Rente à Realidade
/Ponto prévio: não acredito numa realidade categórica, composta por leis, coisas, espaço e tempo incondicionados. Vejo-a antes como uma mistura de regularidades e de interpretações, milhares de interpretações que assentam nas regularidades e fazem regularidades, umas mais consistentes (“ciências duras”), outras menos (“ciências moles”), outras quase nada (gostos literários – excepção para José Rodrigues dos Santos, em quem podemos confiar).
É a esta realidade (que, na verdade, devia estar no plural), instável e irónica, que declaro, e trata-se de uma decisão irrevogável, total obediência. Quero viver rente à realidade, numa grande frugalidade discursiva e consumista, feliz pela irrelevância e penúria de ideias e produtos. No sentido em que não invento, como os idealistas, novos mundos, bem mais fáceis de pincelar linguisticamente (daí serem tão exuberantes e moralmente puros).
Por exemplo, quando me chamam “pequeno-burguês” já não saco de dez contra-argumentos vindos da teoria política ou da história das ideias (também os há no Correio da Manhã). Respondo, sem pressa, que meço 1m80, que por isso não posso ser “pequeno”, e se não posso ser “pequeno”, então não posso ser “pequeno-burguês”. Desarmante, não é? É que já não podem emendar a mão e dizer que, afinal, sou um “médio-burguês”, é que às vezes, menos do que devia, infelizmente, o ridículo mata.
Se ao menos fossem idealistas mergulhados no real das calçadas por levantar, viessem para a rua levar porrada da polícia, ou de outras forças opressivas do statu quo dominante, pegassem nos sem-abrigo e os carregassem para as suas casas, enfrentassem corpo-a-corpo os avatares do fascismo salazarento..., em resumo: pusessem as mãos na massa. Mas não, são burocratas do idealismo, fabricam mundos novos, taxando este de espúrio, sentados à secretária (muitas vezes recebendo ordenado). Por isso são simplificadores, o mal actual é simples, o bem futuro também será simples. Reduzem as realidades a slogans, aquelas a encaixar nestes.
Nietzsche dizia que se “dá um passo atrás quando se quer dar um grande passo em frente”. Os idealistas querem, só, substituir este mundo, estas realidades, por outro, o que vão inventando à secretária. Passo de gigante frustrado. Bem sei que só com esperança se pode encontrar o inesperado (Heraclito), mas esse “inesperado” será feito, pelo menos sempre foi, de pequenas coisas, de partículas menores, relações em filigrana. Mesmo as ditas grandes revoluções não alteraram, por exemplo, a nossa tendência para o amor-paixão ou a acumulação de capital, eu acumulo livros mesmo sendo bastante crítico em relação ao capitalismo. Por isso, a “esperança” de que falou Heraclito (alguns gregos niilistas consideravam-na o pior elemento da Caixa de Pandora) deve ser mais poética do que burocrática.
Rente à realidade, amo as coisas básicas que nos mantêm vivos, a exactidão dos animais simples, mais do que o nosso racionalismo insatisfeito e sobranceiro, prefiro a exactidão dos operários à feitiçaria dos génios, sou eu próprio um operário, passo mais tempo em pé do que à secretária. E já não vou a missas ideológicas, mistura frenética de história e teologia.