A Torção dos Sentidos - Recensão

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Louve-se o aparecimento de um livro de filosofia (num sentido amplo, A Torção dos Sentidos segue a linha ensaística inaugurada por Montaigne), exercício de pensamento que nos habituamos a menosprezar desde que, há muito, em Portugal, lhe preferimos o lirismo ou o discurso comum. Não somos uma cultura filosófica, nunca o fomos, nunca o seremos. Uma fatalidade que construímos e com a qual nos damos bem.

Os que escaparam ao destino da indigência intelectual encontrarão neste livro bons estímulos para pensar o uso da tecnologia digital, uma crítica às sociedades capitalistas e uma fenomenologia, entrelaçada com uma hermenêutica, do amor, viagem, comunidade, estudo e arte. Se é verdade que não aderimos totalmente às teses do autor (sobretudo porque nos parece que há demasiados tipos de capitalismo para que se continue a pensá-lo uniformemente e porque a questão da desigualdade social deve ser, em primeiro lugar, abordada a partir da situação privilegiada, ou não, em que nos encontramos, uma ética antes de uma epistemologia), reconhecemos a importância do seu labor e confessamos que sentimos prazer ao lê-lo.

O capítulo inicial é sobre o que pode a filosofia perante a situação pandémica originada pelo SARS-CoV-2, um questionamento que terá várias respostas, todas, contudo, assentes num único eixo de sentido: poder de interpretar e poder de transformar. Isto segue, claro está, a inversão realizada por Marx: mais vale transformar do que interpretar, ou, no mínimo, só devemos interpretar se com isso quisermos e pudermos transformar (uma filosofia política que ocasionou, mesmo que numa versão bastarda, a civilização soviética, e agora, ainda com mais enxertos, a chinesa). Que na origem tinha uma atmosfera messiânica do reino dos fins, neste caso seria, mas o autor não vai tão longe, uma sociedade de iguais inconfundivelmente feliz. Assim, «a hipótese filosófica visa não a máxima adequação à realidade mas a máxima tensão entre a aproximação interpretativa e o distanciamento transformador.» (p. 21)

É, pois, necessário ler esta obra «com a pulga atrás da orelha» (expressão do autor), João Pedro Cachopo quer, pelo menos, transformar, com a ajuda de uma escolha calculada de comentadores (Zizek, Badiou, Byung-Chul Han, Agambem, Nancy, Rancière, Naomi Klein, Walter Benjamin…), a nossa perceção da realidade (mistura de subjetividade e objetividade, um pouco à maneira da «situação» sartriana), aderindo à sua cosmovisão. Será, então, um livro emancipador? Sim, se o lermos com a «pulga atrás da orelha».

Ora, o que Cachopo vai interpretar (para transformar) não é a pandemia em si, «as transformações que a pandemia revelou e acelerou já estavam em curso», mas as formas de aproximação e distanciamento (no amor, viagem, estudo, comunidade e arte) na era digital (evitando simultaneamente a desconfiança catastrofista e o entusiasmo ingénuo, a tecnofobia e a tecnofilia, as linhas do intelectual «apocalíptico» e, inversamente, do «integrado»). É por isso que a pandemia serve somente de lente de aumento para interpretar melhor, intempestivamente (não é a verdade enquanto adequatio que se procura), a realidade, descobrir as linhas de fuga que conduzem a previsíveis transformações, alteração «radical de os nossos modos de vida, de um modo consequente em termos éticos, políticos e ambientais». (p. 12)

Transformar matricialmente o quê? A era capitalista (neste sentido, o livro é neo-marxista), algo que alguns autores vislumbraram nos efeitos da pandemia, sobretudo com o decréscimo da produção industrial e a mudança das relações laborais. Em boa verdade, não se conseguiu «arrepiar caminho», a matriz capitalista permaneceu inalterada (não se muda uma civilização — conjunto de práticas e valores — de um dia para o outro). Mas a pandemia teve a virtude (política mais do que epistemológica) de mostrar à saciedade que «não estamos no mesmo barco» (Cachopo parafraseia Sloterdijk, invertendo a sua tese)[1], tornou ainda mais «patente as desigualdades que estrangulam o nosso planeta.» (p. 34)

