Para a Penélope
Como Agamémnon, que sacrificara a filha para poder guerrear os troianos, Josué sacrificara a família para atingir o sucesso num país distante, mas esse sucesso, ainda não tangível, sabia a cascalho, a cacos de vidro às voltas na língua. Sucesso real, reconhecia agora, esventrado e perdido, espreitando um irrecuperável passado estampado em fotografias e memórias enegrecidas por comportamentos dignos de chimpanzé, de um primata a enxertar as paredes com murros, a partir pratos, molduras, portas, armários, a zurrar, minuto sim, minuto sim, a vomitar ódio e caos, era o terno sorriso da menina a puxar-lhe a manga da camisa para o sofá, a mulher a enlaçá-lo na cama e a cantar no chuveiro. Este era o sucesso que durante tantos anos o acompanhara e que, aos poucos, sem saber bem como, perdera, ou fora perdendo, visto que a mulher, mesmo que alterada e também consumida pelas suas próprias falhas, ainda o seguia. Ajoelhado na igreja, com a testa colada às mãos, a benzer-se sem parança, a repetir a ladainha apreendida na catequese, o pai nosso que estais…, mergulhava no passado, nos seus erros, imbecis erros, no que poderia ter feito melhor para ter actuado como alguém compassivo. Da igreja saltou para o balcão de um bar, local onde permaneceria semanas a fio esvaziando grades de cerveja, agarrado à possibilidade de perpetuamente anestesiar a mente, aplacar a dor, esse cruel torniquete que lhe ia estrangulando a sanidade e o afastava da família que tanto adorava mas que, devido à incapacidade de esquecer, de se perdoar a si e aos outros, fugia. A terapia por via do alcoolismo cedeu passagem ao sexo pago, ao estúpido esbanjar de dinheiro nas nádegas de uma Maria Francelina ou nos peitos de uma Marília, fêmeas medonhas que não rasuravam sentimentos fortes como a amargura e o nojo. Esgotadas várias técnicas curativas, despertou Josué uma manhã abalado por um turbulento pesadelo, o de ter perdido mesmo tudo, o de já não ter sequer a mulher e a filha a seu lado, e nesse momento várias partes do seu corpo explodiram, primeiro uma perna, depois um braço e uma orelha e, finalmente, após tanto e tão tristemente bater, o coração. Josué passou a existir como pessoa destituída de cara, de altura, de peso ou de beleza, para se tornar num tempo presente que olvidara o ódio e a raiva, que sacudira a mágoa para abraçar aquilo que de mais profundo a sua existência continha, o amor. A filha brincava com um comboio na carpete da sala, a mulher descascava cebolas, Josué, invisível, aproximava-se delas, acariciava-as, elas sentiam a sua presença, ele amava-as, mas não era o mesmo.