"Animais menores", de Otávio Campos, lido por Ismar Tirelli Neto

Animais menores

Você sonha com outro rapaz
Me masturbando no banco de trás
Do ônibus de rua na cidade vazia
Você sonha com outro rapaz
Que me puxa pela mão nos destroços
Da cidade pós-apocalíptica
Você me pergunta se eu consigo
Imaginar uma cidade pós-apocalíptica
E as máquinas como animais de metal
Que são necessárias para se cruzar a cidade
Como um ônibus de rua rodando à noite vazio
Você me chuparia no banco de trás
Ou você sonha com um outro rapaz que o faria
Porque você não se levanta para um cuspe
Ou qualquer resposta a uma dessas espécies
Que surgem entre os destroços e matam viadinhos
Quando não riem de viadinhos na melhor
Das opções ele nos olharia de longe e viria
Você sonha com outro rapaz
Me chupando no banco de trás
Porque você não consegue se levantar
Eu não me levantaria
Se você me chupasse no banco de trás
Da cidade pós-apocalíptica
Suja e metal
E eu apertasse sua cabeça contra a minha
E eu pensaria na sua cabeça descendo
E subindo como eu penso que são
Todas as coisas pós-apocalípticas
Você me chuparia até que explodisse
Você cuspiria, querido

in Otávio Campos, Ao jeito dos bichos caçados, Enfermaria 6, Dezembro de 2017

E recordamos que o lançamento do livro é hoje, no Bar Irreal em Lisboa, pelas 20 horas.


Para uma ética da leitura [i]

I- Lê de tal forma que queiras que todos leiam dessa maneira[ii]

 

Comecemos pela leitura nas ciências humanas (com exemplos filosóficos extrapoláveis). As interpretações de Nietzsche, ao contrário do que afirmaram, entre outros, Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jacques Derrida nas décadas de 60 e 70 do século XX, não são infinitas. Mesmo uma “obra aberta”[iii] como a dele reivindica leituras verosímeis, contra outras falsas (apresentá‑lo, à semelhança da irmã e.g., como germanófilo), denunciando as restantes por emergirem irreflectidamente de trabalhos hermenêuticos sem rasgo, encostados à moda da época. Pretende-se separar as leituras lunáticas das sensatas, as experimentais das canónicas, as académicas das iconoclastas, as instrumentais das desinteressadas, as inteligentes das anódinas... O intérprete não é soberano, intenção e efeitos do seu trabalho são orientados pelo conjunto delimitado (mas não fechado) de possibilidades de sentido da obra, horizontes de expectativa da época e práticas de interpretação conhecidas e usadas. Reconhecemos aqui um diagrama assímptota: há garde-fous[iv] contra leituras delirantes, mas desconhece-se o lugar exacto que demarca o desejável do indesejável; tanto mais que ela se desloca de acordo com a mudança dos horizontes de expectativa. E esta aporética limita seriamente o desenvolvimento de uma “hermenêutica do sentido” que em evidência cartesiana estabelecesse os códigos da leitura correcta, vilipendiando epistemologicamente (e até socialmente) as incorrectas. Queremos no entanto, socorrendo‑nos de Immanuel Kant[v], provisoriamente satisfeitos por chegar a um porto de racionalidade, avançar com a hipótese de uma ética da leitura. Testaremos a consistência de princípios a priori definirem uma “ética de leitura boa”.

Ela teria, contudo, duas premissas iniciais negativas: 1) ler bem não impõe uma fidelidade absoluta ao texto, onde o leitor encontrasse e coincidisse com as pegadas na neve do escritor. 2) Deve afastar-se, num certo antagonismo com o princípio anterior, o ‘jogo livre’ da linguagem no vazio, i.e., interpretações que sejam reescritas ex nihilo do texto original. Depois, como premissa positiva, haveria o imperativo do dever de ler bem. Como marca ética, mais do que metodológica ou epistemológica; o leitor (o seu ethos) desejaria, muito antes da vontade de descoberta (ou construção), esclarecimento e sistematização do texto, “ler bem”, os enunciados do mundo e das obras.

