Friedrich Nietzsche: síndroma de Ícaro e obra aberta

Comecemos por uma mise en abyme, tanto mais que se trata de pensar a recepção na sua máxima amplitude, isto é, colocarmo-nos também, desde já, como leitores, e portanto escrever sobre como é ler, lendo-nos. Assim, deixem-nos confessar que, depois de nos revisitarmos, o mais difícil no que se segue foi encontrar o tom justo; Nietzsche não se deixa apanhar facilmente, codificá-lo num estilo qualquer, filosófico ou outro, conduz quase sempre a amargos de boca. Um refluxo libertário sai constantemente, e intempestivamente, dos seus textos, impedindo que lhe façamos, na expressão de Gilles Deleuze, “filhos pelas costas”.[1] Daí a dificuldade em definir a pose reflexiva adequada às ideias nietzscheanas, fracassamos quando tentamos impor a nossa vontade, é melhor deixar-se encontrar pela sua poderosa racionalidade crítica, mas também pela força da sua irrisão e amor incondicional à vida selvagem, dionisíaca. Por outro lado, pensamos também nos destinatários mais sociológicos deste nosso ensaio (que, não o esqueçamos, quer dizer “tentativa”, propor linhas de sentido), quem nos irá ler e com que finalidades? Devemos escrever para um leitor médio, um guru das ciências sociais, um amante do tédio, alguém que nos conhece, um nietzscheano apaixonado ou um leitor compulsivo? Devemos considerar uma liberdade hermenêutica total, que na verdade é irreal, ou enquadrar o leitor para que coincida com a nossa racionalidade, estimulando, como queria Hans-Georg Gadamer, a fusão de horizontes? Prolongar cada ideia numa explicação que não alimente ambiguidades (se tal for possível) ou deixar margem para interpretações que podem deslocar-se bastante da nossa visão? Acreditar que a intenção do texto domina o processo de recepção ou conceder que tudo está nas mãos do leitor?

Bom, será melhor espreitar Nietzsche, e aceitar que um texto segue o seu próprio caminho, visto a sua ontologia crescer na trilogia autor-linguagem-recepção, enquadrada nos horizontes de expectativas do tempo e lugar.

 

I

 

Perto do colapso mental (Janeiro de 1889), mas não fazendo ainda parte das “cartas da loucura”, Nietzsche escreve ao amigo Heinrich Köselitz (compositor Peter Gast):

 

Muito curioso! Desde há quatro semanas compreendo os meus escritos, – mais ainda, aprecio-os. A sério, nunca soube qual era o seu alcance; à parte Zaratustra, mentiria se dissesse que me impressionaram. [quanto a Zaratustra] É a mãe com o filho: ela ama-o talvez, mas numa perfeita ignorância sobre o que o filho é. – Agora tenho absoluta convicção que tudo foi conseguido, desde o começo, – tudo é um e quer a unidade.[2]

 

Esta súbita iluminação parece propor a sua obra para uma auto-recepção heróica. Ao mesmo tempo – contra muito do que se disse sobre a máxima elevação estilística da fragmentação discursiva, grandeza da contradição e dispersão aforística –, inscreve agora a ideia da unidade na diversidade do que escreveu. Mas esta “unidade” não se opõe à pluralidade, Nietzsche escreveu demasiado e durante muito tempo sobre a multiplicidade de sentidos, a irrelevância da intentio auctoris, a impossibilidade de subsumir as interpretações em teses universais... para agora se entender o que avança, nas circunstâncias de uma troca epistolar, como simples união numa totalidade inteligível de todos os sentidos que teceu ao longo de trinta anos. Só citamos este excerto epistolar, enviado a alguém com quem manteve sempre uma relação ambígua, para recuperarmos um Nietzsche, perto do apagamento mental, feliz com a sua obra; depois de uma vida de sofrimento (por falta de saúde e de reconhecimento)[3]. E isto redobra de importância se soubermos que nele vida e obra, apesar do que disse em contrário, sempre se misturaram. Aliás, além do que refere no prefácio de Ecce Homo, em 1888 é muito claro ao afirmar que cada linha dos seus livros foi vivida, que eles são, por isso, um complemento de vida.[4] Recolhe-se uma nota mais intensa e precisa em Assim Falava Zaratustra I: “De tudo quanto está escrito, só gosto do que cada um escreveu com o seu sangue”[5].

