Friedrich Nietzsche: síndroma de Ícaro e obra aberta
/Comecemos por uma mise en abyme, tanto mais que se trata de pensar a recepção na sua máxima amplitude, isto é, colocarmo-nos também, desde já, como leitores, e portanto escrever sobre como é ler, lendo-nos. Assim, deixem-nos confessar que, depois de nos revisitarmos, o mais difícil no que se segue foi encontrar o tom justo; Nietzsche não se deixa apanhar facilmente, codificá-lo num estilo qualquer, filosófico ou outro, conduz quase sempre a amargos de boca. Um refluxo libertário sai constantemente, e intempestivamente, dos seus textos, impedindo que lhe façamos, na expressão de Gilles Deleuze, “filhos pelas costas”.[1] Daí a dificuldade em definir a pose reflexiva adequada às ideias nietzscheanas, fracassamos quando tentamos impor a nossa vontade, é melhor deixar-se encontrar pela sua poderosa racionalidade crítica, mas também pela força da sua irrisão e amor incondicional à vida selvagem, dionisíaca. Por outro lado, pensamos também nos destinatários mais sociológicos deste nosso ensaio (que, não o esqueçamos, quer dizer “tentativa”, propor linhas de sentido), quem nos irá ler e com que finalidades? Devemos escrever para um leitor médio, um guru das ciências sociais, um amante do tédio, alguém que nos conhece, um nietzscheano apaixonado ou um leitor compulsivo? Devemos considerar uma liberdade hermenêutica total, que na verdade é irreal, ou enquadrar o leitor para que coincida com a nossa racionalidade, estimulando, como queria Hans-Georg Gadamer, a fusão de horizontes? Prolongar cada ideia numa explicação que não alimente ambiguidades (se tal for possível) ou deixar margem para interpretações que podem deslocar-se bastante da nossa visão? Acreditar que a intenção do texto domina o processo de recepção ou conceder que tudo está nas mãos do leitor?
Bom, será melhor espreitar Nietzsche, e aceitar que um texto segue o seu próprio caminho, visto a sua ontologia crescer na trilogia autor-linguagem-recepção, enquadrada nos horizontes de expectativas do tempo e lugar.
I
Perto do colapso mental (Janeiro de 1889), mas não fazendo ainda parte das “cartas da loucura”, Nietzsche escreve ao amigo Heinrich Köselitz (compositor Peter Gast):
Muito curioso! Desde há quatro semanas compreendo os meus escritos, – mais ainda, aprecio-os. A sério, nunca soube qual era o seu alcance; à parte Zaratustra, mentiria se dissesse que me impressionaram. [quanto a Zaratustra] É a mãe com o filho: ela ama-o talvez, mas numa perfeita ignorância sobre o que o filho é. – Agora tenho absoluta convicção que tudo foi conseguido, desde o começo, – tudo é um e quer a unidade.[2]
Esta súbita iluminação parece propor a sua obra para uma auto-recepção heróica. Ao mesmo tempo – contra muito do que se disse sobre a máxima elevação estilística da fragmentação discursiva, grandeza da contradição e dispersão aforística –, inscreve agora a ideia da unidade na diversidade do que escreveu. Mas esta “unidade” não se opõe à pluralidade, Nietzsche escreveu demasiado e durante muito tempo sobre a multiplicidade de sentidos, a irrelevância da intentio auctoris, a impossibilidade de subsumir as interpretações em teses universais... para agora se entender o que avança, nas circunstâncias de uma troca epistolar, como simples união numa totalidade inteligível de todos os sentidos que teceu ao longo de trinta anos. Só citamos este excerto epistolar, enviado a alguém com quem manteve sempre uma relação ambígua, para recuperarmos um Nietzsche, perto do apagamento mental, feliz com a sua obra; depois de uma vida de sofrimento (por falta de saúde e de reconhecimento)[3]. E isto redobra de importância se soubermos que nele vida e obra, apesar do que disse em contrário, sempre se misturaram. Aliás, além do que refere no prefácio de Ecce Homo, em 1888 é muito claro ao afirmar que cada linha dos seus livros foi vivida, que eles são, por isso, um complemento de vida.[4] Recolhe-se uma nota mais intensa e precisa em Assim Falava Zaratustra I: “De tudo quanto está escrito, só gosto do que cada um escreveu com o seu sangue”[5].
