Os educadores que nos libertam

Nietzsche leu, em profunda admiração e embriaguez filosófica, O Mundo Como Vontade e Como Representação de Schopenhauer em 1864

Deus morreu, os monoteísmos, foram-no envenenando até o tornarem ou anódino ou fanático (o excesso revela o desespero perante o féretro). Libertos da figura tutelar (iconográfica, bibliográfica e ritualógica), parecia que finalmente corríamos o grande, heroico risco de sermos livres, tornando-nos aquilo que somos. Depois, sem nos apercebermos, surgiram os influenciadores globais, exímios gestores do senso comum. Iniciou-se uma nova era de alienação, aliviando o stress aos mais ansiosos.

Conhecemos o «Como nos tornarmos aquilo que somos» (Wie man wird, was man ist) do subtítulo de Ecce Homo de Friedrich Nietzsche (1888). Mas todas a sua obra é pontuada por uma tensão para se ser o que se é, impondo-nos a responsabilidade pela nossa vida (só tornando-nos aquilo que somos confirmamos o seu valor). A vocação de cada um é, antes de mais, tornar-se aquilo que é, única forma de nos diferenciarmos da massa humana dos iguais, humanos, demasiado humanos. Pelas ações, como queria Píndaro (e os Gregos, para os quais o «cogito ergo sum» de Descartes seria quase incompreensível, viviam num mundo agonístico, no qual cada indivíduo corria o constante o risco de cair na desmesura, dele ou de outrem, humano ou divino, cada grego era mais um elemento do grandioso pathos trágico, feito de uma poiética do sofrimento), mais do que pela reflexão, mesmo reconhecendo a qualidade e a força da autoanálise crítica nietzschiana.

Tornarmo-nos aquilo que somos (werde, der du bist) parece ser um paralogismo, dedicado a manipular uma racionalidade exaurida de dispositivos críticos. Como podemos tornar-nos aquilo que já somos? Talvez Nietzsche queira renovar, noutros termos e noutra trama vital e filosófica, o «Eu sou aquele que (quem) sou» do Antigo Testamento. Manter a potência, talvez trágica, da autonomia individual (sou eu que me torno aquele que sou), acrescentando-lhe (o que é uma revolução ontológica) o processo, dentro do tempo, e da temporalidade, do eterno retorno, de me tornar, de me ir transformando, autotransformando, modelando um qualquer barro original, feito de genética, de social e de vontade.

Na terceira Consideração Intempestiva, Schopenhauer Educador (1874), consagrada à figura solitária do mestre filósofo, o seu mestre, Nietzsche defende, a partir de uma conceção da genialidade romântica, evitando o pessimismo niilista schopenhaueriano, isto é, um pessimismo insolúvel, que se os jovens querem ser livres devem saber o seguinte: «Um homem nunca se eleva tão alto como quando não sabe aonde o levará o caminho que escolheu» (citação de Ralph Waldo Emerson, que foi emulando ao longo da sua vida). E não sabe porque os impulsos que o levam a escolher vão sendo definidos, não por uma qualquer essência, alojada no centro do seu eu, que seria ou não possível reconhecer, mas pelas influências, tantas vezes paradoxais, dos mestres, dos educadores, como Schopenhauer. Mestres que devemos seguir, com certeza, mas também trair, com o mesmo grau de necessidade.

Eis o que Nietzsche diz nessa Intempestiva, cap. 1, depois de perguntar sobre como nos encontramos a nós mesmos («Aber wie finden wir uns selbst wieder?»): «O que é que realmente amaste até agora, que coisas te atraíram, o que é que te dominou e, ao mesmo tempo, o que é que te preencheu? Observa a série completa desses objetos venerados e talvez eles te revelem, pela sua natureza e sucessão, uma lei, a lei fundamental do teu verdadeiro eu (eigentlichen Selbst). Compara estes objetos, vê como eles se completam, se ampliam, se ultrapassam, se transfiguram, como formam uma escada pela qual subiste até ao teu eu. Porque a verdadeira essência não está escondida no teu íntimo, mas incomensuravelmente acima de ti ou, pelo menos, daquilo que tu consideras habitualmente o teu eu. Os teus verdadeiros educadores e formadores (Erzieher und Bildner), aqueles que te formarão, revelarão aquilo que é verdadeiramente o sentido original e a substância fundamental da tua essência, em todo o caso aquilo que é de difícil acesso, como um feixe atado e rígido: os teus educadores não podem ser outra coisa que não os teus libertadores (deine Erzieher vermögen nichts zu sein als deine Befreier).»