Por outro lado, a incansável crítica aos valores dominantes (moral cristã, verdade metafísica e humanismo democrático de massas) e a vontade de superar o niilismo que ensombrava a cultura ocidental, sem separar vida e escrita, terá sido o principal factor que potenciou a doença que o silenciou aos 44 anos. Na verdade, o pensamento crítico reclama um agonismo que desloca o crítico, o Aufklärer, para fora da zona de segurança das crenças predominantes. E ou há, como em Immanuel Kant, por exemplo, a real protecção de uma crença mais elevada e aparentemente segura, filosoficamente sistematizada e religiosamente enquadrada, ou, como no caso de Nietzsche, a tentativa de substituição dos valores dominantes por uma radicalmente, mas relativamente vaga (tinha de ser vaga para não sugar a liberdade individual), nova axiologia, mina a estrutura vital do indivíduo.

Nietzsche não era um sobre-humano, mesmo resguardando-se no seu “pathos da distância”, ele continuava dentro da humanidade que, como escreve sintomaticamente no final de Para a Genealogia da Moral, prefere “querer o nada a não querer nada.” Isto é, Nietzsche, por mais iconoclasta que fosse, e foi-o, não escapou à sua condição de humano. Sem apoio para as suas crenças ou, em substituição, um sistema de postulados partilhados numa comunidade de espíritos livres, resvalou para o sem-sentido (de que os receptores franceses pós-modernos fizeram uma fileira filosófica: o tema da loucura em Michel Foucault, o sem-sentido como condição do sentido em Gilles Deleuze, a multiplicação, ad infinitum, de sentidos em Jacques Derrida...). Além disso, ele alimentou outra malignidade com a sua obsessão crítica: a da perversa identificação entre crítico e criticado. Como escreve no §146 de Para Além Bem e Mal: “Aquele que combate os monstros deve ter cuidado para ele próprio não se transformar também num monstro. Se olhas longamente para um abismo, o abismo olha também em ti.”[6] Viandante, nómada sem pátria, experimentando uma solidão necessária, vivendo no gelo e no deserto, escreve, em 1884, um poema de louvor aos espíritos livres, onde a páginas tantas refere: “Quem perdeu / Aquilo que perdeste nunca mais se fixa em parte nenhuma.”[7]

Neste assento trágico (a sua vitória – disposição crítica – compôs a sua derrota – solidão infeliz e colapso mental) deve ler-se a força dos princípios nietzscheanos, a coincidência ética entre o que defendeu na escrita e na vida. A sua marca é a de uma responsabilidade crítica e autocrítica (sem elas costuma insinuar-se o princípio de Pangloss). Lendo-o para lá do seu auto-contentamento retoricamente calculado, fica claro que as constantes Überwindung (superação) e Selbstüberwindung (auto-superação), combustível insubstituível dos Iluministas críticos, fragilizaram os alicerces da sua saúde vital. Devemos, pois, receber Nietzsche, talvez contra a sua vontade, como um sacrificado, à maneira, mutatis mutandis, de Sócrates. Se este se sacrificou pela Cidade, aquele fê-lo pela lucidez (que, como sabemos, “é a ferida mais próxima do sol”[8], onde Ícaro queimou as asas).

 

II

 

