Para uma ética da leitura [i]
/I- Lê de tal forma que queiras que todos leiam dessa maneira[ii]
Comecemos pela leitura nas ciências humanas (com exemplos filosóficos extrapoláveis). As interpretações de Nietzsche, ao contrário do que afirmaram, entre outros, Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jacques Derrida nas décadas de 60 e 70 do século XX, não são infinitas. Mesmo uma “obra aberta”[iii] como a dele reivindica leituras verosímeis, contra outras falsas (apresentá‑lo, à semelhança da irmã e.g., como germanófilo), denunciando as restantes por emergirem irreflectidamente de trabalhos hermenêuticos sem rasgo, encostados à moda da época. Pretende-se separar as leituras lunáticas das sensatas, as experimentais das canónicas, as académicas das iconoclastas, as instrumentais das desinteressadas, as inteligentes das anódinas... O intérprete não é soberano, intenção e efeitos do seu trabalho são orientados pelo conjunto delimitado (mas não fechado) de possibilidades de sentido da obra, horizontes de expectativa da época e práticas de interpretação conhecidas e usadas. Reconhecemos aqui um diagrama assímptota: há garde-fous[iv] contra leituras delirantes, mas desconhece-se o lugar exacto que demarca o desejável do indesejável; tanto mais que ela se desloca de acordo com a mudança dos horizontes de expectativa. E esta aporética limita seriamente o desenvolvimento de uma “hermenêutica do sentido” que em evidência cartesiana estabelecesse os códigos da leitura correcta, vilipendiando epistemologicamente (e até socialmente) as incorrectas. Queremos no entanto, socorrendo‑nos de Immanuel Kant[v], provisoriamente satisfeitos por chegar a um porto de racionalidade, avançar com a hipótese de uma ética da leitura. Testaremos a consistência de princípios a priori definirem uma “ética de leitura boa”.
Ela teria, contudo, duas premissas iniciais negativas: 1) ler bem não impõe uma fidelidade absoluta ao texto, onde o leitor encontrasse e coincidisse com as pegadas na neve do escritor. 2) Deve afastar-se, num certo antagonismo com o princípio anterior, o ‘jogo livre’ da linguagem no vazio, i.e., interpretações que sejam reescritas ex nihilo do texto original. Depois, como premissa positiva, haveria o imperativo do dever de ler bem. Como marca ética, mais do que metodológica ou epistemológica; o leitor (o seu ethos) desejaria, muito antes da vontade de descoberta (ou construção), esclarecimento e sistematização do texto, “ler bem”, os enunciados do mundo e das obras.
Arriscamos por isso, embora sem saltar no Etna, propor condições de possibilidade para uma “leitura boa” a partir do imperativo prático categórico kantiano, orientando-nos para uma metafísica da leitura. Seguindo Kant, o nosso imperativo obrigará à passagem do princípio subjectivo (“máxima”) ao objectivo (“lei universal”). Primeiramente, se em Kant se define como “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”[vi]; no nosso caso teríamos: lê apenas segundo a máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que se torne lei [de leitura] universal. Ou seja, desejar que todos quantos lêem, leiam da mesma maneira que nós. Não (leiam-me bem, por favor!) na metodologia ou tecnologia, mas no dever de querer ler bem. Em segundo lugar, na formulação que Kant usa para a Menschheitsformel, em vez de “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”[vii]; teríamos: lê de tal forma que uses sempre o texto que lês como um fim e nunca como um meio; i.e., nunca se deveria intencional e instrumentalmente desvirtuar os sentidos dos textos, atribuir‑lhes estrategicamente um significado que não lhes correspondesse, usá-los como arma de arremesso ou armadura de erudição.