Incêndio

no mapa
as aldeias
em fogo

amarelo
campos de aveia
alimento dos cavalos

laranja
o que está em disputa

castanho
os caminhos possíveis
(desde que ainda
se tenha cavalos)

as horas passam
não arredam pé
da mesa
os amigos
absortos no jogo

quando ainda
se podia fumar no café
comprávamos
um maço a meias
e jogávamos toda a tarde
eu abria a partida
escrevendo alguns versos
numa folha em branco

agora
é a tua vez
o fogo alastra

Manhã e Noite, Jon Fosse, nota de leitura

Acabei de ler, chegando tarde, como quase sempre me acontece, sem nenhuma virtude especial, relativamente ao que entra em ebulição, Manhã e Noite, um romance do último prémio Nobel da Literatura, o norueguês Jon Fosse, editado pela Cavalo de Ferro, tradução de Manuel Alberto Vieira, com 111 páginas divididas em duas partes. Na primeira, curta, descreve, quase em direto, o nascimento de Johannes, filho do pescador Olaï e da sua mulher Marta, relato pontuado pelas observações, práticas e determinadas, da parteira, uma voz de quem sabe mais do que ajudar a dar à Luz. Johannes nasce no meio de uma frase, o pai ouve os sons do parto, pensa em Deus e no filho que se tornará pescador, como ele. Na segunda parte, o autor narra um dia no qual Johannes, já velho (um salto no tempo que vai sendo preenchido, mas não muito, ao longo do livro), reformado, depois de criar sete filhos e da mulher, Erna, haver morrido, encontra o seu amigo Peter (não se sabe imediatamente se está vivo ou morto), também pescador, na praia, embarcando com ele para pescar caranguejos. No regresso experimenta, entre outras coisas, um encontro espectral com a filha querida, Signe, que passa através dele sem o ver (é um livro sobre passagens). A história começa, pois, com um nascimento e termina com a morte, ou melhor, com o morrer.

Um livro com poucas, pouquíssimas peripécias, aposta antes num movimento fluido entre o mar e a terra, as recordações e a realidade tangível, o sonho e a vigília. O protagonista viaja entre a frugalidade do passado no limiar da pobreza mas com a casa cheia de vida e o conforto de reformado solitário, hoje. Todos os filhos foram bem-sucedidos, Signe mora perto e encontra-a muitas vezes. Johannes ainda pesca, por recriação, agora. Fuma e bebe café. Mas a casa não aquece, por mais lenha que queime. Através de uma escrita minimalista, quase um processo de criação automático, o narrador «descobre as coisas à medida que as escreve», compondo como fosse uma espécie de improvisação musical.

O estilo, marcado pela repetição, pela pontuação inesperada (aproximando-se, sem complexos, da oralidade, mas também de outra coisa que não isso, como se quisesse encontrar ritmos e significados mais arcaicos) e pela alternância de perspectivas (sem ser verdadeiramente polifónico), é perfeito para esta deambulação, lenta e resignada, entre a vida e a morte, com a qual ele diz aquilo que tem para dizer. A derradeira jornada de um impreparado ser para a morte, impressa numa prosa original e honesta. As paixões tristes dominam o romance, mas, contra Espinosa, elas trazem uma vitalidade tranquila (acrescentam ser), a que se pode chamar melancolia criadora, ou bela melancolia, fortalecendo os leitores. Este livro permite sentir as vibrações dos abismos da vida, essenciais para completar o ciclo, ou ciclos, da existência. Sem a intenção, todavia, de abalar, quando nos resgata da banalidade não o faz arrastando-nos para novos mundos, reorienta somente, de forma ligeiramente iconoclasta e através de uma arqueologia sobre o viver, a viagem interior que prosseguimos desde que nascemos. Não pegamos fogo ao lê-lo, é verdade. Mas é um bom mergulho, e podemos tomá-lo por si mesmo ou como um meio para pensarmos sobre o profundo sem a ditadura do fundamento.