No respeitante à leitura de Nietzsche, às condições de possibilidade da sua recepção, pensamos que a fraca conceptualização e sistematização filosóficas convidam a abrir o leque de interpretações aceitáveis e a produzir novos conceitos e filosofemas. Algo que, todavia, não pode ser facilmente realizado dentro das linhas mais tradicionais da história da filosofia, mesmo se Nietzsche legitimou uma certa torção aos discursos filosóficos mais ortodoxos. Com todos os cuidados que a diferença entre autores e épocas exige, talvez se possa aplicar a Nietzsche aquilo que ele descreve como sendo a apropriação de Sócrates por Platão: este, “o mais ousado dos intérpretes” (der verwegenste aller Interpreten), disseminou Sócrates quase até ao infinito, diz no §190 de Para além Bem e Mal. Agora é a nossa vez de aumentar as variações de Nietzsche, cuidando, todavia, de não o banalizar, fazer uma lengalenga do seu pensamento (Platão tornou, escreve ainda no mesmo § Nietzsche, Sócrates mais nobre, a recepção deve elevar). Por outro lado, de um ponto de vista quase metodológico, é importante reconhecer que a hermenêutica nietzscheana trabalha mais sobre o Devir do que sobre o Ser, permitindo-se, pois, criar sentidos a partir da sua obra, em vez de os procurar já embalados e prontos a usar no que escreveu; a obra de Nietzsche é uma “caixa de ferramentas” filosófica indefinida. Como seria de esperar, há bastantes reticências sobre esta hermenêutica aberta, visto que, dizem os puristas da compreensão, se Nietzsche critica a ideia de Verdade, pretende, ao mesmo tempo, impor a sua veracidade (verdade pessoal). Mas mais uma vez, lendo-o com atenção, mitigando as contradições através da genealogia do seu pensamento, fica claro que a sua verdade não deseja generalizar-se. Leia-se o “Prefácio” de Para a Genealogia da Moral, §4, onde diz que só tentou substituir “o improvável por algo mais provável e, nalguns casos, um erro por outro erro.” Prolongando este exercício de similitudes, retirando de Nietzsche o que queremos aplicar a Nietzsche, na Para a Genealogia da Moral II, §7, há um apontamento, repetindo muitos outros, sobre a irrelevância do determinismo (ilusório, também): para ele, os deuses gregos fartar-se-iam rapidamente de um mundo inteiramente determinado e, em consequência, adivinhável. Por isso mesmo, os bons filósofos, amigos dos deuses, não especularam sobre um tal mundo. Isso demonstra porque, continua, toda a Antiguidade venerou o espectador. Quem recebe não deve, pois, ser tratado como simples receptáculo; no teatro como na filosofia, na música como na literatura, os espectadores refazem partes desses mundos indeterminados, dessas obras e textos incompletos, desses conceitos provisórios.

Recusa-se, assim, qualquer hermenêutica do sentido (baseada na crença de que há sentidos fixos que é possível, pelo menos em parte, recuperar em toda a sua verdade), substituída por uma que enobrece, sem atraiçoar, os originais: assaltando-os, rasurando-os, plagiando-os, refazendo-os, complementando-os, prolongando-os... uma hermenêutica plurissignificativa que reconhece a multiplicidade inesgotável de significados no que lê, ouve e vê, e faz uma interpretação activa, procurando enriquecer esses mesmos originais.

Acreditamos que uma boa recepção deve afastar‑se de funestas codificações, de metodologias que separam a priori leituras correctas de incorrectas, recusando a experimentação e a suplementação. Deve seguir-se a lógica da vida, obedecer ao guia que sugere uma permanente disposição para a invenção, uma arte da reescrita abrindo o originário a outras significações, impossíveis de prever, mas já inscritas potencialmente nas condições do seu nascimento. Uma estética da recepção onde sentidos vivos acolham a herança dos textos e um gesto artístico de reescrita os suplemente, uma dança da intertextualidade que em frenesim afaste os pés‑de‑chumbo, irremediavelmente sérios, visitantes sombrios da cena da vida hermenêutica. Tudo porque cada obra é uma “obra aberta”.

 

[1] Mesmo se um optimismo retórico o compromete a pensar que no futuro será o slogan de uma revolução sem precedentes (e, desta forma, acolhido pelas massas que, como sabemos, engravidam tudo de vulgaridade): “Conheço a minha sorte. Um dia, o meu nome será associado à recordação de algo espantoso – a uma crise como nunca houve no mundo, à mais profunda colisão‑de‑consciências, a um veredicto inexoravelmente tomado contra tudo o que até então fora crido, reclamado, santificado. Eu não sou um ser humano, sou dinamite.” (Ecce Homo, “Por que sou um destino”, §1).

[2] 22 de Dezembro de 1888, Sämtliche Briefe, kritische Studienausgabe, Munich-Berlin-New York: dtv-Walter de Gruyter, 1986, vol. 8, 545: “Sehr curios! Ich verstehe seit 4 Wochen meine eignen Schriften, – mehr noch, ich schätze sie. Allen Ernstes, ich habe nie gewußt, was sie bedeuten; ich würde lügen, wenn ich sagen wollte, den Zarathustra ausgenommen, daß sie mir imponirt hätten. Es ist die Mutter mit ihrem Kinde: sie liebt es vielleicht, aber in vollkommner Stupidität darüber, was das Kind ist. – Jetzt habe ich die absolute Überzeugung, daß Alles wohlgerathen ist, von Anfang an, – Alles Eins ist und Eins will.”

Nota: as citações em alemão seguem a grafia original.