Arriscamos por isso, embora sem saltar no Etna, propor condições de possibilidade para uma “leitura boa” a partir do imperativo prático categórico kantiano, orientando-nos para uma metafísica da leitura. Seguindo Kant, o nosso imperativo obrigará à passagem do princípio subjectivo (“máxima”) ao objectivo (“lei universal”). Primeiramente, se em Kant se define como “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”[vi]; no nosso caso teríamos: lê apenas segundo a máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que se torne lei [de leitura] universal. Ou seja, desejar que todos quantos lêem, leiam da mesma maneira que nós. Não (leiam-me bem, por favor!) na metodologia ou tecnologia, mas no dever de querer ler bem. Em segundo lugar, na formulação que Kant usa para a Menschheitsformel, em vez de “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”[vii]; teríamos: lê de tal forma que uses sempre o texto que lês como um fim e nunca como um meio; i.e., nunca se deveria intencional e instrumentalmente desvirtuar os sentidos dos textos, atribuir‑lhes estrategicamente um significado que não lhes correspondesse, usá-los como arma de arremesso ou armadura de erudição.

Desta forma, libertar-nos-íamos no momento originário da leitura de alguns acidentes empíricos que tantas vezes a condicionam (ler a Odisseia ou a Fenomenologia do Espírito em tempos de crise seria o mesmo, por princípio, que lê-la em tempos de opulência ou de cólera). A “leitura boa” não resultaria deste ou daquele fim a atingir ou atingido, deste ou daquele interesse circunstancial, mas do “puro respeito” (reine Achtung) pela lei ética da leitura. Embora, peço novamente a vossa atenção: sem imposições policiais. Pensemos em normas que não normativizam, i.e., que actuam na singularidade da cada circunstância e se esgotam nesse cumprimento. Caberia aos leitores, momento a momento, dar existência à sua ética da “leitura boa”. A lei universal – virtualidade, mas não irrealidade, imersa na subjectividade de cada um[viii] – ofereceria delimitações às especificidades de cada leitura.

Porém, apesar desta ressalva, talvez devamos objectar – retomando muito do argumentário anti-kantiano –, 1) que é demasiado formalista; incapaz de orientar as leituras concretas, empíricas a partir dos seus imperativos ideais, metafísicos, a priori; 2) que substitui as imposições exteriores por uma espécie de auto-regulação ainda mais constringente. É, e.g., difícil usarmos uma ética da leitura derivada de Kant na recepção das obras polimorfas de Nietzsche, Pessoa ou Joyce; às quais cada leitor deve aceder livremente, fragmentando-se, lacerando-se cognitiva e emocionalmente para entrar nos seus diferentes, muitas vezes incomensuráveis, estilos e temas. Em resumo: talvez estejamos sempre reféns da contingência do texto e da nossa circunstância, macro e micro. Na melhor das hipóteses soberanistas cair‑se‑ia num circuito fechado de leituras auto‑referenciais (academismo acrítico), abstraído de todas as causas e efeitos práticos, cognitivos, psicológicos, sociais ou políticos desse acto. Esquecendo, e.g., o que Rousseau disse de Julie ou la Nouvelle Héloïse: “livro com conselhos práticos para maridos e mulheres”. Ou que Flaubert foi a tribunal porque viram em Madame Bovary a prova de que defendia o adultério. A recepção e utilização nazi de Nietzsche ou, no pós-guerra, o heroísmo da superação (Überwindung) apresentado como chave‑mestra para ser lido em paixão sagrada. Por isso, para Hillis Miller, a necessidade de constituir uma ética da leitura não deriva das condições iniciais, a priori, para uma “leitura boa”, mas de constatarmos que leituras erróneas têm efeitos funestos (Don Quixote sofria de irrealismo por ler tantos romances de cavalaria; muitos dos que compram Economia para Totós acreditam na bondade natural do Mercado). A sua posição pode ser sintetizada assim: todas as leituras produzem efeitos, deve portanto constituir-se uma ética da leitura para mitigar as consequências excêntricas.[ix] O problema, daí destacarmo-la tão pouco, está no desenvolvimento de uma ética que seja capaz de regular as tergiversações sem instituir poderosos mecanismos de censura. Assim, ou regressamos a Kant e aos imperativos a priori ou seguimos pela via de uma codificação legislativa cheia de interditos.

Temos então duas possibilidades: a primeira a priori, a segunda, subsidiária daquela, a posteriori. Problematizam bem a questão da recepção, permitem teorizar deontologias jornalistas... Mas ajustar-se-ão aos livros por quem espontaneamente nos enamoramos?

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