Dedo nosso entrando em ferida nossa

Abre-se a boca, a luz entra na garganta feita clarabóia, e tudo principia. O corpo dá-se à claridade, dilata-se para receber a manhã iluminando as suas entranhas. O seu reflexo torna-se também visível, bem como seu lastro. Imbuído por essa claridade, não fica, ainda assim, vazio, por muito que se esvazie. O vácuo aberto pelo derrame é preenchido por uma nova forma de vazio, um vazio que não é letárgico, que não é ausente, mas que é ocupado por uma outra forma de estar no espaço, uma outra forma de materialidade.

            Por onde se abre, o corpo também se deixa invadir, torna-se porto de passagem de forças aparentemente ocultas, misteriosas. E assim, ele conquista a sua própria escuridão. Saindo do corpo, o que move o corpo aproveita a maré de luz exterior para com ela partir rumo à descoberta do interior do lugar onde morava. Encontra os seus elementos primeiros, as suas estruturas, os seus mecanismos, mas também as pinturas rupestres sobre as grutas, o bolbo soterrado das imagens cravadas na carne dando envolvência e peripécia à viagem, perturbando-a, tornando-a ainda mais explicitamente provisória.

            Não é, contudo, um prado em plena ebulição da juventude, nem a cidade consegue esconder as feridas da guerra. O que desconcerta é como irradia aquilo que Thomas Bernhard chamaria uma manhã sem destruição, um momento em que a natureza encara a sua própria violência com ternura, como um impulso redimido. 

             É a célebre pintura de Caravaggio “a incredibilidade de São Tomé”, Tomé olha a chaga de Cristo, quer tocar-lhe.  E Cristo, lânguido e prostrado, aceita ver-se penetrado pelo dedo céptico de Tomé.  O triunfo sobre a dor é a prova da divindade, e isso teria desconcertado aquele que não cria. Como poderia uma criatura ser indiferente à sua própria dor, deixando que um dedo penetrasse a sua ferida como se arrumasse... fósforos numa caixa.

            Ver figura humana ajudando a perfurar sua própria carne é como ver poeta que nos fala dos seus sentimentos, alheando-se da sua presença e evidenciando seu abandono. Eles são-nos visíveis, estão-nos oferecidos como ferida aberta sangrando tal qual se espera dela, mas a ausência de propriedade (ou de proprietário) arrepia-nos, como se pusesse em causa a própria fundação da nossa identidade: as nossas emoções mais puras.

            Quando Miguel Royo nos sugere que somos apenas orifícios que comunicam, encontramos aqui, como na pintura de Caravagio, um estranho fenómeno de anulação do ego. Mas enquanto Cristo de São Tomé se anula porque sabe consusbtanciar-se em algo que o transvaza, o alheamento do poeta parece-nos porventura mais bizarro, pois joga com um revólver na cabeça a efemeridade da sua própria morte.    

            O inventário do que nos compõe continua, dir-se-ia que o escritor tomou o lugar do fisiologista e que analisa com meticulosidade cada elemento do que compõe a carne humana. Não necessariamente para organizar um compêndio que possa ser inserido numa rede de transmissão de conhecimento. O seu regresso à materialidade é quase místico, porque tornando a matéria plástica consegue evidenciar tudo que dela emana, a sua própria sensualidade, a sedução de uma vertigem que sabe ser o desejo sublimado da queda.

            Mas ao anular-se, o sujeito procura anular aquilo que Freud dizia haver mais íntimo e fundacional: sua dor. Ainda que depois mergulhe nela, através das palavras, porque, muito embora elas se prostituam como palavras unindo as nossas ilusões de contacto, a sua duplicidade faz delas tão dignas de interesse quanto o corpo: a sua falsidade, a sua escuridão é a sua ficcionalidade, é aquilo que as torna bífidas, capazes de serem campos intensivos produtores de sentido, estimulando o nosso desejo.