Porque choramos e rimos perante a mesma coisa

Regresso a casa e ponho-me à procura de um livro de Montaigne que a Penguin editou há uns anos. É uma colecção breve cujo título traduzido para português significa “Porque choramos e rimos perante a mesma coisa.” Regressei a pensar nesse ensaio que li há muito tempo, porque há uns dias, sentada num café em Siracusa, tive vontade de chorar e rir perante a mesma coisa, esse humor que supõe um rasgão no centro do que quer que seja essa entidade a que chamo “eu,” já sem grandes ilusões sobre coerência total, que é de resto o ponto do ensaio de Montaigne. Ele fala de como não é hipocrisia querer chorar e rir ao mesmo tempo, como isso é por vezes um movimento que acompanha as emoções da incoerência, resposta perante o absurdo que se nos apresenta e faz emergir uma implícita resolução que se torna força constitutiva.

Uma manhã em Siracusa, em cima da mesa comum da cafeteria onde ia todos os dias tomar o pequeno-almoço estavam os jornais do dia. A princípio ver os jornais desportivos fez-me rir, é uma coisa de países do sul. Em Inglaterra isso não existe. Os jornais diários têm uma secção de desporto e é tudo. Na pilha procuro o jornal diário, um qualquer, e os meus olhos batem num título de duas linhas na primeira página que diz algo como: “Papa declara que armas e contracepção são uma ameaça à vida humana.” É então que eu me lembro de Montaigne e começo a ter vontade de chorar e rir perante a mesma coisa. Envio uma fotografia da página a um amigo italiano (por sinal o amigo que trocou de lugar no universo comigo e está agora sentado a olhar para os meus gatos em Oxford) e ele responde num minuto dizendo: “não acredito que haja esperança para o meu país,” o seu desânimo ecoando no meu. Eu, entretanto, começo a ler a notícia que de facto confirma o que sugere o título, o Papa Francisco equipara armas e contracepção, declara-as ambas uma ameaça à natalidade, um problema que de resto é particularmente pronunciado em Itália, que tem uma taxa de natalidade severamente decrescente. Este octagenário, teólogo máximo, teve a estranha revelação de que estes dois objectos, armas e contraceptivos, têm afinal o mesmo propósito e em certo sentido servem-se do mesmo meio para o obter: o propósito é ameaçar a vida humana, coincidindo nesse fim por meio da obstrução da existência humana. As armas alcançam sucesso destruindo vidas humanas já existentes, a contracepção as potenciais. Eu peço um sumo de laranja. Eu sei agora que sou uma ameaça à vida humana, no mesmo sentido em que um soldado russo ou israelita munido de uma metralhadora o pode ser. Para o absurdo funcionar, para termos vontade de chorar e rir ao mesmo tempo, perante a mesma coisa, por vezes, há estruturas lógicas que têm de desaparecer. As armas que o papa Franciso tem em mente não são nomeadas, pelo menos na notícia, em relação com os soldados que as empunham, os mercenários e os assassinos que pegam nelas, mas apenas “armas,” quem está a pensar na Ucrânia e na Palestina sou eu. E quando penso na Ucrânia e na Palestina reparo que não consigo elencar que indústrias exactamente e em que países mais fornecem armas a estes conflictos. Sei que os Estados Unidos fornecem armas a Israel, o que deixa este país numa situação absurda: por um lado, estão a fornecer as armas que estão há meses a matar indiscriminadamente civis palestinianos, por outro, continuam a enviar ajuda humanitária. Sabemos que a Rússia tem a sua própria indústria de armamento. Penso nestas coisas e tenho vontade de chorar e rir ao mesmo tempo. Para a contracepção poder ser equiparada a uma arma o que tem de desaparecer é de outra ordem e são na verdade duas coisas que têm de ser apagadas. A primeira, para mim, por causa do meu preconceito de