Sinéad Morrissey, Pela janela de guilhotina

Tradução de José Manuel Teixeira da Silva

No meu sonho, eis que surgem os mortos
vêm lavar as janelas da minha casa.
Não há cortina que os expulse.

São densas as nuvens que pairam sobre o Lough
densas como as que pairam sobre Delft.
É o ar saturado de nuvens rondando a água.

Os mortos com enormes cabeças. Talvez
persigam o meu filho, a sua
respiração serena, os laços da sua vida -

mas ele continua a dormir, inocente e no seu berço,
tão indiferente a essas inundadas,
flageladas traseiras do vidro esfolado

que nos oferece o fulgor, lá fora…
Um rapaz triste e azul agarra um trapo
entre os dentes, é um mágico rente às vidraças.

E então, se de súbito vieram, de súbito partiram.
E deixaram um horizonte
de onde, agora, só as nuvens nos espiam,

as  copas cerradas de Hazelbank,
o cabo solitário de Strangford Peninsula,
e uma densidade no ar do quarto que me sufoca

até que acordo, estendida de costas, com uma rolha
na boca, tão estanque, é um facto,
como um remédio natural para a hidropisia.

 

Sinéad Morrissey (Irlanda do Norte, 1972), Through the Square Window, Carcanet, Manchester, 2009

 


THROUGH THE SQUARE WINDOW

 In my dream the dead have arrived
to wash the windows of my house.
There are no blinds to shut them out with.

The clouds above the Lough are stacked
like the clouds are stacked above Delft.
They have the glutted look of clouds over water.

The heads of the dead are huge. I wonder
if it's my son they're after, his
effortless breath, his ribbon of years –

but he sleeps on unregarded in his cot,
inured, it would seem, quite naturally
to the sluicing and battering and paring back of glass

that delivers this shining exterior . . .
One blue boy holds a rag in his teeth
between panes like a conjuror.

And then, as suddenly as they came, they go.
And there is a horizon
from which only the clouds stare in,

the massed canopies of Hazelbank,
the severed tip of the Strangford Peninsula,
and a density in the room I find it difficult to breathe in

until I wake, flat on my back with a cork
in my mouth, bottle-stoppered, in fact,
like a herbalist's cure for dropsy.

Sinéad Morrissey, Uma anatomia do olfacto

tradução de José Manuel Teixeira da Silva

É a melhor parte do dia - quando ele termina
aqui mesmo, contigo, entre lençóis que cheiram à nossa pele.
Consigo senti-la na noite: a tua pele, a delicada, magnética membrana
podia trazer de regresso a casa o meu ser perdido
com um simples toque no meio do escuro. Reconheço-a de novo, essa expansão
de sons e luz. Destrói qualquer distância entre nós dois.

Tinham cheiros os vestíbulos dos amigos de infância, cheiros familiares
que perseguiam os membros da família até à escola, quando iam clandestinos
nas mangas dos casacos e nas lancheiras, e eram furtivas revelações
das origens, de quem fez o quê, do que se calou
de súbito tão evidente como se tivesse acabado de chover.
Um exalava vinho, outro caminhara enrodilhado em mantas e em pleno sol;

quanto a ela, levava consigo o aroma antiséptico da caixa de insulina ou de pó de coco
bem junto a si, nos seus cabelos, e uns tempos depois o que tive de aprender
como sendo o discreto e difícil odor de um divórcio -
metal de estaleiro escavado por faíscas, cuspe, brilho de botas e ferrugem.
E sabia bem que tudo o que pairava no meu hall de entrada
revelava como um raio-x o perfil e a inclinação da minha espinha.

Agora, temos os dois também uma identidade -
o nosso cheiro impregnou os lençóis e envolve-nos a casa -
tinta invisível codificada até ao osso.
Tecêmo-lo espessamente como qualquer família
transporta em si o que é totalmente seu, totalmente distinto
e marca cada filho para a vida com a oculta natureza da sua criação.

Vindos de ti, os cheiros do deserto de Tucson:
depósitos de cobre, caveiras de animais, o risco a giz
das estrelas que nenhuma nuvem encobre ou tinge, o ocre e o chilli.
De mim, algodão lamacento, brilhos de carvão, alhos selvagens, o lodo do rio.
De nós dois, apenas sal. Quando um dia mudarmos de casa
vão seguir-nos genealogias assim.
 

Sinéad Morrissey  (Irlanda, 1972), Between Here and There, Carcanet, Manchester, 2002

 

An  Anatomy of Smell

It is the easiest part of the day — the ending of it,
here, with you, among sheets that smell of our skin.
I would know your skin in the dark: its smooth magnetic film
would bring me home and cease my being separate
with one blind touch. I know it again now, this expanse
of noise and light between us. It conquers distance.

Hallways of childhood friends had smells, family smells
that followed family members into school as stowaways
in coat sleeves and lunchboxes — slipped giveaways
of origin, of who made who, of what was left to tell
made suddenly clear in every detail as if recently rained on.
One was made of wine; one walked crushed by blankets even under sun;

one carried the antiseptic of insulin packets and coconut dust
about her, in her hair, and later what I knew by force
 to be the thin, hard odour of divorce —
shipyard metal caving under sparks, spit, boot polish and rust.
And I knew also that whatever was in my hallway
was exposing the line and the set of my spine like an x-ray.