            As palavras revelam-se a fundação do canto. Não se sabe bem como é que surge um corpo profundamente telúrico capaz de cantar. Nem de onde vem esse canto, se é um grito de agonia de alguém que asfixia momentaneamente, se é um fenómeno milagroso sem origem sondável, se é, como outros, um fenómeno natural da paisagem. Sabe-se, apenas, que é indagando a carne e suas feridas, que é encostando-lhe o gume como ameaça, que o canto começa.

            Talvez importe aqui, relembrar, o título do livro Na Pedra a Luz Afia o Gume, porque a estarmos perante uma teoria geral sobre as coisas da vida, não podemos deixar de notar a equivalência entre a luz e o canto. Sendo, por isso, válido questionarmo-nos tendo em conta o que faláramos sobre a escuridão do corpo - se o que se procura com o canto não será desvelar alguns dos mistérios dessa sombra.

            Se esta hipótese fosse verdadeira apunhalaríamos mais um fantasma do sentimento da identidade, porque nem o canto, ou o discurso poético, seria a prova de algum tipo de instância singular, de propriedade não-partilhada com mais nenhum corpo circundante. Este canto, assemelhar-se-ia mais a um coro do que a uma ária, ainda que invoque a primeira pessoa do singular recorrentemente, como uma espécie de cobaia que é atirada na praça pública, para experimentar o espancamento de uma multidão.

            Quando nos é dito sou o sonho do cavalo dentro do homem/ castrado da sua natureza aérea é logo rapidamente rebatido mas sou  o punho/ no teu ventre arrependido/ a mão na pedra que se recusa a abrir/ por não revelar nada a não ser/ a disponibilidade total de um membro, ao que é acrescentado mas sou a dentadura da morte/ o único árbitro que sorri no escuro. Ainda que seja ensaiada uma espécie de definição identitária espiritual, um sujeito como algo que precede e extravasa a carne, ela é logo de seguida desfeita: o sujeito é rapidamente subsumido em matéria corporal e despersonalizado, constituído enquanto entidade comum.

            Mas este não é o único momento de despersonalização, nem tão pouco do esvaziamento do sujeito para ser tomado por um outro alento. Consideremos ,porventura, se estas mãos me rangem é porque têm dentes/ e se têm dentes é porque não são minhas, mas também o futuro/ se vier/ que suba pela mecha dos meus músclos/ estendidos sobre a mesa dos dias/ em ígnea submissão, ou mesmo que o corpo se transforma/ no adubo de pensamentos alheios e a pessoas passeiam/ longe dos nossos restos porque cheiram ainda a movimento/ e a diálogos abertos. Neles se intui, não só o não-desaparecimento da agência mesmo quando o sujeito é reduzido aos seus instrumentos de percepção ou de actuação sobre o mundo, como também se constata o alheamento desconcertante que havíamos referido anteriormente.

            Por muito que os próprios pensamentos sejam alheios ao corpo há uma força motora que procura a escuridão, a escuridão da morte, impulsiona o corpo a flagelar-se, a rejeitar o sono, a cair verticalmente na doença. Na sua própria indefinição procura a febre eminente da noite num corpo distendido sem definição e dá lhe a forma urgente para afrontar o sono com as mãos e combater a morte no seu território ou a noite trabalha a carne com as mãos roubadas às insónias e ousa todas as formas até que uma brecha no escuro nos devolva as mãos e a luz.

            A confusão entre interior/exterior surge como consequência natural do desaparecimento do sujeito e viaja pelo livro todo, é o seu próprio fardo e, sarcasticamente, a prova viva da sua singularidade, porque não é nem o sujeito desaparecido puramente contemplativo de algo que lhe é externo, nem tão pouco o psicótico que transforma a aparência da realidade com as suas convulsões, é, uma outra coisa, um corpo que mira a paisagem sendo a paisagem, ou uma paisagem que encontra no corpo o seu reflexo e sobre si nele medita, podendo ser um ou outro, ou mesmo os dois em simultâneo: esta paisagem é o mundo que se deita sobre os nossos olhos… por pudor a ser desvendado volta-se sobre si mesma como um animal ferido à altura da nossa vista. A relação umbilical entre a paisagem e quem a observa parece sugerir que um e outro dependem da existência mútua para poder sobreviver, como se um e outro fossem o mesmo corpo.