[3] Assim Falava Zaratustra, a opus magnum de que fala na carta, vendeu, na época, entre 10 e 20 exemplares.

[4] “Das Zeugniß ist sogar in meinen Büchern geschrieben: die, Seile für Zeile, erlebte Bücher aus einem Willen zum Leben sind und damit, als Schöpfung, eine wirkliche Zuthat, ein Mehr jenes Lebens selber darstellen.” (Nachgelassene Fragmente (NF) 23[14]; kritische Studienausgabe, ed. Giorgio Colli and Mazzino Montinari, Berlin/New York: dtv-Walter de Gruyter, 1967-77 (KSA). Vol. 13, p. 613,14)

[5] “Vom Lesen und Schreiben”, KSA 4, 48: “Von allem Geschriebenen liebe ich nur Das, was Einer mit seinem Blute schreibt.”

Ainda assim, não se trata de qualquer tipo de sangue, no §53 do Anticristo diz que desdenha a escrita de sangue dos mártires religiosos, algo com um significado parecido estava já em Para a Genealogia da Moral I, §15, lamentando-se de que substituímos os atletas gregos pelos mártires, que agora temos o sangue de Cristo. Isto serve também para recordar que se o acto de afirmar é em si mesmo nobre, nem tudo o que se afirma o é. Este quase paradoxo acompanha Nietzsche ao longo de toda a sua obra e retoma, noutros termos, um velho problema da filosofia idealista platónica.

[6] KSA 5, 98: “Wer mit Ungeheuern kämpft, mag zusehn, dass er nicht dabei zum Ungeheuer wird. Und wenn du lange in einen Abgrund blickst, blickt der Abgrund auch in dich hinein.”

[7] Guilinao Campioni dá-nos conta da interpretação que Gottfried Benn faz deste sem-lugar: “talvez o reconhecimento de que é impossível qualquer comunidade. E talvez também, especialmente, o reconhecimento de que os povos não têm nenhuma necessidade dos seus grande homens. E portanto também dele próprio. Têm muito mais necessidade dos seus homens medíocres. Os grandes são apenas ridículos.” (“Espírito livre e niilismo: Acerca de uma composição poética de Nietzsche”, in Sujeito, Décadence e Arte. Nietzsche e a Modernidade, Lisboa: Relógio D’Agua, 2014, p. 359)

[8] René Char, Fureur et mystère.

Da Tradução do Übermensch de Friedrich Nietzsche

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I

Numa conferência de 1813 sobre a tradução, lida na Real Academia de Berlim a 24 de Julho, (Sobre os Diferentes Métodos de Traduzir), Friedrich Schleiermacher notou que se por um lado "O indivíduo não pode pensar com completa determinação aquilo que estiver fora das fronteiras da sua língua. […] Porém, por outro lado, cada indivíduo que pensa livremente, com autonomia espiritual, está por seu turno a formar a língua.” Portanto, o sentido surge da língua a partir da qual vemos o mundo, para parafrasear livremente Fernando Pessoa, mas ela é o produto dos seus criadores, que assim fazem emergir novos sentidos (mais uma variação do círculo hermenêutico).

Vem isto a propósito da dificuldade em traduzir um termo importante de Nietzsche, presente sobretudo em Assim Falava (ou Falou) Zaratustra: der Übermensch. Mais abaixo demonstrarei por que opto por “sobre-homem”, em vez do tradicional “super-homem”, por enquanto continuo, num escurso que pretende enquadrar o problema, com os labirintos da tradução, acompanhado pela leitura de Dizer Quase a Mesma Coisa, de Umberto Eco. Alexander von Humboldt e Friedrich Schleiermacher foram, no início do século XIX, dos primeiros a afirmar que as traduções podem enriquecer a linguagem de chegada, ao nível do sentido e da expressividade. Para que isso aconteça é preciso dominar a língua de partida e estar acima das potencialidades medianas da língua de chegada, e por vezes sacrificar a transposição literal dos signos para elevar o estilo da língua de tradução. Mas já em 1420, Leonardo Bruni (De interpretatione recta) escrevia que o tradutor “deve fiar-se também no seu ouvido para não estragar o que num texto é exprimido com elegância e sentido de ritmo.” Ou seja, para preservar o nível do ritmo, o tradutor pode dispensar-se de seguir à letra o original.

