Haverá cavalos

Dou atenção a pormenores e a coincidências é a partir deles que tomo as minhas decisões. Por isso, já em viagem, surpreendi-me quando me dei conta que fazia propositadamente várias centenas de quilómetros para saber se ainda havia cavalos selvagens nos montes próximos a San Andrés de Teixido, que segundo o ditado galego vai de morto quen non foi de vivo, a norte do norte, numa zona em que a grande Ibéria não está entregue a abismos imaginários e sim a falésias reais onde o mar investe uma e outra vez.

Perto do destino abrandei e abri a janela. Estavam estacionadas algumas caravanas com matrícula francesa. De uma delas saíu um homem com óculos redondos muito pequenos e cabelo farto todo branco cuspindo para a gravilha os caroços de uma laranja. A paisagem apresentava-se como na infância e adolescência quando aos domingos de passeio subíamos os montes. Parei em sítios onde o horizonte se via desimpedido mas actuei como se não visse mais de cinco metros à frente dos olhos. Quando era jovem também não perdia um minuto a olhar o mar. Estava sempre presente. O tempo transcorreu e o horizonte continua a ser-me indiferente. Uma linha contínua que separa o mar distante do céu ainda mais distante. Um horizonte enganador, impossível de perceber. Há pessoas que se jactam de não acreditar em Deus, eu não acredito sequer no horizonte.

Ainda restavam cavalos. Adestrados, com selas e rédea curta. Uma palmada no lombo e eles afastam-se para o lado. Cavalos com nomes de personagem de banda desenhada, segundo escutei, outrora selvagens, para venda. Cavalos menos intratáveis, não acometem uns contra os outros e não molestam as éguas sem licença humana. Mas este ar que respiramos aqui fora, aqui realmente fora, não permite a total e forçada limitação da natureza. E por isso sei que não fiz centenas de quilómetros em vão. Não me vai permitir começar agora a acreditar no horizonte mas concede-me pelo menos uma renovada convicção de que os coices, por poucos que sejam, não cessarão nunca.