The Killing e True Detective

Captura de ecrã 2014-11-16, às 13.13.45.png

A série The Killing, Thriller com origens dinamarquesas (Forbrydelsen), passa actualmente em Portugal no canal FoxCrime, assenta numa racionalidade imbricada em pulsões independentes da “lógica da normalidade”, esses padrões comportamentais que parecem fazer previsões mais seguras sobre o nosso futuro do que as do Instituto de Meteorologia.

Estética: inverte as luminosidades apolíneas das séries mainstream da Fox, os dias são cinzentos, com uma chuva persistente, os interiores obscuros, os grandes planos não esbatem as sombras dos rostos, envelhecendo-os, por vezes num registo forçado. Os personagens principais (par heterossexual quase sem atracção libidinosa, dos actores Joel Kinnaman e Mirreille Enos), não revisitando especialmente os anti-heróis pícaros da história da ficção, vivem numa imperfeição deontológica que combina bem com o nosso imaginário dos cowboys solitários chamados a fazer justiça para lá da lei. Não há, ou há muito poucas cenas eróticas (uma das galinhas de ovos de ouro hollywoodescas); grandes, fantásticas perseguições; câmaras lentas intensificando o impacto do soco ou do tiro; edições sonoras para que o disparo de uma pistola pareça o de um canhão (quem já disparou uma arma, mesmo de calibre elevado, sabe que o som é quase ridiculamente inferior ao que ouvimos nos filmes). Apesar de algumas reviravoltas (a estafada “peripécia” das tragédias gregas), a linha argumentativa é bastante realista, quebrando com o abuso dos deuses ex machina,  para se resolver, ultrapassando facilmente o verosímil, qualquer imbróglio, questão de épaté o espectador e fechar um suspense mal amanhado.

Uma série hidrófila, compreendendo que no inverso da luz, miúdas giras, rapazes atléticos e leais, paixões arrebatadoras, inteligências sobre-humanas a fechar investigações que pareciam conduzir a lado nenhum... enfim, nos antípodas de hábitos que vão formando espectadores pouco cerebrais, sem, contudo, cultivar o bizarro, à la Lars von Trier e, menos, David Linch, fez-se uma bela série (aperfeiçoada na versão americana), desenvolvida num campo dionisíaco profundamente cativante, porque mais próximo da vida enquanto produto biológico (como se costuma agora dizer).

True Detective, uma hermenêutica do sujeito e do mal

Descobri há pouco esta série (canal TVCine Séries, para os que continuam no Rectângulo, ou num site perto de si), primeira temporada de 2014, com Matthew McConaughey e Woody Harrelson nos papéis de dois polícias da Luisiana investigando estranhos homicídios. Escrita por Nic Pizzolatto (responsável por dois episódios de The Killing) e dirigida por Cary Jogi Fukunaga. Produção dos dois principais actores, argumentista e realizador, a que se junta Steve Golin e Richard Brown para a HBO (melhores audiências desde 2001, 9,3 no IMDb).

Cada temporada terá, dizem, uma nova história e um novo elenco. E talvez possamos começar por aqui, um desvio ao padrão “saga” que se instaurou em quase todos os produtos televisivos, orientados para o “grande público” ou para nichos de mercado (esses espectadores esquisitóides).

A estrutura desta temporada assenta na divisão da história em dois momentos cronológicos articulados: uma investigação sobre homicídios ritualistas em 1995 e uma investigação sobre essa investigação em 2012, já com os protagonistas fora da polícia. Este desdobramento, feito de flashbacks e longos solilóquios, dá densidade ao argumento, a meta-investigação complementa, aprofunda, enigmatiza..., tanto a primeira investigação como os personagens que a desenvolvem.

E se o formato do duo policial, com frequentes dissensos, não introduz qualquer novidade, já a personalidade e o discurso daquele que vem de fora da Luisiana (Rust Cohle/Matthew McConaughey) estabelece um campo de representação muito diferente do usual. À profundidade analítica junta-se um racionalismo amoral que só as suas insónias vêm perturbar, com delírios controlados que tanto o alienam da realidade como, no reverso, lhe permitem desvendar uma sobre-realidade que comanda parte do mundo. Rust, um pessimista irredutível, tem frases como There’s a weight, and it’s got its fish hooks in your heart and your soul”, ou “There was other times I thought I was mainlining the secret truth of the universe.”