Desta forma, libertar-nos-íamos no momento originário da leitura de alguns acidentes empíricos que tantas vezes a condicionam (ler a Odisseia ou a Fenomenologia do Espírito em tempos de crise seria o mesmo, por princípio, que lê-la em tempos de opulência ou de cólera). A “leitura boa” não resultaria deste ou daquele fim a atingir ou atingido, deste ou daquele interesse circunstancial, mas do “puro respeito” (reine Achtung) pela lei ética da leitura. Embora, peço novamente a vossa atenção: sem imposições policiais. Pensemos em normas que não normativizam, i.e., que actuam na singularidade da cada circunstância e se esgotam nesse cumprimento. Caberia aos leitores, momento a momento, dar existência à sua ética da “leitura boa”. A lei universal – virtualidade, mas não irrealidade, imersa na subjectividade de cada um[viii] – ofereceria delimitações às especificidades de cada leitura.
Porém, apesar desta ressalva, talvez devamos objectar – retomando muito do argumentário anti-kantiano –, 1) que é demasiado formalista; incapaz de orientar as leituras concretas, empíricas a partir dos seus imperativos ideais, metafísicos, a priori; 2) que substitui as imposições exteriores por uma espécie de auto-regulação ainda mais constringente. É, e.g., difícil usarmos uma ética da leitura derivada de Kant na recepção das obras polimorfas de Nietzsche, Pessoa ou Joyce; às quais cada leitor deve aceder livremente, fragmentando-se, lacerando-se cognitiva e emocionalmente para entrar nos seus diferentes, muitas vezes incomensuráveis, estilos e temas. Em resumo: talvez estejamos sempre reféns da contingência do texto e da nossa circunstância, macro e micro. Na melhor das hipóteses soberanistas cair‑se‑ia num circuito fechado de leituras auto‑referenciais (academismo acrítico), abstraído de todas as causas e efeitos práticos, cognitivos, psicológicos, sociais ou políticos desse acto. Esquecendo, e.g., o que Rousseau disse de Julie ou la Nouvelle Héloïse: “livro com conselhos práticos para maridos e mulheres”. Ou que Flaubert foi a tribunal porque viram em Madame Bovary a prova de que defendia o adultério. A recepção e utilização nazi de Nietzsche ou, no pós-guerra, o heroísmo da superação (Überwindung) apresentado como chave‑mestra para ser lido em paixão sagrada. Por isso, para Hillis Miller, a necessidade de constituir uma ética da leitura não deriva das condições iniciais, a priori, para uma “leitura boa”, mas de constatarmos que leituras erróneas têm efeitos funestos (Don Quixote sofria de irrealismo por ler tantos romances de cavalaria; muitos dos que compram Economia para Totós acreditam na bondade natural do Mercado). A sua posição pode ser sintetizada assim: todas as leituras produzem efeitos, deve portanto constituir-se uma ética da leitura para mitigar as consequências excêntricas.[ix] O problema, daí destacarmo-la tão pouco, está no desenvolvimento de uma ética que seja capaz de regular as tergiversações sem instituir poderosos mecanismos de censura. Assim, ou regressamos a Kant e aos imperativos a priori ou seguimos pela via de uma codificação legislativa cheia de interditos.
Temos então duas possibilidades: a primeira a priori, a segunda, subsidiária daquela, a posteriori. Problematizam bem a questão da recepção, permitem teorizar deontologias jornalistas... Mas ajustar-se-ão aos livros por quem espontaneamente nos enamoramos?
II- Lê como a estrada começa![x]
Experimentemos uma hermenêutica da libertação, descodificar cada texto à nossa maneira, usando, e.g., o martelo de Nietzsche ou o veludo crítico de Proust, a vertigem pós-humanista do desassossego pessoano ou a suprema ironia manniana da montanha trágico-cómica de Davos. Para isso, é preciso dissolver parte do sujeito da leitura, deixar-se dominar pelo prazer infinito do sentido ocasional das palavras. Depois de apagar a unidade do autor,[xi] fazer o mesmo à unidade do leitor (enquanto centro codificador do sentido), a quem certos franceses atribuem ainda a paternidade das obras (Roland Barthes, e.g., defende que “para dar um futuro à escrita é preciso inverter o mito: o nascimento do leitor deve pagar-se a morte do autor.”)[xii]. Apenas a palavra viva deve negociar um compromisso entre o caos e a ordem do texto. Falamos, pois, de uma unidade para lá da origem ou destinação, autor ou leitor. Sem história ou metafísica, sem biografias ou psicologias; escritura sem assinatura, leitura sem sujeito.