Esta legitimação do “desvio”, coincide com o argumento etimológico de Umberto Eco: o termo latino “translatio” surge inicialmente com o significado de “transporte”, da passagem de dinheiro de um banco para outro, mas também de enxerto botânico, ou desenvolvimento de um horizonte metafórico. Esta é a razão por que falha o Google Translate, ou outra ferramenta digital de tradução automática. A interpretação por transcrição ou substituição automática, como no alfabeto morse, não funciona. A ausência de decisões interpretativas, sem qualquer recurso a um contexto ou circunstância de enunciação resulta nas situações hilariantes que todos conhecemos. Compreende-se, pois, que Willard Quine, no capítulo “Meaning and translation”, de Word and Object (1960), refira que é difícil estabelecer o significado de uma palavra sem se entender o contexto cultural onde ela se insere. Por exemplo, se um indígena pronunciar “gavagai!” apontando para um coelho que passa à nossa frente, o que quererá ele dizer: o nome daquele coelho, dos coelhos em geral, da erva que se movimentou com a sua passagem ou designar o espaço de tempo da sua passagem? É incontornável, cada língua exprime uma determinada visão do mundo.

Assim, a tradução deve ser sempre acompanhada de interpretação (excepto em trabalhos expresso orientados para o “mercado”), e isso exige tanto uma atenção cuidada ao contexto cultural (lato sensu) onde nasceu a obra, como às palavras que a compõem. Neste sentido, ainda segundo Eco, “uma boa tradução é sempre uma contribuição crítica para a compreensão da obra traduzida. Ela orienta sempre para um certo tipo de leitura da obra”, levando a ver o original sob outras perspectivas. É por isso que, para os autores que convoquei, todo o acto de tradução é desde logo, e ipso facto, interpretação. Hans-Georg Gadamer (1960) repete-o, sublinhando que as traduções são o resultado de interpretações, feitas pelos tradutores na passagem das palavras originais às traduzidas. Esta ideia – a de que é preciso previamente interpretar um texto para o poder traduzir bem– assenta na impossível equivalência linear entre signos de línguas diferentes, embora se deva coincidir na dimensão pragmática, isto é, no sentido que produzem. De forma a que ler a mesma obra em línguas diferentes dê a pensar coisas muito semelhantes. Fala-se então de igualdade de valor de troca. O caso exemplar está em traduzir Homero em prosa, visto que o género épico era na época de Homero o que a prosa narrativa é nos nossos dias.

Para que tudo isto aconteça, e aconteça bem, Umberto Eco – que acompanhou a tradução em várias línguas de muitos dos seus livros, é bom dizê-lo – recorre frequentemente à ideia de negociação. Negociar o significado que a tradução deve exprimir, até porque é isso que fazemos no uso quotidiano da língua. Neste sentido, o processo de tradução prolonga o processo dialógico do dia-a-dia.

II

        

Na sequência do que acabei de dizer, considero essencial que as traduções de Friedrich Nietzsche estejam envoltas num conhecimento profundo do seu pensamento (multifuncional e vivo), do contexto histórico de onde emerge (prolongando-o e criticando-o) e dos comentadores mais relevantes (que não apenas explicam, mas acrescentam sentidos à sua obra).

No Preâmbulo a Assim Falava Zaratustra (ZA), Friedrich Nietzsche define o sentido principal do termo Übermensch: “Der Übermensch ist der Sinn der Erde. Euer Wille sage: der Übermensch sei der Sinn der Erde!”. Ele torna-se o sentido da Terra (arrisco a maiúscula), o sentido do sentido, visto que nada há para além da Terra, sabendo-se que Deus morreu (outra das ideias fundamentais de ZA). Por isso, ZA será o livro do Übermensch (e do conceito de Eterno Retorno, porque é preciso um novo tempo, cósmico e ético, para esse outro homem), e a opção de tradução ganha uma relevância que não teria noutra circunstância. Vejamos, então, a justificação para a opção de “sobre-homem”.