Now we too have an identity —
the smell of us is through our sheets and wrapped around our home —
invisible ink encoded onto bone.
We have wrought it as surely as any family
forges something wholly themselves and wholly different
and marks each child for life with the hidden nature of their generative act.

From you, the smell of the Tucson desert: 
copper deposits, animal skulls, the chalk trajectory
of stars no cloud covers or stains, ochre and chilli. 
From me, bog cotton, coal fires, wild garlic, river dirt.
 And from the two of us, salt. When we move house
such genealogies as these will follow us.

Sinéad Morrissey, Shostakovich

tradução de José Manuel Teixeira da Silva

O vento e seus instrumentos eram, em segredo, os meus mestres.
Na rua Podolskaya eu tocava piano para a minha mãe
- nota a nota, sem partitura- enquanto o sopro
percorria o apartamento devassado: com mão grossa batendo
nos vidros, gemendo no fogão, empurrando
a porta, uma e outra vez, em direcção ao patamar-
um fantasma por entre o mecanismo dos Dois Prelúdios de Beethoven

em todas as tonalidades maiores, e era então que eles mentiam.

Mais tarde, ficava-me pelos campos de trigo e ouvia música
no que o vento tocava. As notas agudas eram cascas:
turbulentas, mas também um nervoso e volúvel sussurro,
enquanto, subterrânea, pulsava a forte, feroz melodia
como se falso crescesse o grão ou a própria floresta.

Em todos os hinos de louvor, no cantochão, deixo o registo
do bater de botas desse homem escondido na montanha.

 

 Sinéad Morrissey  (Irlanda, 1972), Parallax, Carcanet, Manchester, 2013
 

 SHOSTAKOVICH

The wind and its instruments were my secret teachers.
In Podolskaya Street I played piano for my mother
-note for note, without a music sheet- while the wind
in the draughty flat kept up: tapping its fattened hand
against the glass, moaning through the stove, banging
a door repeatedly out on the landing-
the gost in the machine of Beethoven’s Two Preludes

Through All the Major Keys, that said they lied.

Later I stood in wheat field and heard the wind make music
from everything it touched. The top notes were the husks:
fractious but nervous, giddy, little-voiced,
while underneath a strong strange melody pulsed
as though the grain was rigging, or a forest.

In all my praise and plainsong I wrote down
the sound of a man´s boots from behind the mountain.

 

Sinéad Morrissey, Baltimore

tradução de José Manuel Teixeira da Silva

Noutros barulhos, ouço os meus filhos a chorar –
em crianças mais velhas que brincam na rua
fora de horas, nessas vozes que vêm
em luzes incertas; ou no bebé
aqui mesmo ao lado, através de paredes frágeis,
sem sono e rabugento; ou no sempre tão
estranho asfalto de Westside Baltimore
em The Wire, nas sirenes e súbitos tiroteios,
nos guardas cercados e a insultar garotos
que não têm mais de seis anos e apoiam
dealers pelas esquinas, na sua bazófia,
nas inflamadas palavras; ou então nos espaços em branco
entre as estações de rádio, quando nenhuma voz
nos chega e o crepitar eléctrico
talvez abafe o surdo apelo
de uma criança; até no próprio silêncio,
se densamente retém e abraça
o fantasma de um grito que imaginei, mas senti,
e que me surpreende ao subir as escadas, suspenso
no hall, ouvindo-o, distintamente o ouvindo,
quando muito uma ritmada respiração,
mas quase sempre um nada de nada, aragem
do patamar cheia de coisas perdidas,
legendas de pó, estendais com cobertores, um barco
no Lough através da janela, um sono de criança.

 

 Sinéad Morrissey  (Irlanda, 1972), Parallax, Carcanet, Manchester, 2013

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Sinéad Morrissey, Farol

Tradução de José Manuel Teixeira da Silva

O meu filho ainda está desperto às dez, estirado 
no seu beliche, junto ao tecto, iluminado e vigilante. 
Fins de Agosto. Já o profundo 
céu diurno deste solstício a norte se obscurece 
cada vez mais cedo, numa coroa de nuvens; 
a luz da sua Estrela de David e a lua de plástico 
empurram, lá fora, o crepúsculo para a noite.  

Ao longo do Lough, onde os ferries se aventuram tranquilos 
e certo dia um paquete, vasto como palácio, 
foi avançando, no seu corpo brilhante, para o mar aberto- 
um farol inicia o longo discurso nocturno 
feito de sinais entrecortados; cintila e lança 
a esfera dos seus raios, detém-se e apanha-os 
e de novo os arremessa para lá da sua paralaxe. 

Ele conta cada um dos laços macios que lhe invadem a cabeça, 
todos os intervalos de treva, e imagina que sejam só para si- 
o aceno desse mundo em que se não pode penetrar: 
os dois em parte obscuros, em parte visíveis, 
protegidos numa espécie de conversa de rapazes 
que mais ninguém consegue ouvir. Nesse lugar privado, responde o farol, 
de pássaros e janelas devassadas- sim, eu já lá estive. 


Sinéad Morrissey  (Irlanda, 1972), Parallax, Carcanet, Manchester, 2013 

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