganizada, suja, mas, argumenta quem dela gosta, nada difícil de amar. Atravessando a Piazza Dante em direcção ao interior do quarteirão velho, bem para dentro do coração da confusão, recusando avançar em linha recta em direcção à ampla e bem mais organizada Piazza dei Plebiscito, assalta-nos a impressão de um mundo misterioso, violento, ao mesmo tempo velho, novo, cosmopolita e empobrecido, mas sempre gregário, de gente reservada e aberta, ao mesmo tempo generosa e grave. Em Nápoles, somos capazes de dar por nós a amar o mundo mutilado. É nesse sentido que gostar de Nápoles, que amar a história de todas as cidades que amamos, nos ajuda a viver.