O Caso Heidegger

O “caso heideggeriano” continua aberto, ferida que gangrena uma parte do corpo filosófico, ao mesmo tempo que alimenta um dos temas mais apaixonantes dos “amigos do saber”: será que ao pensar as condições de verdade do mundo e do homem se devem tirar consequências éticas e políticas de circunstância, denunciando horizontes de acção e os respectivos juízos de valor, culturais e morais que os constituem? Noutros termos, deve o pensamento heideggeriano ser lido à luz das escorregadelas que o autor de Sein und Zeit teve em direcção ao Nacional-Socialismo e ao anti-semitismo?

Entre os dias 22 e 25 de Janeiro deste ano decorreu em França o colóquio Heidegger et “Les Juifs” (assim, com aspas, introduzindo logo o tom da polémica, mesmo se a expressão é tomada de empréstimo a J.-F. Lyotard). A organização esteve a cargo de bibliotecas, universidades, centros culturais, televisões, rádios e jornais (nenhuma instituição importante da Alemanha, onde Heidegger é menos conhecido, e reconhecido, do que em França). Recolherei as principais ressonâncias do encontro para sumariar as (poucas) linhas principais do que se pensou nestes 4 dias em torno de um dos maiores filósofos do séc. XX.

Ao longo do seu caminho de pensamento, Heidegger envolveu-se com inúmeros pensadores judeus, alunos ou colegas, cúmplices ou contestantes, adversários ou admiradores. Entre outros, Husserl, Arendt, Marcuse, Jonas, Cassirer, Derrida, Bloom, Lukacs, Levinas, Löwith, Strausse, Anders, Buber, Klein, Tugendhat, Adorno, Benjamin, Rosenzweig. Lista heterogénea, sem qualquer unidade doutrinal ou um claro desígnio judaico. Paul Ricœur tê-los-ia apelidado de “maciço hebraico”. Apesar desta constelação fabulosa de pensadores de origem judaica, ou talvez por causa dela, o judaísmo foi para Heidegger do foro do “impensado”. É este “impensado” que o colóquio quis convocar novamente para o campo da razão discursiva, resgatando-o de um misticismo que se presta a demasiados equívocos e serve cada amo à sua maneira. Mas ao mesmo tempo, a questão judaica fez emergir, directamente ou em eco, toda uma série de questões políticas e meta-políticas. Sobretudo a longa e persistente crítica à modernidade, tecnofílica e espiritualmente desvitalizada, a sua relação com o Nacional-Socialismo e consequente anti-semitismo. Tudo isto apimentado pela recente publicação de três Notebooks (dos muitos que escreveu desde 1930 até à morte), os Cadernos Negros (Schwarzen Hefte), onde se encontram uma série de afirmações anti-semitas.

O responsável alemão pela edição das notas pessoais de Heidegger, Peter Trawny, defende que Heidegger tornou claro, nessas mesmas notas, quer a sua pertença ao partido Nacional-Socialista quer o seu anti-semitismo. Mas já se conheciam algumas tiradas anti-semitas da década de 30, bem como a sua pontual adesão ao partido nazi. Eleito reitor (Führer-Rektor) da Universidade de Friboug-en-Brisgau em 1933, demissiona no ano seguinte (algumas das suas acções no reitorado são consideradas racistas e pró-hitlerianas, outras, pelo contrário, como a proibição de se afixarem cartazes anti-semitas na Universidade, mostram-no acima da vertigem nazi). Diga-se de passagem que na Alemanha actual, a querela heideggeriana se alimenta de uma guerra de sucessão, nomeadamente entre a Heidegger Gesellschaft, criada em 1985, e o novo Institut Martin Heidegger de Wuppertal, fundado em 2012 por Peter Trawny. Em jogo está o controlo das futuras edições das notas pessoais e uma mudança do paradigma negacionista (Heidegger quase não pertenceu ao Nacional-Socialismo nem foi anti-semita) para o afirmacionista (pertenceu e foi). Este afirmacionismo já tinha sido, entre outros, defendido por Gianni Vattimo e Slavoj Zizek, Trawny vai nesse sentido, mais louva a “liberdade de pensamento” e a “coragem” de quem assumiu publicamente, embora de forma quase póstuma (Heidegger só aceitou a publicação das notas pessoais depois da restante obra, muita dela já póstuma também), a sua hostilidade em relação ao judaísmo. É, aliás, perturbante que Heidegger quisesse publicar estes escritos, arriscadíssimos, como conclusão do caminho traçado pelos 102 volumes da sua obra integral.