            Talvez, é por saber a sua condição de primeira fila no batalhão que este falso-sujeito se presta a caminhar tão próximo da morte, sendo curioso observar que, quando se aproxima, ele torna-se cada vez mais apaixonado.  A morte surge como uma fuga, uma nesga ou, cito também, frincha entre as vedações do sentido, um ponto sem retorno da vedação do sentido. Mas também como reforço do alento.

            É sobre o parapeito dessa vertigem que caminhamos, como se tacteássemos uma noite como um grande mistério cravado no céu da boca. Porque, aqui, a morte e a noite são siamesas, procuro a febre eminente da noite num corpo distendido sem definição e dar-lhe a forma urgente para afrontar o sono com as mãos e combater no seu território. A noite paira no corpo, enquanto o corpo escapa às sondas do sentido e é possuído por um alento incógnito, movido por forças recônditas. Esse movimento centrífugo é sinal de inteligibilidade, de inteligência, começo a recear que é no nicho da sombra que principia a lucidez. Pelos corpos adentro escavo para encontrar a luz, muito embora não seja claro se isso chega para se falar de uma singularidade.

.           Seria impossível falar-se da anulação do sujeito, sem falar da morte, porque a morte é a sua arena principal. A morte e, aliás, a noite são sempre elevados ao enigma primordial, que seduz e atrai o sujeito a abandonar-se e deixar-se navegar pelas suas ondas, ainda que o perigo de afogamento seja evidente.  Só a incógnita remete para um desfecho do ego. Ou uma hermenêutica do invisível, contra ela, o poeta tem dois movimentos distintos, porque se por um lado,  a procura apaixonada por desvelá-las é afirmação do corpo como força intensiva e pregnante - como uma força própria da vida, viva por isso-, por outro lado,  a morte é também vista como descanso, a concretização do corpo com a paisagem que integra, ou, o corpo retraído na coordenada vaga onde o mundo acaba e principia o mistério.

            Ainda que este livro não seja propriamente uma elegia fúnebre, porque nos fala, porque seus órgãos estão vivos, a boca, a garganta, os seus olhos, as suas mãos, a úvula, a sua bílis trabalhando ainda, os tímpanos tísicos de tudo conservar. E estes órgãos são lhe familiares, próximos, viscerais, cobertos de nevoeiro, ainda que estanques e imóveis. Um olhar que é presa do mundo que o ataca, pulsos abertos sangrando abundantemente sobre os mapas, os corpos esmurrados por sussurros de uma vida externa que lhe é estranha e sobre o qual se debruçam: abrem-se os corpos como campos feridos com a chegada do estio… são os campos que inauguram os incêndios e ardem… voltando-se para o interior do lume.

            E novo desconcerto, é que não só os órgãos nos trazem a expansão fulgurante de uma vida que está para lá do corpo, como essa vida nos traz o rasto de outras narrativas, pegadas de cabras que passaram para nos beber os sonhos. É por isso que, talvez, relembrar é como um espasmo de morte, como nos é dito, porque a memória parece impedir o fluir livre da vida sensorial sobre os órgãos. Ela é maliciosa, onde armazena os enigmas da vida, onde amarzena as noites, torna evidente o carácter provisório de tudo o que lhe rodeia. Mas é, também, a segunda prova de que o corpo está vivo e isso não nega a sua função de fio condutor da corrente elétrica. A memória, quando não traz trégua, traz a obrigação da procura, constituindo-se enquanto terceira voz à digladiação interna entre os elementos da paisagem.