Mas não sendo um livro de filosofia política, pelo menos diretamente, o autor vai pensar as transformações no «modo como sentimos, pensamos e agimos» (p. 36), tanto mais que isto, e aqui está a veia política indireta, sobrevém e influi nas transformações do «mundo» (não é indiferente em filosofia usarem-se os conceitos de mundo e de realidade, aquele é bem menos fenoménico do que este). Um mundo construído na «gritante fragilidade da engrenagem sobre a qual o capitalismo global erige o seu castelo de cartas.» (p. 39) Estamos, pois, no limiar de uma revolução, ou melhor, da revolução. Preparemos, pois, com a ajuda, entre outros, da Torção dos Sentidos, o nosso pensar, sentir e agir para o que aí vem.

E o que aí vem conterá estes últimos anos de remediação digital, mais visível durante a pandemia. A ação do digital herda a «reprodutibilidade técnica que revolucionou a experiência moderna na transição entre os séculos xix e xx» (p. 43). O digital, por exemplo, promete a «aproximação do distante», bem como uma «equalização das distâncias». Mas ao lado de promessas exequíveis e emancipadoras, há outras tantas que são de manipulação e exploração. É por isso, retomando uma ideia de Umberto Eco, que Cachopo distingue o intelectual integrado do apocalíptico, para, no final, os recusar em bloco. Acoplado às suas virtualidades, no primeiro uma «ingenuidade e leniência» (p. 58) desenvolve a ideia estéril, e filosoficamente imprecisa, de vivermos no melhor dos mundos possíveis; a partir do segundo, emerge um reacionarismo que não deixa avançar o mundo (revolução e progresso vão a par, pelo menos no discurso).

Mantém-se, pois, a pergunta: como «combater a revolução digital em defesa da experiência humana» (p. 66)? A resposta geral é a de que nos devemos orientar «não para uma rejeição genérica da tecnologia digital, mas para o discernimento dos seus usos, das suas potencialidades e dos seus perigos.» (p. 67) Salomónico. Mas, então, onde cabe a revolução? Talvez, finalmente, ela não passe de um bordão performativo, capaz de alimentar uma boa consciência que se resignou sem repousar, resignação semi-ativa.

Fiquemos, então, com uma reforma do sentido do amor, da viagem, do estudo, da comunidade e da arte. Estas parcelas do mundo ganham novos sentidos quando investidas pelo digital. Isto, diz Cachopo, sem esgotar significados, pretende somente «sugerir algumas — precárias, genuinamente indecisas — pistas de reflexão.» (p. 70) Não sabemos se esta modéstia esconde ou revela.

O amor, jogo de distância e aproximação, mas no qual o contacto entre corpos importa acima de tudo, não ganhará muito com a remediação digital, tanto mais que no namoro telemático não é possível, como muito bem viu Byung-Chul Han, ficar «olhos nos olhos», num dispositivo ou olhamos para a câmara ou para os olhos do outro, a simetria do olhar, tão decisiva, nunca acontece.

«Viajar é conhecer o mundo no contacto com ele», por isso, com o slogan «fiquem em casa», a viagem foi tão ameaçada pela pandemia. Sem deixar de ser crítico relativamente à massificação turística (quem não é?), o autor defende a necessidade de se viajar, porque só as viagens permitem certas experiências multissensoriais. Ao mesmo tempo, conhece-se o impacto ambiental, e social, negativo das viagens. Portanto, o «desafio não é deixar de viajar, mas viajar menos e melhor» (p. 77). E aqui também não é possível uma qualquer remediação digital significativa.