Sabemos bem que nos aproximamos de um relativismo perigoso, talvez até do impressionismo diletante de “lê e deixa ler”. Substituição da inteligibilidade racionalizante pelo arrepio solitário (novíssima figura da irrisão?). Mas não foi neste solipsismo criativo que se desenvolveu cada gesto demiúrgico? Não serão as recepções mais singulares, por vezes impossíveis de comunicar, aquelas que melhor reconstroem e mantêm as obras vivas?
IIa “Estética do arrepio”
É sempre difícil saber onde está a meta (antes era no “Céu” ou no “Inferno”, depois inventou-se o “Purgatório” e a Terra mudou de lugar – deve reverter-se esta vulgarização teológica para uma lógica modal)! Dêem-nos, pois, mais uns instantes para dialogarmos com o nova-iorquino Richard Rorty, grande compilador das possibilidades de pensamento pragmático.[xiii] Queremos redimir-nos da dissolução de autor e leitor, mas vejam esta tentativa como uma “acção do talvez”.
Para Rorty, o leitor deve abandonar a trivialidade dos critérios quantitativos, retórica do best-sellers. Prefiramos objectos raros, desconhecidos, ou se conhecidos pouco lidos. Também Vladimir Nabokov, Lectures on Literature,[xiv] põe como condição da boa leitura o deslumbramento com pequenas coisas, apartes do espírito, notas de pé-de-página, num ânimo inocentemente especulativo. Tão diferente da seriedade monocromática do senso comum. Neste sentido, propomos, numa criteriologia aberta, uma “estética do arrepio” para avaliar as nossas leituras. No essencial, as obras têm de provocar um abalo para serem boas. Como diz Richard Rorty: “Se queremos que os nossos livros sejam lidos e não respeitosamente encadernados em couro gravado, devemos tentar produzir arrepios e não a verdade. Aquilo a que chamamos senso comum – o conjunto das verdades amplamente aceites – é, tal como Heidegger e Nabokov pensaram, uma colecção de metáforas mortas. As verdades são os esqueletos que sobram depois de a capacidade para despertar os sentidos – para causar arrepios – ter sido apagada pela familiaridade e por um uso longo.”[xv]
Causar arrepios e ter arrepios. Raridades, tanto mais que hoje se heretiza a experimentação e não se cuida da novidade, parece que tudo, ou quase, provém das linhas de montagem de “metáforas mortas”, de cliché descritivos, de um suspense mecânico ou de um deus ex machina cansado, imediata e entusiasticamente aceites pelas massas, nesse auto-contentamento do reconhecimento fácil. Quem pode ainda arriscar a sua idiossincrasia contra a indústria do livro e das ideias? Se talvez seja verdade que nunca se pensou e escreveu tanto, também o é o avanço imparável de um pensamento médio democratizado que esmaga a rolo compressor qualquer desvio à norma. Ora, se para provocar arrepios é necessário sair do “vocabulário” (palavras através das quais contamos as histórias das nossas vidas)[xvi] amplamente usado; para ter arrepios tem de se desenvolver uma vontade de prazer excêntrico, i.e., fora dos hedonismos de pacotilha, indiferente ao “gosto do ano” ou à tão frequente “vingança estética” dos críticos culturais. Também não se deve procurar qualquer tipo de esperança social, afastar-se dos textos de formação, engagés, reformistas ou revolucionários, panfletários ou dissertantes, em poesia ou prosa, digital ou papel... Estes provocam indignação moral, contra a qual devemos dizer definitivamente: “[…] da má distribuição da riqueza e das coisas boas da Terra / TODOS SEM EXCEPÇÃO TÊM A MÁXIMA CULPA”.[xvii] Além disso, um leitor que ainda se arrepia, coisa rara, não se preocupa com a acumulação do capital de verdades permanentes, prefere conviver com os relâmpagos. Lê as obras como um acontecimento que o vem transformar, colocá-lo novamente no sítio onde a estrada começa.