Este “moody, self-consciously wordy and obscurantist thriller”, como lhe chama o The New York Times, é, ainda segundo Alessandra Stanley, uma “ontologia mística” baseada na ideia que o mal governa o mundo. Mas é também um extraordinário poema visual decadente, filmando com precisão e abnegação lugares inóspitos colonizados por humanos tão desinteressados pela vida como pela morte. Mas que ainda assim se prendem ao orgânico, como se quisessem inscrever na sua biografia um último acto de coragem vital, e para isso convocam frequentemente a faculdade do juízo, marcando fronteiras rústicas entre o bem e o mal: However illusory our identities are, we craft those identities by making value judgments. Everybody judges, all the time. Now, you got a problem with that, you’re living wrong.” 

11 Perguntas sobre a internet

Captura de ecrã 2014-10-30, às 18.00.59.png

Montaigne dizia, nos alvores do cansaço civilizacional ocidental (talvez ele tenha reinventado o niilismo produtivo, depois do grande cepticismo grego, que estranhamente não foi incorporado por Roma, porventura devido à sua gigantesca aposta na ética estóica), que não fazemos mais do que nos entre-glosar (já que interpretamos mais as interpretações do que as coisas, escrevemos mais sobre livros do que sobre outros temas).

Na era da Web2, da sagração da internet, parece haver ainda mais sobre-sentido, nada, ou quase nada, carece de explicação (pensar a sua qualidade é outra coisa). Usada por 40% da população mundial, a internet parece conter todas as ideias possíveis sobre todas as coisas, reais ou imaginárias, passadas ou futuras. Googlem qualquer assunto, por mais excêntrico que seja, e verão que numa fracção de segundos obtêm uma biblioteca disposta a ser imediatamente consultada. Glosando Walter Benjamin, trata-se, pois, de pensar a informação, os discursos de sentido, nos diferentes suportes, na era da Web2 (parece que a 3 se fará em torno de algoritmos que escapam a quase todo o humano, mas era previsível que a internet viesse a prescindir da nossa supervisão), de investigar como isso mudou mais o mundo do que qualquer outra revolução, política, tecnológica ou económica, antes dela. E mudar o mundo é mudar o homem, trata-se talvez desse sobre-homem de que falava Nietzsche, não mais energético e eticamente sobredotado, à maneira de um Superman, mas de um outro homem.

Portanto, o que direi, e disse, aqui é somente um exercício de glosa; socorrendo-me de Dostoïevski, mutatis mutandis, eu sou glosador e o mais glosador de todos. Por isso, se encontrarem na análise que vou fazer o pecado da paráfrase, julguem-me sabendo qual é a minha, e a vossa, condição.

Perguntas sobre a internet:

1- Espaço de subversão ou de normalização? A massificação traz sempre a mediania, a maioria torna-se dominante e, portanto, normalizadora. A partir daí impõe uma racionalização e um controlo sobre, justamente, os que a querem subverter, no interior (super-progressistas) ou exterior (super-conservadores).

2- Saberá a Google mais acerca de nós do que nós mesmos? Talvez, ela trata mais, e mais rapidamente, informação sobre mim do que eu próprio. Mas, vantagem que pode desaparecer em breve, ela ainda não reconhece muitas mentiras, por exemplo, ainda a posso levar a “pensar” que sou genial.

3- Se 80% do tráfico é gerado por 0,3% do conteúdo, não estaremos a andar em círculo? Há essa possibilidade, há muito “déjà vue”, reinvenções da roda na internet. Mas acredito em bolsas de criatividade, desde que não haja adição à popularidade.

4- O novo pensamento dominante é a primeira página do Google? Em muitos casos, sim. Mas há quem não ligue, os outros arranjariam sempre uma forma de se juntarem ao rebanho.