Sobre o estudo, recusando «elucubrações de cunho nostálgico e conservador.» (p. 80) — uma crítica a Giorgio Agamben —, concede que houve alguma remediação digital durante o enclausuramento pandémico. Contudo, nada que invertesse o novo statu quo universitário, que mais do que emancipar pelo pensamento, profissionaliza o pensamento, sobretudo o crítico. Além disso, acentuou o colapso da «hierarquia entre mestre e discípulo» (p. 82), sem que o autor nos diga que benefícios se retiravam dessa hierarquia, somos, até, tentados a ver aqui um pequeno lapso, tendo presente a críticas que faz ao desigualitarismo. Sabemos bem que a igualdade não significa ausência de hierarquia, ainda assim, sem que Cachopo nos queira explicar a sua ideia, ficamos com a «pulga atrás da orelha». Mas talvez o mais grave, continua o autor, tenha sido o desaparecimento da «vida em comum» dos estudantes, porque o «estudo é feito de encontros, atritos e colisões entre pessoas, objetos, experiências, ideias e palavras.» (Ibidem).

Na comunidade, esfrangalhada por décadas de individualismo e arrivismo, «foi o receio de não estar a salvo que motivou a comoção global, não a solidariedade.» (p. 87) Tomando de empréstimo uma ideia de Byung-Chul Han, João Pedro Cachopo vê o digital transformar o «rebanho ou a matilha» num «enxame»)[2] Assim, a remediação digital não criou qualquer novo tipo de comunidade, mas enxames, ajuntamentos de partículas pontualmente coincidentes que nunca chegam a formar um «nós». São, assim, um paliativo inconsequente para o isolamento. Daí que, com Catherine Malabou, alguns tenham, retomando o princípio rousseauniano (Les Confessions) de se retirarem para dentro deles, de combater o isolamento (resultado de não pertencerem ao enxame) com a solidão, ponto de partida para, paradoxalmente, se encontrar um «nós».

Finalmente, na arte a «verdade alternativa não é entre o acolhimento e a rejeição de novos media, mas entre usos mais e menos criativos, mais e menos ousados, mais e menos desviantes das tecnologias — incluindo as tecnologias de remediação — na prática das artes.» (p. 97) O autor justifica esta posição com exemplos de obras realizadas e difundidas telematicamente durante a pandemia.

No epílogo, do livro [e do mundo?], questiona-se a possibilidade de um «nós universal» (p. 107), capaz de renovar as «sociedades estranguladas por desigualdades». (ibidem) Mesmo sendo «universal», João Pedro Cachopo diz que o «livro prescinde de determinar a priori um “nós”».[3] (ibidem) Prescinde, porquê? Não quer ou julga ser impossível? Haverá ainda disponibilidade filosófica para se propor uma universalidade, não terá essa extravagância sido definitivamente revogada no final século xviii? Trata-se de filosofia ou de política? Seria esse nós, talvez a «vontade geral» rousseauniana, a traçar uma terceira via entre o pessimismo e o otimismo, capaz de encarar e intervir no mundo. Cuidando de não embarcar em antíteses incapazes de culminar numa dialética da síntese, o autor demarca-se de um «antiglobalismo» que parece «contribuir para o que pretende combater: o egoísmo nacional-capitalista.» (p. 109) Portanto, a passagem do «eu» para o «nós» só poderá ser realizada, bem realizada, com «experiências de estudo, arte, viagem, amor e comunidade.» (ibidem) Numa boa aliança entre «tecnologia e ecologia». (ibidem)

Desta forma, deixamos que se insinue um pequeno Pangloss e percebemos por que razão foi tão criticado o pessimismo, social e antropológico, sartriano (o «homem é uma paixão inútil» de O Ser e o Nada), pelo menos o do «primeiro» Sartre. A lógica do happy end, na economia política e emocional, continua a recompensar mais.

[1] Peter Sloterdijk, No Mesmo Barco. Ensaio Sobre Hiperpolítica, Lisboa, Edições Século XXI.

[2] Byung-Chul Han, No Enxame: Reflexões sobre o Digital, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio D’Água.

[3] Pouco depois coloca-se novamente no «verdadeiro» escrevendo que se trata de «um “nós” que, mais do que pressuposto, pode e deve ser elaborado.» (p. 108)

Caderno 4: Modos de escrever

Caderno 4
Modos de escrever

editado por Tatiana Faia e Victor Gonçalves

Enfermaria 6, Lisboa, novembro de 2017, 96 pp.