            Ainda que pareçam todos mediados pelo mesmo denominador (dada a ausência de carácter singular e a aparência cosmogenética da descrição que é feita) os elementos da paisagem não são idênticos. Não é certo o que os distingue senão a sua composição, porque se recusa quase sempre falar de uma identidade dita espiritual ou transcendental,  porque tudo parece alimentado por forças vizinhas. Talvez, a singularidade venha de fardo antigo, tenho o sangue contaminado pelo tempo a razão da sua diferença seja a descendência, o seu genoma porque o sangue transporta a descendência, a trama infindável de paixão

            Ainda que os corpos se sucedam, e que a descendência apareça como um estranho fenómeno de iteração marginalmente alterada. Ela tem dentro de si o seu próprio equilíbrio funcional de forças, a relação entre a mãe e o filho, entre o neto e seus antepassados. Permite-nos, dessa forma, partir rumo ao cerne do seu caos harmonioso, onde a dor e a morte aparecem desveladas como algo próprio da natureza e, por isso, belo. Por mais violento que ela possa ser. Filhos que abandonam ideias em chamas, cuja natureza icariana faz que só pela dor concretizem o que aspiram ser.  Avós que assombram os netos com seus sonhos e profecias. Mães que observam os fihos cumprirem-se sobre o gume da morte.

            O desconcerto, provocado pelo desvelar dos conflitos internos da paisagem com outras vozes, assemelha-se mais a uma arena do que a um horto, é aliás bélico. É um balanço permanente entre a imagem e aquilo que a imagem evoca, mas não num plano tradicional da oposição da fenomenologia clássica, é uma luta dentro da própria imagem, é dentro dela que uma parte entra em conflito com o restante, o mundo atacando,  a memória como uma revelação, o mundo retaliando, e o corpo respondendo, não serve estar ferido nos olhos e capitular. Urge desdobrá-los… como um punho ou um baluarte erguido na frente das trincheiras do mundo.

            Esta luta pede aliás um tributo para as tramitações da carne porque é aos corpos que é exigido que encenem este combate, porque é do que lhes compõem que vêm o que gera a confrontação, as mãos que não são só, como dissemos, elemento primeiro de reconhecimento do mundo, mas também que trazem sedes próprias (fomes que nem o pulso apaga), que rangem raivosamente para morder.

            Esta submissão do sujeito para dar lugar ao corpo encontra-se também reflectida nas imagens propriamente eróticas, no sentido clássico da palavra, isto é, como aquilo que diz respeito ao amor. Porque até aqui, não encontramos, propriamente, o amor como resultado do desejo de quem ama, nem tão pouco na candura ou desenvoltura de quem é amado: o amor aparece tão só como mais uma das dinâmicas de confrontação entre os corpos, como um enigma próprio da paisagem, e o beijo como um detrito do vocábulo ou um ósculo de rebentação. Quando amados, os corpos procuram a sua proximidade, querem a faísca do seu magnetismo, procuram visceralmente ceder à sua vertigem. Quando amados, ou, melhor dizendo, quando atraídos pelo amor, os corpos desmembram-se e tornam-se elementos da paisagem.

            O amor tem essa faculdade, de operar uma transformação das coisas, dando-lhes exaustiva vida própria, uma outra utilidade, vemos neste livro, mãos que se tornam água, que arredondam pedras, que sulcam a derme e fendem desejo, que se alimentam do que criam e que criam o que alimentam. É um momento de subtração para gerar novas substâncias, de cair verticalmente a meio e aparecer de pé sobre a laje do teu futuro.

            E é quando há a possibilidade de o amor desaparecer, mais que quando se extinguiu o ânimo de uma criatura, o sujeito de um corpo, ou a textura de uma paisagem, surge o momento de maior fulgor e violência nos poemas. Fala-se de rasgar o corpo amado de cima a baixo, de incendiá-lo e encontra-se o verso que dá título ao livro é na pedra que a luz afia o gume, como se fosse possível torcer a própria espinha dorsal da luz, do canto, para torná-lo acutilante, perigoso, feroz, penetrante como uma faca.