5- Os justiceiros da Web (“piratas”) são o metrónomo moral que devemos seguir? Nalguns casos, noutros são meros buscadores de fama ou de proveitos materiais. Aliás, é bom que não haja santos na internet (já chegam os analógicos para as festas de Verão), vive-se bem melhor ao pé dos impuros.

6- Estará a internet no centro do processo democrático tradicional? Ela não é um média como os outros, muito mais se podem exprimir, o anonimato promove a participação e a sinceridade das opiniões. Neste sentido, é menos um campo da democracia participativa (onde quase sempre os mesmos têm a palavra) e mais um espaço de igualdade e de democracia directa.

7- Pode a internet aumentar a transparência governativa? Devia, mas os políticos parecem evitar, ou retardar, esse desconforto.

8- Estará a internet a promover novas formas de elitismo? Talvez, há ferramentas e procedimentos que só alguns dominam. Todavia, quase tudo parece acessível, os níveis de dificuldade são sempre esbatidos pelos inúmeros tutorials que originalmente ou pouco depois editam os mais variados tipos de “livros de instruções”.

9- Poder-se-á salvar o mundo vendo vídeos de gatos? Esta frase pode rapidamente passar a sintagma conceptual, quer pelo número elevado, e crescente, de pessoas que vê esses vídeos, inclusivamente eu, quer porque designa uma nova forma de alienação fácil de usar (à semelhança de “A religião é o ópio do povo”). Porém, creio que é possível deleitarmo-nos com os malabarismos dos felídeos e ao mesmo tempo sentirmo-nos inspirados a agir contra uma qualquer injustiça ou a desenvolver fragmentos de beleza. Nem todo o lúdico é anestesiante.

10- A internet altera a nossa identidade, auto-identidade e auto-estima? Bem, a não ser que digamos banalidades ou tenhamos um discurso tão esotérico que se torna incompreensível, arriscamos o “não gosto”, de polegar para baixo ou em discurso verbal ofensivo. Na internet pululam os profissionais do ressentimento, e mais tarde ou mais cedo atacam, em alcateia, tudo o que mostre alguma positividade. Daí que alguns possam começar a duvidar da sua inteligência e integridade ética.

11- A internet instituiu uma nova economia da visibilidade? Talvez, mas analisada a questão com mais cuidado, creio que se mantêm as condições ancestrais: erotismo, anormalidade, maledicência, extraordinaridade..., isto é, o velho critério dos extremos e da sexualidade. O surpreendente é que são os “normais” que elegem estes campos, como se quisessem fugir, por projecção, da sua própria banalidade ou falta de impacto erótico que provocam nos potenciais parceiros. 

Para finalizar: I love internet.

Para uma geopoética europeia

Captura de ecrã 2014-10-3, às 19.58.19.png

Lugar de inspiração: Liberation, 2 de Outubro de 2014, e a brisa de fim de ciclo que regressa à Europa.

Reportagem sobre a exposição “Secession”, no instituto francês de Berlin. Objectivo: explorar novas cartografias europeias, menos geográfico-políticas, mais experimentalistas e espirituais.

Sabemos que o grande projecto colonialista e positivista europeu de século XIX desenhou mapas cada vez mais precisos, geometrizados, sobretudo em África (esse “continente ainda por civilizar”). Mas os mapas são muito mais do que reduções proporcionais e objectivas do mundo em imagens, eles resultam sempre de gestos culturais, construídos por saberes humanos datados, são, numa palavra, o produto das interpretações dominantes. Ora, em Berlin propõe-se descontruir esse statu quo, invertendo, ou subvertendo, as narrativas geográfico-políticas.