Capa de João Concha

8€

Carla Diacov
Daniel Francoy
Fernando Guerreiro
Gonçalo Marcelo
João Bosco da Silva
João Concha
João Pedro Cachopo
Luís Quintais
Miguel Zenha
Patrícia Lino
Paulo Rodrigues Ferreira
Pedro Braga Falcão
Tatiana Faia
Victor Gonçalves
Victor Heringer


Introdução

Tatiana Faia e Victor Gonçalves

George Steiner, prolongando o pensamento de Jorge Luis Borges, refere que a “opressão pode ser a mãe da metáfora”. E a metáfora não é somente um lance rizomático que translada o sentido de um ponto linguístico para outro (com subtis, mas importantes, alterações, claro), ela está no nascimento (mais do que na origem) de toda a escrita que vale a pena, mesmo da que tem um cariz mais científico. Ora, quisemos com este Caderno, exibindo uma certa linha de continuidade, pelo menos no espírito, com os três números anteriores, desafiar um conjunto heteróclito de autores a escreverem sobre modos de escrever, o seu ou de alter-egos, a buscarem e revelarem os pontos cegos onde aparecem, às vezes em milagre, os primeiros esboços de grafemas, numa irreprimível intensidade metafórica, porque no início estão as forças inventivas. O pedido foi formulado nestes termos: “Exm@ senhor@, permitimo-nos convidá-l@ para escrever um pequeno texto para a edição impressa do Caderno 4 da Enfermaria 6, com o título, orientador, de MODOS DE ESCREVER. Pretende-se que os autores, dentro do horizonte de sentido que elegerem (prosa, poesia, ensaio, literatura, filosofia, direito, dramaturgia, desenho...) pensem e revelem maneira(s) de escrever (porventura as suas): técnicas, locais, rituais, inspirações... Aquilo que permita vislumbrar partículas da escrita de sangue dos colaborares desse Caderno, sem com isso cairmos na coscuvilhice banal.”

E já que falamos na procura de uma certa perspectiva, numa das imagens incluídas em On Reading, um livro do fotógrafo húngaro André Kertész, pode ver-se um rapaz sentado a uma mesa austera, em tronco nu num dormitório. Filas de beliches alinham-se atrás dele e pela janela completamente aberta a que está encostada a mesa entra uma luz clara. A fotografia foi tirada em 1972 na Martinica. Há um livro aberto sobre a mesa, que é o único objecto para lá do mobiliário que se vê na imagem. Não há mais ninguém e o cuidado do fotógrafo em não perturbar o leitor ficou inscrito, acidentalmente ou não, no ângulo da distância a partir do qual vemos a imagem do rapaz. Isto causa um efeito, ao mesmo tempo, de distância e intimidade. 

Queremos pensar que esta perspectiva não é alheia aos textos que aqui se coligem. As contribuições que aqui se reúnem traçam um itinerário através de filmes, ruas que se perdem e a que se regressa, fotografias, livros lidos, obsessões, afirmações que podem ser reconduzidas a práticas pessoais ou circunstâncias biográficas. À possibilidade de resposta a essa hipotética pergunta, qual a origem da escrita?, contrapõe-se uma polifonia de soluções que jogam com a expectativa dos leitores. As respostas que recebemos não foram, de todo, as mais evidentes. Mas talvez que na exposição das diferentes oficinas que estão aqui em causa se desenhe algo um pouco mais perene do que a mera enumeração das idiossincracias de cada autor (como se verá, em muitos dos textos não é exactamente o autor a criatura mitológica para ser encontrada no centro): o assumir de uma determinada perspectiva ética. A nossa esperança é que essa perspectiva faça pelo leitor o mesmo que a distância inscrita nessa fotografia tirada há décadas por um fotógrafo húngaro em viagem, que no fundo não é assim tão distante do ofício de escrever: dar uma certa perspectiva, deixar espaço para o trabalho do leitor, ser um pouco misteriosa. Numa nota de rodapé a Steiner, metáfora é tudo o que, incluindo uma certa perspectiva, a transfigura. Enquanto editores deste caderno era sobretudo disso que estávamos à procura.