III
Só o que me pode matar pode também fazer-me viver (variação de Hölderlin lido por Heidegger, que o reescreveu sem mudar uma vírgula, como Borges a Cervantes)[xviii], e só se arrepia quem arrisca, para renascer, receber o sopro da morte em plena consciência.
Victor Gonçalves
[i] Entendemos por “ética” a maneira como os indivíduos se constituem moralmente a si mesmos. Próxima, portanto, do ethos grego.
[ii] Variação do imperativo categórico moral kantiano (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785 / Fundamentação da Metafísica dos Costumes, trad. Paulo Quintela, Lisboa: Edições 70, 1960/1992).
[iii] Quase sem leituras interditas, mais livres do que defende Umberto Eco em Opera Aperta, Fabbri, 1962 [Obra Aberta, 2.ª ed., trad. João Rodrigo Narciso Furtado, Lisboa: Difel, 2009].
[iv] “Guarda‑loucuras”, literalidade que empobrece a pragmática do francês.
[v] Grundlegung zur Metaphysik der Sitten.
[vi] Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, BA 52.
[vii] Idem, BA 66‑67.
[viii] A lei prática kantiana é autónoma, i.e., está em cada subjectividade, não em Deus, instituições ou sociedade.
[ix] Mesmo o não-lido tem grandes efeitos em quem crê ter lido, formam-se opiniões sobre livros que nunca se leram ou leram mal e, mais grave, age-se em conformidade com isso. Como diz Miller: “O livro torna‑se independente do seu autor e vagueia sozinho pelo mundo, aqui e além, e tem efeitos tão imprevisíveis tanto quando é lido ou mal lido como mesmo quando nem sequer é lido.” (Hillis Miller, A Ética da Leitura. De Kant a De Man, a Eliot, a Trollope, a James e a Benjamin, trad. José Augusto Mourão, Lisboa: Vega, 2002, p. 133 [The Ethics of Reading, Columbia University Press, 1989]).
[x] Variação do “Ama como a estrada começa” de Mário Cesariny (Pena Capital, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, reed.).
[xi] Ver Roland Barthes, “La mort de l’auteur”, Manteia nº 5, 1968 (orig. “The Death of the Author”, Aspen, nº 5-6, 1967); publicada postumamente em 1984 em Le Bruissement de la langue, Paris: Seuil, 1984. Também é útil: Michel Foucault, “Qu’est-ce qu’un auteur?”, Bulletin de la Société française de philosophie, ano 63, nº 3, Julho-Setembro 1969.
[xii] “La mort de l’auteur”, p. 67, cit.
[xiii] Em Portugal rotulado, liminar e simploriamente, de pragmatista e liberal. Traduzido na Asa, Piaget, Presença (magnífico Contingência, Ironia e Solidariedade; onde senti um émulo na apreciação a 1984 e Lolita), Dom Quixote (A Filosofia e o Espelho da Natureza).
[xiv] Mariner Books, 2002.
[xv] Contingência, Ironia e Solidariedade, trad. (boa) Nuno Ferreira da Fonseca, Lisboa: Presença, 1994, p. 192 [Contingency, Irony and Solidarity, Cambridge University Press, 1989].
[xvi] Cf. idem, p. 103.
[xvii] Mário Cesariny, Pena Capital, cit.
[xviii] Friedrich Hölderlin, Patmos, 1803: “[…] Wo aber Gefahr ist, wächst / Das Rettende auch. […]”.