Por outro lado, a incansável crítica aos valores dominantes (moral cristã, verdade metafísica e humanismo democrático de massas) e a vontade de superar o niilismo que ensombrava a cultura ocidental, sem separar vida e escrita, terá sido o principal factor que potenciou a doença que o silenciou aos 44 anos. Na verdade, o pensamento crítico reclama um agonismo que desloca o crítico, o Aufklärer, para fora da zona de segurança das crenças predominantes. E ou há, como em Immanuel Kant, por exemplo, a real protecção de uma crença mais elevada e aparentemente segura, filosoficamente sistematizada e religiosamente enquadrada, ou, como no caso de Nietzsche, a tentativa de substituição dos valores dominantes por uma radicalmente, mas relativamente vaga (tinha de ser vaga para não sugar a liberdade individual), nova axiologia, mina a estrutura vital do indivíduo.
Nietzsche não era um sobre-humano, mesmo resguardando-se no seu “pathos da distância”, ele continuava dentro da humanidade que, como escreve sintomaticamente no final de Para a Genealogia da Moral, prefere “querer o nada a não querer nada.” Isto é, Nietzsche, por mais iconoclasta que fosse, e foi-o, não escapou à sua condição de humano. Sem apoio para as suas crenças ou, em substituição, um sistema de postulados partilhados numa comunidade de espíritos livres, resvalou para o sem-sentido (de que os receptores franceses pós-modernos fizeram uma fileira filosófica: o tema da loucura em Michel Foucault, o sem-sentido como condição do sentido em Gilles Deleuze, a multiplicação, ad infinitum, de sentidos em Jacques Derrida...). Além disso, ele alimentou outra malignidade com a sua obsessão crítica: a da perversa identificação entre crítico e criticado. Como escreve no §146 de Para Além Bem e Mal: “Aquele que combate os monstros deve ter cuidado para ele próprio não se transformar também num monstro. Se olhas longamente para um abismo, o abismo olha também em ti.”[6] Viandante, nómada sem pátria, experimentando uma solidão necessária, vivendo no gelo e no deserto, escreve, em 1884, um poema de louvor aos espíritos livres, onde a páginas tantas refere: “Quem perdeu / Aquilo que perdeste nunca mais se fixa em parte nenhuma.”[7]
Neste assento trágico (a sua vitória – disposição crítica – compôs a sua derrota – solidão infeliz e colapso mental) deve ler-se a força dos princípios nietzscheanos, a coincidência ética entre o que defendeu na escrita e na vida. A sua marca é a de uma responsabilidade crítica e autocrítica (sem elas costuma insinuar-se o princípio de Pangloss). Lendo-o para lá do seu auto-contentamento retoricamente calculado, fica claro que as constantes Überwindung (superação) e Selbstüberwindung (auto-superação), combustível insubstituível dos Iluministas críticos, fragilizaram os alicerces da sua saúde vital. Devemos, pois, receber Nietzsche, talvez contra a sua vontade, como um sacrificado, à maneira, mutatis mutandis, de Sócrates. Se este se sacrificou pela Cidade, aquele fê-lo pela lucidez (que, como sabemos, “é a ferida mais próxima do sol”[8], onde Ícaro queimou as asas).