O “sobre-homem”, ao contrário do Superman, não é uma nova estrutura sobre-pulsional do humano, nem um messianismo hipermoral, é um ser da distância, erigindo possibilidades de vida mais singulares. Daí apresentar-se melhor na figura da “criança” do que na do “leão” de “Von den drei Verwandlungen” (ZA I). O sobre-homem é muito mais um criador do que um destruidor (embora seja através de uma destruição inicial que se instaura o prólogo da liberdade), só a criança, diz Nietzsche, consegue criar valores, porque a sua vontade afirmativa separou-se do que era, podendo agora ser inocência e esquecimento. Ainda que quase no final do cap. “Von der Selbst-Ueberwindung” (ZA II) refira criar dentro do bem e mal implica primeiramente aniquilar valores.[1] Mathieu Kessler distingue-o do superman porque em vez de um poder excepcional, o Übermensch é o homem a quem “falta qualquer coisa”.[2] É esta falta, embora pensada noutros termos, que destaca Jean Granier ao dizer que o prefixo “über” indica que o Übermensch tem o seu fundamento na Selbstüberwindung (auto-superação).

Daí os problemas de tradução que se levantam. Na opção comum em português europeu, Übermensch (Übermenschen, no dativo) é normalmente traduzido por “super-homem” (Obras Escolhidas para a Relógio de D’Água) ou, às vezes, sem um critério suficientemente sólido, por “sobre-humano”[3]. Na minha perspectiva, isto inviabiliza uma adequação mais precisa entre os sentidos nietzscheanos e os da pragmática comum na língua portuguesa. É verdade que quem lê e estuda frequentemente Nietzsche faz um ajustamento ao deslocar o “super-homem” do significado mais literal para sentidos próximos dos do autor, recusando sobretudo as propostas hollywoodescas ou os altares fascistas de herói energizado. O próprio Nietzsche, percebendo os potenciais equívocos do termo, faz em Ecce Homo, “Warum ich so gute Bücher schreibe” §1, uma acusação pedagógica aos leitores, presentes e futuros, de não compreenderem o significado da palavra “Übermensch” na boca de Zaratustra, de a ligarem às teorias darwinistas, aos “cultos de heróis” (Heroen-Cultus) super-humanos.[4] Ainda assim, julgo que se justifica traduzir o termo alemão/nietzscheano por “sobre-homem”. Na condição, todavia, de o “sobre” não denotar simplesmente a elevação quantitativa dentro de uma hierarquia. Com ele quero, à falta de melhor (testei “outro-homem”, mas ficaríamos demasiado distantes da hermenêutica habitual), dar conta do prefixo “über” como movimento para lá da antropologia humanista, mudança que exige outra escala de valores. Pretendo sobretudo resistir à possibilidade de se interpretar a partir da polarização Übermensch/Untermensch, o Übermensch é principalmente o resultado de uma Überwindung (superação, sem o negativo hegeliano), por vezes tão extrema que, como refere Pierre Boudot, “Em Nietzsche, o homem vai tão longe no seu próprio coração para descobrir o que deve ser superado que não estamos certos de o ver reaparecer.”[5] Por outro lado, procuro também imprimir-lhe a dimensão do porvir (combatendo muitas das apropriações mais politizadas), ele há-de constituir-se, talvez assimptoticamente, pela auto-superação do homem, é assim que leio o que diz em ZA II, “Von der Priestern”: “Ainda nunca houve um sobre-homem”.[6] É por isso que se deve privilegiar o sentido dinâmico da Selbstüberwindung. Müller-Lauter tem razão quando defende que o sobre-homem não quer o poder-em-si, como não tem um único objectivo, uma linha definida de desenvolvimento, ele é um caleidoscópio de vontades de sobre-abundâncias.[7]

Não se pense, contudo, num neologismo forjado especialmente para a sua “doutrina” do novo homem. Foi, pelo menos, usado por Novalis, Heinrich Heine e Goethe. Nietzsche recupera-o no prólogo de ZA, porque o homem é algo que “deve” (soll e não muss) ser superado, daí a importância do ensino de Zaratustra.[8] No Inverno de 1882-83 percebeu o poder desta ideia para a sua axiologia, um novo tempo (Eterno Retorno) e um novo homem (sobre-homem) para valorizações fiéis à Terra, uma imanência soberana.[9] O sobre-homem será capaz de dizer sim à vida na sua eterna repetição. Mas antes de ZA já Nietzsche usava o adjectivo “übermenschlich[10] e outras designações também próximas (“espírito livre”, “ouvinte estético”, “homem supra histórico”...), mostrando como desde muito cedo quis desviar-se do humanismo do seu tempo, compor um homem mais livre, mais hedonista, mais lúcido... Como refere Arthur Danto, sem qualquer instinto de hétero-domínio, não um senhor de escravos, mas um soberano afortunado.[11] Também para Patrick Wotling, os Übermenschen não são mestres, mas deuses epicuristas pouco preocupados com os outros, animados pelo “pathos da distância”.[12]

É a partir disto, desta linha hermenêutica, que justifico a opção de “sobre-homem” para traduzir o der Übermensch nietzscheano, tradução de sentido mais do que tradução à letra, única forma de nos aproximarmos da intenção do autor.  