            Neste livro assistimos a uma cosmogenese, o que há de substantivo parece surpreendentemente alinhado num conjunto de teses que organicamente dialogam entre si e se reforçam, sobre a aparência de uma linguagem desconcertantemente límpida e soberana. Tem lugar um teatro dos corpos alimentados pela sua própria paixão mas sem ter, propriamente, um pendor onírico, uma fabulação romantizada.

            A paisagem está descarnada, despida, os ossos expostos. Onde nos desconcerta, é a sensualidade que evoca este desvelar por vezes tórrido, por outras vezes sereno. Os corpos enquanto actores, figurantes e cenário procuram-se e procuram se a si próprios, enfrentam a noite e a escuridão de tudo o que lhes rodeia, do seu desígnio, do seu passado, da sua descendência, da sua paixão, a dor e a morte despem-se, apresentam-se puras, não-mediadas, escorrendo sem coágulo.

            Só, talvez, na memória dos anciãos da família, surge uma afecção dir-se-ia pessoal, mas em todo o resto é um livro completamente acabado e que nos perturba na medida em que se alheia categoricamente do que nos é próximo, como uma casa nossa que nunca visitáramos onde de cada aresta depende o confronto com a ruína. Na mesma medida que se afasta de si próprio, procura-se a si próprio como um outro, como um olhar projectado de fora do crânio para o corpo mas não como um corpo que se olha ao espelho, porque não é necessariamente reflexivo, não é o sujeito que se pensa, é algo que pensa fora do sujeito sobre o sujeito e que para isso usa o que vê, as pegadas que invocam a passagem do tempo.

            Não há linhas de fuga projectadas por eventuais desequilibrios, as única linhas de fuga são as que o seu próprio corpo indica e lança para lá de si, um corpo desmembrado, para depois ser recosido, e ainda assim manter todo o seu potencial alegórico, a sua fantasia. Foi a isto que quisemos chamar desconcerto. Um dedo outro entrando em ferida alheia sendo um dedo nosso entrando em ferida nossa.

5- raízes que nos ergueram          esmagadas

5-

raízes que nos ergueram          esmagadas
ceifadas da rua              em prol do progresso
comovendo-nos lágrimas    aparentemente        puras
como pura é a dor universal                 universal ferida
sangrando        quem diria     a autocarros STCP
o grande dilúvio da dura-mater 

como poderia Deus ter nojo de seu corpo humano
quando sem corpo    nem mágoa    nem zénite
nem   ó meu safado     glória!  
nem glória de Deus nem escárnio de Deus
ter corpo humano    porque não       rir-se disso
do pavor de ver o fantasma possuindo o granito
aparecendo como Judith degolando os infiéis
tributo à tribu que inventou o trauma
o real como um cordeiro sacrificial 

vêem     meus meninos     as suas patas tremendo     vacilando     suplicando
reparem como    afinal     tão imberbe    tão próximo     tão idiossincrático!
 

e nós    
recebendo a chuva diluvial como adolescentes
fossemos surgindo indistintos na legião dos patetas
altercando com um néscio comando
         o sentido da vida 

e frívola de spleen   
         nalguma metrópole germânica 
a rapariguinha da boutique naturalista 
         adorando astros fulminados         
serviu-nos na língua
        com suas mãos obscenamente cautelosas  
                                             veneno
e vendou-nos        
         para comermos vísceras de revoluções      
                 à porta de um corcel
                          com uma grandiosa inscrição neon-pedagógica por cima                                         

isso e a existência como uma agonia
a mão na garganta de nos lembrarmos
de quando    foramos    tão longe    disto
como que
altos     brancos      e despovoados 

