Em cacos
/Estar aqui, todos os dias, numa consistência oscilando entre o heróico (sábado falámos deste recurso performativo) e o anódino, não preenche experiências de laboratório, é uma prova de vida.
E neste exercício, sagrado ou banal, um fluxo permanente de energia, variando no entanto de intensidade, faz e desfaz o sentido da individualidade. Uma pedra é uma pedra (evite-se falar com elas quando se humanizam), nós desfazemo-nos e refazemo-nos, por vezes em contradição sumptuosa, numa permanente inquietude identitária. Esforçamo-nos por juntar os cacos e depois de tudo composto ou ficamos fartos e explodimos ou um vento revolucionário abana o edifício do “eu” até ao estilhaçamento.
Mas este movimento quase-trágico, quase-sísifo é o alimento vital de todos os esforços para nos agregarmos imperfeitamente, uma e outra vez, (excepto nos sábios e santos inteiros, se os houver), esperando nova pulverização. Uma polarização que não contém qualquer dicotomia, os pólos existem para que o humano viva entre eles, nós fazemos a vida entre, insubmissos a qualquer determinação. No “entre” aloja-se a revolta da vida espontânea contra o domínio da razão. Aí, os fios racionais de uma moral, política ou arte nunca valerão o entusiasmo do instante, a emergência de uma vida, o improvável aparece como imperativo, ainda que fugaz (não fujo à lógica, amo-a).
Por isso, quando me perguntam quem sou, apetece-me quase sempre responder que “ainda não sei”, que “ainda estou a fazer-me”, “e desfazer-me”.