II
No respeitante à leitura de Nietzsche, às condições de possibilidade da sua recepção, pensamos que a fraca conceptualização e sistematização filosóficas convidam a abrir o leque de interpretações aceitáveis e a produzir novos conceitos e filosofemas. Algo que, todavia, não pode ser facilmente realizado dentro das linhas mais tradicionais da história da filosofia, mesmo se Nietzsche legitimou uma certa torção aos discursos filosóficos mais ortodoxos. Com todos os cuidados que a diferença entre autores e épocas exige, talvez se possa aplicar a Nietzsche aquilo que ele descreve como sendo a apropriação de Sócrates por Platão: este, “o mais ousado dos intérpretes” (der verwegenste aller Interpreten), disseminou Sócrates quase até ao infinito, diz no §190 de Para além Bem e Mal. Agora é a nossa vez de aumentar as variações de Nietzsche, cuidando, todavia, de não o banalizar, fazer uma lengalenga do seu pensamento (Platão tornou, escreve ainda no mesmo § Nietzsche, Sócrates mais nobre, a recepção deve elevar). Por outro lado, de um ponto de vista quase metodológico, é importante reconhecer que a hermenêutica nietzscheana trabalha mais sobre o Devir do que sobre o Ser, permitindo-se, pois, criar sentidos a partir da sua obra, em vez de os procurar já embalados e prontos a usar no que escreveu; a obra de Nietzsche é uma “caixa de ferramentas” filosófica indefinida. Como seria de esperar, há bastantes reticências sobre esta hermenêutica aberta, visto que, dizem os puristas da compreensão, se Nietzsche critica a ideia de Verdade, pretende, ao mesmo tempo, impor a sua veracidade (verdade pessoal). Mas mais uma vez, lendo-o com atenção, mitigando as contradições através da genealogia do seu pensamento, fica claro que a sua verdade não deseja generalizar-se. Leia-se o “Prefácio” de Para a Genealogia da Moral, §4, onde diz que só tentou substituir “o improvável por algo mais provável e, nalguns casos, um erro por outro erro.” Prolongando este exercício de similitudes, retirando de Nietzsche o que queremos aplicar a Nietzsche, na Para a Genealogia da Moral II, §7, há um apontamento, repetindo muitos outros, sobre a irrelevância do determinismo (ilusório, também): para ele, os deuses gregos fartar-se-iam rapidamente de um mundo inteiramente determinado e, em consequência, adivinhável. Por isso mesmo, os bons filósofos, amigos dos deuses, não especularam sobre um tal mundo. Isso demonstra porque, continua, toda a Antiguidade venerou o espectador. Quem recebe não deve, pois, ser tratado como simples receptáculo; no teatro como na filosofia, na música como na literatura, os espectadores refazem partes desses mundos indeterminados, dessas obras e textos incompletos, desses conceitos provisórios.
Recusa-se, assim, qualquer hermenêutica do sentido (baseada na crença de que há sentidos fixos que é possível, pelo menos em parte, recuperar em toda a sua verdade), substituída por uma que enobrece, sem atraiçoar, os originais: assaltando-os, rasurando-os, plagiando-os, refazendo-os, complementando-os, prolongando-os... uma hermenêutica plurissignificativa que reconhece a multiplicidade inesgotável de significados no que lê, ouve e vê, e faz uma interpretação activa, procurando enriquecer esses mesmos originais.
Acreditamos que uma boa recepção deve afastar‑se de funestas codificações, de metodologias que separam a priori leituras correctas de incorrectas, recusando a experimentação e a suplementação. Deve seguir-se a lógica da vida, obedecer ao guia que sugere uma permanente disposição para a invenção, uma arte da reescrita abrindo o originário a outras significações, impossíveis de prever, mas já inscritas potencialmente nas condições do seu nascimento. Uma estética da recepção onde sentidos vivos acolham a herança dos textos e um gesto artístico de reescrita os suplemente, uma dança da intertextualidade que em frenesim afaste os pés‑de‑chumbo, irremediavelmente sérios, visitantes sombrios da cena da vida hermenêutica. Tudo porque cada obra é uma “obra aberta”.