[1] “Und wer ein Schöpfer sein muss im Guten und Bösen: wahrlich, der muss ein Vernichter erst sein und Werthe zerbrechen.”. (KSA 4, 149).

[2] Cf. “Le Nihilisme et la nostalgie de l’être”, in Jean-François Mattéi (dir.), Nietzsche et le temps des nihilismes, Paris : P.U.F., 2005, p. 47-48.

[3] Esta última opção está perigosamente perto da de “sobre-humanidade”, que me parece dever ser evitada. Como refere Pierre Klossowski, a humanidade não interessa em nada a Nietzsche, ele apenas se preocupa com os casos singulares. (Cf. Nietzsche et le cercle vicieux, Paris: Mercure de France. 1969, p. 223; de Nietzsche, e.g., os Fragmentos Póstumos de 1880, 6[70], – não há um fim da humanidade, cada homem deve colocar a sua própria finalidade –; 1881, 11[222], – recusa a ideia de uma humanidade unitária – e de 1888, 15[8], – escreve que a humanidade não avança porque muito simplesmente não existe; mas sobretudo o final do “Vorwort” de Anticristo (ou Anticristão) onde escreve que é necessário ser superior à humanidade, pela elevação e pelo desprezo.

[4] Logo no prefácio desse livro, §2, escreve que a última coisa que prometeria seria a de melhorar a humanidade. François Warin, retomando as metáforas do camelo, leão e criança de ZA, defende que o Übermensch é a “criança”, não o “leão” que depois de tomar consciência da subserviência do “camelo” se revolta e destrói o que está estabelecido. Ele é a “criança” que abandonou a violência, não odeia, não teme, não destrói nem deseja. É um pacifismo da força. (Cf. Nietzsche et Bataille, Paris: P.U.F. 1994, p. 231-3).

[5] Nietzsche et les écrivains français, Paris: 10/18, 1970, p. 89

[6] KSA 4, 119: “Niemals noch gab es einen Übermenschen.”

[7] Cf. Nietzsche: His Philosophy of Contradictions and the Contradictions of his Philosophy, Chicago: University of Illinois Press, 1999. p. 80.

[8] “Ich lehre euch den Übermenschen. Der Mensch ist Etwas, das überwunden werden soll. Was habt ihr gethan, ihn zu überwinden?” (ZA, “Vorrede” §3; KSA 4, 14).

[9] “Der Übermensch ist der Sinn der Erde. Euer Wille sage: der Übermensch sei der Sinn der Erde!” (ZA, “Vorrede” §3; KSA 4, 14).

[10] E.g. Segunda Inactual, §6; Humano Demasiado Humano I §143, II §73; Aurora §27, 60, 113, 548.

[11] “The Übermensch, accordingly, is not the blond giant dominating his lesser fellows. He is merely a joyous, guiltless, free human being, in possession of instinctual drives, which do not overpower him. He is the master and not the slave of his drives, and so he is in a position to make something of himself rather than being the product of instinctual discharge and external obstacle.” (Arthur Danto, Nietzsche as Philosopher, New York, Macmillan, 1965, p. 199-200).

[12] Nietzsche et le problème de la civilisation, Paris: P.U.F., 1999, p. 342-43. Por isso, continua Patrick Wotling, não lhes interessa a supremacia política, mas a transfiguração da existência em direcção a uma maior soberania. Todavia, o “deus epicurista” serviu sobretudo para a escrita do ZA II e Fragmento Póstumo de 1883, depois disso parece “por vezes” (parfois) desviar-se para a procura da dominação. (Idem, p. 344). Wotling realça também a proposta de um novo homem assente no critério do alargamento das perspectivas que incarna, cita em apoio o Fragmento Póstumo de 1887 10[17], onde se mostra um homem cheio de “luxos excedentários”, o contrário exacto dos especialistas, dos homens redutoramente especializados. Refere ainda o de 1884, 26[119], no qual o homem mais sábio seria o mais rico em contradições e, da mesma época, o 27[59] sobre a grande diversidade de instintos e impulsos necessária ao homem supremo.