A crítica recorrente, dentro da especificidade da filosofia, ao pensamento heideggeriano da década de 30 tem que ver com um racismo ontologizado. Heidegger trabalhou a noção de “visão do mundo” (Weltanschauung) distinguindo-a simultaneamente da de “ideologia”, elaborada por Marx na Ideologia Alemã, e de uma representação consciente que pudéssemos fazer do nosso contexto histórico. A visão do mundo Nacional-Socialista não traduz as relações históricas reais dos marxistas nem uma concepção colectiva à qual se aderiria em liberdade. O povo germânico, sob o comando hitleriano, inscreve-se num espaço comum único, exclusivista, no mínimo culturalista. Daí acusarem-no de fomentar um racismo ontologizado. Por outro lado, Heidegger fala de um “judaísmo mundial”, exprimindo um desenraizamento de todo o ente fora do ser, ontologicamente desprovido de mundo, por isso conclui que o nómada semita não consegue revelar-se no espaço da terra alemã.

Mas estas e outras acusações são bastante mitigadas pela maioria da recepção francesa, que de Sartre a Levinas, passando por Derrida endeusou Heidegger. Por exemplo, numa entrevista ao Le Nouvelle Observateur, Hadrien France-Lanord antagoniza-se com as hermenêuticas negras sobre Heidegger. Hadrien começa por justificar a sua recusa em participar no colóquio de Heidegger e os judeus, dizendo que o pequeno texto de apresentação de Peter Trawny é de uma indigência filosófica assustadora, ao mesmo tempo que pretende viver da ruptura apressada e sobredimensionada em relação a um Heidegger politicamente correcto. Além disso, a organização centrou o debate nas 1240 páginas dos 3 Notebooks, até à data não traduzidos em francês, contra a restante obra. Ora, esses textos são ainda pouco conhecidos na recepção francesa, daí perguntar-se a partir de que base comum poderia o colóquio pensar. Voltou a cavalgar-se a onda do “caso Heidegger”, agitação mediática normalmente inversamente proporcional ao conhecimento e meditação dos textos. Aliás, sobre a questão judaica em vez de seguir Trawny e as suas citações fora de contexto, Hadrien aconselha o artigo “Pensée juive” de Stéphane Zagdanski no Dictionnaire Martin Heidegger e o recente livro de Pascal Davia, Le nom e le nombre. Essais sur Heidegger et le judaïsme. Hadrien reconhece que Heidegger em algumas circunstâncias privadas sucumbiu aos preconceitos anti-semitas, mas estes não fazem parte da sua obra maior. Por isso, vivemos mais uma acção da era do slogan, do post no facebook ou no twiter, forma de comunicação planetária instantânea que prescinde do rigor hermenêutico em favor do escândalo e da indignação em 140 caracteres. Com esta estratégia, usando e abusando dos slogans, joga-se um jogo frívolo e encoraja-se a incultura, a ignorância do não-pensar. Mas joga-se também o jogo da comunicação do intolerável e do delirante, bastante desenvolvido no anti-semitismo francês actual.

Em conclusão, Hadrien, aconselha, se quisermos seguir a via do “anti”, que se começa por pensar em Heidegger o anti-nazismo, o anti-bolchevismo, o anti-americanismo, o anti-imperialismo inglês, o anti-imperialismo eclesiástico, o anti-wagnerismo ou o anti-romantismo. Talvez sejam estes o temas de futuros colóquios. Por nossa parte, preferíamos que se trabalha-se a célebre ideia que “O começo ainda é  (der Anfang ist noch). Ele não jaz atrás de nós, como o que teve lugar há muito tempo, ele apresenta-se diante de nós. […] O começo foi cair no nosso futuro (der Anfang ist in unsere Zukunft eingefallen).” (Die Selbstbehauptung  der deutschen Universität).