4-  Avenida de Estalingrado

   à Karen


Oh e as argutas estradas da civilização
esgotadas na têmpora do peso que apagam
quando escoam lívidas  soberanas  judicativas
os parasitas que sobre elas sorvem
ilusões de fonte
fontanários esquálidos cobertos de musgo
seus crânios perante a posteridade

quando paramos nelas
louco é o vento da sua correria nos nossos cabelos
mas quando nelas andamos
nauseabunda é a sua imobilidade perene onde
aí     elas são como nós
        bustos ocos cuspindo água contaminada

as nossas cidades e nós
alimentados por uma corrente que não nossa
tendo uma fachada como um peso de uma linhagem
uma circuncisão
ou como o povo do deserto lhe chamou
um baptismo

e mais que o sangue verde que corre nas nossas veias 
- nossas    delas     dele -
sonhamos com a faca na veia
a jugular rasgando o seu horizonte
escrevendo o nosso nome finalmente liberto da grafia
como                  Pollock          
ou como uma criança antes de lhe ser imposta
o catequismo da Arte patriótica

as crianças quando nascem sabem nadar
as crianças quando morrem não desaprendem a nadar
só esta frase dá consolo à miséria

MISERÁVEL
nos teus lábios secos e enxutos
bem-se poderia escrever apenas
puro

mas a vida                 contaminada
Sebastião o inesperado santo sabia-o
por isso rejubilava amarrado a um poste
como uma puta

un, deux, trois, plier, Mademoiselle, plier
un, deux, trois, plier, encore, plier
parrrrrrrrrrrfait

Medusa professoral de serpentes em chamas
bradando aterrorizada pelos séculos fora

quem ainda duvida que as putas são      ainda       apesar disso     contra tudo isso
pias 
               imaculadas  
                                    milagrosamente canonizadas 
ainda que nunca apagando o seu sofrimento       lavadas   todos os dias
por sémen de criaturas perdidas     lançadas ao mar     afogadas
com certificados de maioridade no desespero
velhos reactores de barricadas justas      necessárias      esquecidas
e agora                    apenas
moedas do império    escravos do império    obeliscos do império
largados por fantasia religiosa
religare religare religare
como uma sedução cruel
como ondas assassinas batendo num barco em fuga
assassinas  sanguinárias  sádicas

as crianças quando nascem sabem nadar

porque precisas tu então de um barco
Ulisses       Vasco       Laikazinha-amor-doméstico

a minha cara tem
apesar de tudo
mais razão de ser
no secretariado da propaganda nacional
que no meu pescoço

a tua solidão
      tem
apesar das farpas
mais amor pelo secretariado de propaganda nacional
que pelo sadismo da tua retina

ela é inesgotável                       inavegável
torrente brava     inexpiável      bruta

os teus olhos lembram-me mares que eu nunca vi

os ábacos dançando
o teu pulso decalcado numa matriz
no hospital onde ninguém te visita

a tua solidão é o propósito de haver barcos
entretém bulímico para cidades enfastidiadas

vazia    entretida      uma cidade confinada
vigiada    pudorosa    convalescente

atulhada ou confinada uma cidade pode estar deserta
se entretida

o teu grito esvaziou a cidade           confinou-a
a cidade agora entretém-se      abundante         vazia

3- de peito aberto à volúpia inextrincável do mundo

de peito aberto à volúpia inextrincável do mundo
sei que em cada navio há       como que
                 uma concreção da margem idealizada
                           uma terra diabólica com odor apenas a mato
e os mais belos exemplares da raça           
                  com a cara esculpida pelo vício
                            sentindo o sol
                                  a incendiar as résteas do sal marítimo na pele
como que         
          engendrando pequenas revoluções
cravando a raíz
               -  não olhando ao sangue sofrido das mães -
                           nos amantes enebriados             
                                   euforia necessária ao lavor da máquina
terra subitamente desocupada     
                   atraindo sobre si
                          a fúria colonizadora das plantas
digo
da palpitação dos corações produtivos
                 com mãos cheias de petróleo e Roma
digo
homens-palavra
               afinando o negócio das estações