[1] Mesmo se um optimismo retórico o compromete a pensar que no futuro será o slogan de uma revolução sem precedentes (e, desta forma, acolhido pelas massas que, como sabemos, engravidam tudo de vulgaridade): “Conheço a minha sorte. Um dia, o meu nome será associado à recordação de algo espantoso – a uma crise como nunca houve no mundo, à mais profunda colisão‑de‑consciências, a um veredicto inexoravelmente tomado contra tudo o que até então fora crido, reclamado, santificado. Eu não sou um ser humano, sou dinamite.” (Ecce Homo, “Por que sou um destino”, §1).
[2] 22 de Dezembro de 1888, Sämtliche Briefe, kritische Studienausgabe, Munich-Berlin-New York: dtv-Walter de Gruyter, 1986, vol. 8, 545: “Sehr curios! Ich verstehe seit 4 Wochen meine eignen Schriften, – mehr noch, ich schätze sie. Allen Ernstes, ich habe nie gewußt, was sie bedeuten; ich würde lügen, wenn ich sagen wollte, den Zarathustra ausgenommen, daß sie mir imponirt hätten. Es ist die Mutter mit ihrem Kinde: sie liebt es vielleicht, aber in vollkommner Stupidität darüber, was das Kind ist. – Jetzt habe ich die absolute Überzeugung, daß Alles wohlgerathen ist, von Anfang an, – Alles Eins ist und Eins will.”
Nota: as citações em alemão seguem a grafia original.
[3] Assim Falava Zaratustra, a opus magnum de que fala na carta, vendeu, na época, entre 10 e 20 exemplares.
[4] “Das Zeugniß ist sogar in meinen Büchern geschrieben: die, Seile für Zeile, erlebte Bücher aus einem Willen zum Leben sind und damit, als Schöpfung, eine wirkliche Zuthat, ein Mehr jenes Lebens selber darstellen.” (Nachgelassene Fragmente (NF) 23[14]; kritische Studienausgabe, ed. Giorgio Colli and Mazzino Montinari, Berlin/New York: dtv-Walter de Gruyter, 1967-77 (KSA). Vol. 13, p. 613,14)
[5] “Vom Lesen und Schreiben”, KSA 4, 48: “Von allem Geschriebenen liebe ich nur Das, was Einer mit seinem Blute schreibt.”
Ainda assim, não se trata de qualquer tipo de sangue, no §53 do Anticristo diz que desdenha a escrita de sangue dos mártires religiosos, algo com um significado parecido estava já em Para a Genealogia da Moral I, §15, lamentando-se de que substituímos os atletas gregos pelos mártires, que agora temos o sangue de Cristo. Isto serve também para recordar que se o acto de afirmar é em si mesmo nobre, nem tudo o que se afirma o é. Este quase paradoxo acompanha Nietzsche ao longo de toda a sua obra e retoma, noutros termos, um velho problema da filosofia idealista platónica.
[6] KSA 5, 98: “Wer mit Ungeheuern kämpft, mag zusehn, dass er nicht dabei zum Ungeheuer wird. Und wenn du lange in einen Abgrund blickst, blickt der Abgrund auch in dich hinein.”
[7] Guilinao Campioni dá-nos conta da interpretação que Gottfried Benn faz deste sem-lugar: “talvez o reconhecimento de que é impossível qualquer comunidade. E talvez também, especialmente, o reconhecimento de que os povos não têm nenhuma necessidade dos seus grande homens. E portanto também dele próprio. Têm muito mais necessidade dos seus homens medíocres. Os grandes são apenas ridículos.” (“Espírito livre e niilismo: Acerca de uma composição poética de Nietzsche”, in Sujeito, Décadence e Arte. Nietzsche e a Modernidade, Lisboa: Relógio D’Agua, 2014, p. 359)
[8] René Char, Fureur et mystère.