A arte para a vida

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Goya percebe, bem antes dos pensadores do não-consciente, que no humano vive, mais ou menos escondido, o inumano. Representando-o, como nesta obra, pelo risível ou pelo cruel (El 3 de mayo, 1808)

Theodor W. Adorno, filósofo, musicólogo, compositor... alemão disse em 1949 que “escrever um poema depois de Auschwitz [era] bárbaro”, justificando isso a ideia de que se tinha tornado impossível escrever poesia (Adorno alargava isso a toda a arte). Entretanto, a frase foi descontextualizada e reduzida à condição de uma sentença, esquecendo-se que Adorno tem um pensamento cheio de nuances e que queria, num tempo de grandiosas euforias, recordar aquilo com que os vencedores evitavam confrontar-se: o abismo do holocausto. Na verdade, na segunda grande Guerra a pretensa vitória da civilização sobre a barbárie escondia a dificuldade de se continuar a confiar no ser humano, não apenas nos nazis ou fascistas em geral, mas em todo o ser humano (a continuação da história viria a dar-lhe razão). As contas com o passado ainda não tinham sido todas feitas, era preciso colocar a questão sobre a possibilidade de se escreverem ou não poemas, produzirem ou não obras de arte. Era mais disto que se tratava do que formular um interdito simplista.

De qualquer forma, muita tinta correu sobre a afirmação, e Adorno regressou várias vezes a ela, nomeadamente num curso que deu em 1965 (Metafísica  – Conceitos e Problemas). Aí começa por se surpreender com a polémica que aquela frase tinha suscitado. Escrevendo filosofia, diz, nunca se exprimia de modo completamente literal, tanto mais que ela não revela factos, mas indica tendências. Assim, desmontando as interpretações lineares, e moralizantes, do que tinha dito, assegura que é preciso escrever poemas, no sentido em que Hegel, na Estética, defende que enquanto houver consciência do sofrimento nos homens, deve igualmente existir arte como forma objectiva dessa consciência.

Também isto precisa, se quisermos ser fiéis a Adorno, de ser nuanciado, e o muito que dirá naquele curso e depois disso, sobretudo na Dialéctica Negativa e em textos que farão um livro póstumo (Teoria Estética), revelam uma continuidade de pensamento mais do que uma inversão. Adorno manteve o pensamento de que a cultura pós-Guerra não tinha feito o único gesto possível para se resgatar da cumplicidade, ainda que relativa, com a barbárie: reflectir, de múltiplas formas, sobre o holocausto. Por isso, a cultura pós-Auschwitz era um “monte de lixo”, vivendo num insuportável autocontentamento e raramente ultrapassando o patamar da banalidade. Portanto, mais do que a formulação simplista de um interdito, as sombras de Auschwitz deviam impor um pensamento e uma acção que levasse às últimas consequências a dialéctica da possibilidade-impossibilidade de se escreverem poemas (ou produzir outras obras de arte).

II

Outra interpretação (que não se afasta totalmente desta prova estético-moral) permite pensar que aqui se joga a vida sobre a arte. A arte não pode estar acima da vida. Neste caso, os poemas, e a arte em geral, deveriam obrigar a pensar se ainda era possível viver depois de Auschwitz, e não, como pretendia Kant, provocar um prazer sem explicação conceptual.

Esta linha vitalista (chamemos-lhe assim para abreviar) é, claro, anterior a Adorno. Por exemplo, toda a obra de Nietzsche, mesmo quando diz, ainda a começar a sua vida de polemista, que é preciso fazer da vida uma obra de arte (O Nascimento da Tragédia, 1872), vai nesse sentido: a arte só tem valor se estimular a vontade de viver (daí as críticas, por vezes injustas, ao niilismo wagneriano), sobretudo quando as condições parecem favorecer os ideais ascéticos (essa recusa do tangível, trocando o corpo pela alma, a vida pela morte).

Não querendo maçar-vos muito, deixem-me dar alguns exemplos, que talvez tenham ido beber dionisiacamente ao materialismo metafísico nietzscheano, sobre uma recomposição essencial da arte no século XX que vai ao encontro das pretensões de Adorno. Não completamente, é verdade, mas toca naquilo que suporta o pensamento do filósofo alemão: que humanidade é esta? E com isso desloca a questão da obra de arte para a vida, pergunta ao mesmo tempo pelas condições de possibilidade do viver e de quem vive. Num certo sentido, retoma e prolonga Kant (Crítica da Razão Pura) ao perguntar o que “devemos fazer” e o que nos “é permitido esperar”. Isto é, que humanidade somos e que humanidade queremos vir a ser? Os artistas que escolhi não abrangem totalmente essas questões visceralmente filosóficas, mas deformam bem os preconceitos antropológicos, abrindo uma espécie de caixa de Pandora sobre o que é ser homem, dirimindo as certezas, científicas e morais, que um antropocentrismo acrítico incrustou até à mais ínfima parcela da nossa existência. Assumindo as catástrofes históricas, mas também psíquicas, subjectivas, a catástrofe da subjectivação, isto é, da formação e consolidação do sujeito.

Lucian Freud emite novos sinais sobre o corpo humano, não é a alma, ou um interior intenso e quase sagrado que quer mostrar, mas novas possibilidades do corpo. Para isso desfaz padrões, reais e imaginários. Parece regressar às antecâmaras de Auschwi…

Lucian Freud emite novos sinais sobre o corpo humano, não é a alma, ou um interior intenso e quase sagrado que quer mostrar, mas novas possibilidades do corpo. Para isso desfaz padrões, reais e imaginários. Parece regressar às antecâmaras de Auschwitz, aos corpos que se desnudavam sem qualquer erotismo, aos corpos-objectos entre a vida e a morte. Neste caso, os lábios de Kate Moss guardam ainda pulsões sexuais, mas esse destaque talvez queira realçar, em negativo, o resto de uma cara que é sobretudo um complexo biológico preparado para envelhecer e morrer.

Francis Bacon não faz qualquer concessão ao belo, são verdadeiramente os demónios humanos que lhe interessa pintar. Esses que nos habituamos a ocultar para que tudo corra pelo melhor. O que expõe rememora os piores momentos da história, não os acide…

Francis Bacon não faz qualquer concessão ao belo, são verdadeiramente os demónios humanos que lhe interessa pintar. Esses que nos habituamos a ocultar para que tudo corra pelo melhor. O que expõe rememora os piores momentos da história, não os acidentais, mas os que marcaram as esquinas do rectângulo onde está a humanidade.

Edward Hopper coloca corpos no meio do nada, a sós consigo mesmos. A espera vã que parece suportar a maioria das suas obras, pode ser projectada em diferentes situações dos campos de concentração nazis. A espera vã traduz-se em falta de esperança, n…

Edward Hopper coloca corpos no meio do nada, a sós consigo mesmos. A espera vã que parece suportar a maioria das suas obras, pode ser projectada em diferentes situações dos campos de concentração nazis. A espera vã traduz-se em falta de esperança, numa sobre-concentração ensimesmada que torna insuportável o exterior e, sobretudo, a interioridade. A partir disto, creio compreender a extrema docilidade de judeus abatidos com um tiro na cabeça ao pé das valas comuns que tinham acabado de abrir.