sei também que 
não fui o único que ao olhar o céu
descobriu nos seus lençóis
o perfume quotidiano de Ítaca
não 
dos seus pródigos versadores do medo
nem tão pouco       
dos seus atletas da fecundação
                   numa história calibrada pela faca
                          e pelo ciúme jupiteriano 
                                com qualquer manifestação de alteridade
mas     
           a menstruação abandonada ao descuido no níveo chão
                      os cabelos amarfanhados no escroto ou no anûs
                               de uma criatura inexplicavelmente luminosa e anesténica
                                 com mãos sibilosas sobre o barro     
                           carregando cântaros         
            tomando a si os néscios
e que aí             
           - ó único deus vivo -
                    juramos ter por nossa companheira
                          uma louca desventura pelos pântanos das cidades selvagens
            trazendo em nosso peito
                    feras sem dentes
                          devolvendo-as saudosos às fábricas
                                  com longas saudações orgulhosas
                                          e promessas de Abril

era da palpitação 
                 do elétrico 28
                        carregando turistas          
                                às zonas perigosas da cidade
como que
                 cuidados de primeiro socorros
                        para suicidas em estado de iminência
                                 que falava                    
e sobre à margem do rio
                  afoguei-me nos seus choros lúcidos 
                               enquanto gritavam de prazer
                                      a cada marretada que levavam da maca
dançando com a sofreguidão das ambulâncias                  
                  gritando de adrenalina a cada curva
                               em frente do paternalismo do enfermeiro
                                        ou dir-se-ia
                                                      de Cristo
o único suicida que percebeu a sua santidade por se suicidar
mas que nunca 
                  diga-se 
                           abonou propriamente para o lado da lucidez
tendo-se dado ao desprezo de ser lembrado
como um mero porta-voz de uma ideia que não entendia muito bem
e que por isso          
                  diga-se também de passagem
                         não foi propriamente pródigo a fazer com que a entendessem              
nada fez de relevante para acabar com
o roubo do cobre nos fios dos elétricos
motivados pela malta que
                  podendo        
                         preferiu não acreditar muito nas propriedades místicas da fome

mas
nada disto
deve
ser entendido como uma maçã retirada de um outro Jardim
continuamos 
               neste pequeno aquário de província veraniana
                              que afinal todos habitamos 
nossa é a merda que comemos 
                 todos os dias
                              em todos os desembarques
a histeria                é apenas um curto-circuito.

2 - Sirenes esgazeadas

Sirenes esgazeadas
torrente caseira de canteiros iluminados num regresso saudoso
descobrindo estivadores       lúcidos            perdidos
a boiar nos copos veranis
de passageiros          frequentes       hirtos
que trazem o sal do oceano
em pequenas fotografias círias               pálidas

se a noite é ainda a única pergunta
que a todos se nos coloca
porque nos inclinaremos então em frentes destes
se destes não mais guardamos do que
                                                 dança imprecisa
rumor antigo de uma
                           bem mais do que nossa
                                                       presença
                                                             mórbida
esfomeada de lares por encher com a sua doce próstata
o vagão do último metro disparado em veia quente
                                                                      delirante              
                                                                                  suada
correias de transmissão de doença        encruzilhadas venéreas
mancebos fecundados    alistados        para o culto do fogo azul

como se os destronando         um a um           ouvíssemos
pelas cavernas empedernidas do nosso corpo
uma imensa orquestra de tudo o que nos rodeia                gritando
uma imensa massa vulcânica             sedosa
reclamando as filhas dos néscios      uma a uma
nuas pelos vales de camélias de íris melosa
subitamente reaparecidas
                     como que um sorriso pleno
                                            nos vales antigos 
onde as máscaras destilam o ódio ao sol
                                              primavera traidora
                                                                punhal sagrado
ferindo o rebanho de           seduções temperanas
acordos mutuamente proveitosos     com ansiolíticos da casa

a prata da casa como um hino nacional entoado
                                      em directo
uma equipa de futebol piedosamente calada
                                       vendo o estádio cheio a desmoronar            finalmente

Até relinchas Patrick