Proust e a Filosofia (ou outras coisas mais importantes)
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Alguém me dizia há poucos dias que bastava ter o À la recherche du temps perdu de Marcel Proust(100 anos do primeiro livro) por perto para que uma enorme biblioteca portátil se instalasse na nossa vida (ainda mais agora que o formato digital a concentra no espaço de um pequeno dispositivo como um telemóvel ou tablet). La recherche no bolso, sempre à mão de ler, um trabalho meticuloso de pensamento e escrita de mais de 10 anos e 3000 páginas ali, pronto a usar e abusar.
Releio-o agora no comboio, numa edição completa em francês para o Kindle (cerca de 1$), acompanhado de música, que, diga-se, serve mais para abafar conversas inoportunas do que de satisfação estética. E é bem verdade que um grande fragmento da biblioteca ocidental se expõe sempre que ligo o dispositivo e aparecem letras bem desenhadas por exactos algoritmos. Os personagens, o narrador, os frescos sociais, as descrições psicológicas, as gesticulações protocolares, os jogos sentimentais, as argumentações políticas ou mundanas... tudo feito numa espontaneidade ponderada para afastar os excessos da racionalidade estética ou da lógica narrativa, sem porém deixar aparecer um frenesim caótico. Talvez se trata de uma inteligência intuitiva, como se queria na época, capturando sem mediações a durée concreta do mundo e dos signos. Tudo trabalhado dentro do vaivém entre memória voluntária e involuntária, mais experimental do que teórico, longe, pois, das memórias, “pura” e de “hábito”, bergsonnianas. Em resumo: a arte parece fazer sair melhor da sombra as experiências singulares da vida do que a filosofia.
Este impressionismo literário levou a que muitos vissem na obra proustiana uma obscuridade ou um esteticismo que pouco servia os propósitos materialistas e existencialistas tão em voga até à década de 70 do séc. XX. Por isso, ouvimos dizer a Sartre que com Husserl podíamos finalmente libertar-nos de Proust. Mas na verdade, os gestos aparentemente anódinos, como a da famosa madalena no primeiro livro, originam um conjunto de memórias decisivas para a maneira de estar no mundo. A subtileza da acção tem também que ver com uma espécie de maiêutica proustiana que pretende envolver profundamente os leitores na forma como experienciam o livro, La recherche não é um roman à thèse (mesmo se alguns comentadores o dão como panfleto sobre a homossexualidade), tanto mais que no último livro, Le Temps retrouvé, Proust escreve: “Na realidade, cada leitor é, quando lê, o próprio leitor de si mesmo.” E este poder de auto-revelação do leitor, contra Sartre, é realmente importante para o existencialismo.
Aliás, Gilles Deleuze mostrará bem, apesar de tudo, o interesse filosófico de La recherche, na medida, diz ele, em que Proust ataca o centro de uma filosofia clássica de tipo racionalista, onde o pensador, enquanto tal, deseja e ama o verdadeiro, busca naturalmente o verdadeiro, aliando-se a esta boa vontade um método astuto que o protege das influências epistemologicamente nefastas do exterior, descobrindo verdades totais e comungando com espíritos dedicados à mesma missão. Este modelo mistura horizonte filosófico e a velha ontologia da amizade (comunhão desinteressada), igrejas teológicas e racionalistas. “A crítica de Proust toca no essencial: as verdades permanecem arbitrárias e abstractas enquanto se fundarem sobre a boa vontade de pensar. Só o convencional é explícito. É que a filosofia, como a amizade, ignora as zonas obscuras onde se elaboram as forças efectivas que agem sobre o pensamento, as determinações que nos forçam a pensar. Nunca foi suficiente uma boa vontade, nem a elaboração de um método para aprender a pensar; não basta um amigo para nos aproximarmos do verdadeiro. Os espíritos só comunicam entre eles o convencional; o espírito só engendra o possível. Às verdades da filosofia falta a necessidade e a marca da necessidade. De facto, a verdade não se dá, ela trai-se; ela não se comunica, ela interpreta-se, ela não é voluntária, ela é involuntária.”[1] Como o que sucede com essas memórias que nos conduzem até lugares que sempre estariam inacessíveis a uma vontade soberana que decidisse, como num fiat, encontrá-las. É por isso que o desprendimento do cálculo racional ou a multiplicação dos encontros é a forma mais segura de nos inspirarmos a pensar sobre uma trama do mundo porventura mais essencial do que a que se manifesta quando nos obrigamos a pensar. É, pois, urgente comermos, com gestos requintadamente lentos, madalenas.
[1] Proust et les signes (1964/70/73), Paris: P.U.F.-Quadrige, 2006, p. 116: “La critique de Proust touche à l’essentiel : les vérités restent arbitraires et abstraites, tant qu’elles se fondent sur la bonne volonté de penser. Seul le conventionnel est explicite. C’est que la philosophie, comme l’amitié, ignore les zones obscures où s’élaborent les forces effectives qui agissent sur la pensée, les déterminations qui nous forcent à penser. Il n’a jamais suffi d’une bonne volonté, ni d’une méthode élaborée, pour apprendre à penser ; il ne suffit pas d’un ami pour s’approcher du vrai. Les esprits ne se communiquent entre eux que le conventionnel ; l’esprit n’engendre que le possible. Aux vérités de la philosophie, il manque la nécessité, et la griffe de la nécessité. En fait, la vérité ne se livre pas, elle se trahit ; elle ne se communique pas, elle s’interprète ; elle n’est pas voulue, elle est involontaire.”
Sobre a filosofia e a amizade serem incapazes de habitar nas zonas obscuras, ver também PS, p. 41. Ainda acerca do que nos força a pensar ser um encontro, nunca pré-determinado, o “azar dos encontros”, ver PS, p. 25.
Dentro da La recherche, diz Deleuze, o Leitmotiv do tempo reencontrado é a noção “forçar”, impressões que forçam o olhar, encontros a interpretar, expressões a pensar. (Cf. PS, p. 117).