género,  é o direito das mulheres à sua auto-determinação. Podemos ignorar aqui que, por exemplo, há mulheres que simplesmente não tomam contraceptivos para efeitos anti-concepcionais, que isso não é para elas um argumento relevante. Mas talvez valha a pena notar que o Papa, que nasceu com uma pilinha, nunca vai saber o que é acordar de manhã, cego de dores no abdómen, mal se conseguindo mexer, tomar um par de analgésicos que no fundo não servem para nada, e arrastar-se até ao emprego, tentando permanecer funcional. Ou ir para a escola e tentar fazer uma aula de educação física nesse estado, uma quantidade de sofrimento bastante considerável que um comprimido tomado todos os dias, ou um dispositivo intrauterino, pode resolver facilmente. Certo que não são apenas mulheres que tomam contraceptivos, mas estatisticamente sabemos que os meios mais eficazes de contracepção são consumidos por elas, não por eles, sabemos que historicamente os contraceptivos foram fundamentais na emancipação das mulheres e, já agora, na subida da qualidade de vida globalmente. O que me leva à segunda coisa que tem de desaparecer para o Papa poder fazer esta afirmação: o seu respeito pelo direito à escolha de cada um, algo que alguém que se vê diante de uma arma deixa normalmente de ter. O discurso do papa é também ele potencialmente uma arma, deseja impedir a liberdade de escolha da parte da população que quer tomar contraceptivos em paz, sem matar ninguém, eventualmente para não matar ninguém. Daqui podíamos até falar de mulheres para quem chegar a tomar a um contraceptivo é um absoluto privilégio, eventualmente uma maneira de garantir a melhor sobrevivência de filhos já existentes. Existem depois todas as questões de outra ordem que nada têm a ver com esta e são tão variadas quanto os motivos pelos quais as mulheres resolvem (ou não) tomar contraceptivos – uma decisão que há algumas décadas elas deixaram de ter de justificar seja perante quem for. Um facto permanece. Para mim, perante esta afirmação, eu vejo a misoginia cruzar-se com a narrativa do meu pequeno-almoço: são as mulheres quem tem de desaparecer da equação, com a sua auto-determinação, com a sua liberdade de escolha, para um contraceptivo ser igual a uma arma, para um homem poder dizer que um contraceptivo é uma arma. Ou talvez o problema sejam mulheres armadas de contraceptivos, por oposição a homens armados de espingardas. Mas é engraçado notar a eventual correspondência entre os idiotas que gostam de brandir armas para matar os filhos dos outros e aqueles que pensam que tomar um contraceptivo é um gesto equivalente, que pode ser comparado logicamente. A minha vontade de chorar e rir ao mesmo tempo diz-me que são normalmente pessoas de espírito semelhante que gostam de brandir armas e obliterar a liberdade dos outros. Por algum efeito irónico, tenho um bloqueio qualquer que não me permite fazer uma distinção moral entre estas duas categorias de pessoas: as que brandem armas, as que gostariam de manter controlo sobre escolhas dos outros, tomadas em consciência, liberdade e legalidade. Ambos não costumam ter grande empatia por aquilo que é a trajectória de uma vida humana no sentido em que a vida, plenamente falando, naquele ponto de crise onde Montaigne a isola, no maravilhamento de ela poder ocorrer numa torção que acolhe um sentimento e o seu contrário, não existe sem escolha, não começa sem tolerância e um profundo cuidado, quase veneração, perante o direito dos outros de escolherem como querem que seja a trajectória das suas vidas. Paradoxalmente, de modo quase reaccionário, digo que haveria menos idiotas agarrados a armas se estivéssemos mais próximos desse ideal de ter algum respeito e empatia pelas vidas dos outros, as que já existem, não as imaginárias.