Das propostas da exposição, gosto da do escritor Camille de Toledo (comissário de “Secession”, juntamente com a historiadora Leyla Dakhli), centrada numa pan-tradução, comunidade poética europeia que viveria “entre-as-línguas”, como se a língua franca fosse a tradução, ou melhor, o espaço que se constitui no vaivém entre os idiomas. Camille quer uma alternativa à utopia literária de Goethe (o desenvolvimento do bom entendimento entre os povos através de uma literatura mundial) e à da MittelEuropa, Europa central do XIX/XX, que parece, mutatis mutandis, ressurgir (assente numa pluralidade das línguas e sistemas filosóficos, mitigada na cosmovisão comum acerca do valor dos conceitos e da sagração tecnológica). O que se procura em Berlin é reinscrever o espaço europeu num lugar de futuro (daí o utopos), “escapar à saturação memorial, ao assombramento do passado europeu” (feito de glória e de trágico). Acelerar um pouco a história (hoje parecemos medusados pelos notáveis feitos do Estado Social e da pujança económica pretéritas), reactivando o projecto crítico europeu (talvez o maior de todos os legados civilizacionais, haverá maior virtude do que investigar as ilusões?), voltar a ver claro nesta crise devastadora, estéril e já profundamente dogmatizada. Revogar a prevalência da face de Janus que olha imóvel para o passado (também o mau, ainda não totalmente redimido), apostar na que mira o futuro.

Mais afastada de qualquer compromisso, ainda no contexto da exposição, a 23 de Setembro, uma assembleia de artistas, filósofos, tradutores... propôs uma ficção colectiva, alimentada num movimento popular, que fizesse emergir o “povo fantasma”, capaz de exonerar as velhas instituições da Europa burocrática. Essa ficção seria o produto, sempre inacabado, dos palimpsestos das ficções nacionais, que depois de confrontadas e articuladas com o horizonte pós-nacionalista seriam exauridas da sua potência mitológica nacional, podendo finalmente alcançar um europeísmo feito do neo-povo fantasma, apátrida e sem deveres de adoração às velhas instituições,  símbolos e narrativas identitárias.

No fundo, pretende-se dar outro sentido ao projecto europeu através da ficção, reinterpretar o nosso continente a partir de “geografias errantes e polifónicas”. 

Em cacos

Estar aqui, todos os dias, numa consistência oscilando entre o heróico (sábado falámos deste recurso performativo) e o anódino, não preenche experiências de laboratório, é uma prova de vida.

E neste exercício, sagrado ou banal, um fluxo permanente de energia, variando no entanto de intensidade, faz e desfaz o sentido da individualidade. Uma pedra é uma pedra (evite-se falar com elas quando se humanizam), nós desfazemo-nos e refazemo-nos, por vezes em contradição sumptuosa, numa permanente inquietude identitária. Esforçamo-nos por juntar os cacos e depois de tudo composto ou ficamos fartos e explodimos ou um vento revolucionário abana o edifício do “eu” até ao estilhaçamento.

Mas este movimento quase-trágico, quase-sísifo é o alimento vital de todos os esforços para nos agregarmos imperfeitamente, uma e outra vez, (excepto nos sábios e santos inteiros, se os houver), esperando nova pulverização. Uma polarização que não contém qualquer dicotomia, os pólos existem para que o humano viva entre eles, nós fazemos a vida entre, insubmissos a qualquer determinação. No “entre” aloja-se a revolta da vida espontânea contra o domínio da razão. Aí, os fios racionais de uma moral, política ou arte nunca valerão o entusiasmo do instante, a emergência de uma vida, o improvável aparece como imperativo, ainda que fugaz (não fujo à lógica, amo-a).

Por isso, quando me perguntam quem sou, apetece-me quase sempre responder que “ainda não sei”, que “ainda estou a fazer-me”, “e desfazer-me”.

Martin Amis e a literatura

Captura de ecrã 2014-09-4, às 19.18.34.png

Martin Amis, León Espanha, 2007. CC BY-SA 2.0 voorwaarden bekijken

Parto da entrevista de Martin Amis ao philosophie magazine, 24/04/2014, para pensar a literatura, o que é (eterna questão) e para que serve (pergunta que se manterá enquanto não se responder à primeira).

Sabemo-lo, Martin Amis, um dos muitos escritores da extraordinária literatura realista inglesa, é capaz de descrever sem contemplações os lados mais obscuros da humanidade, dissecando simultaneamente o individual e o social, com um rigor que não recusa o excessivo e o iconoclasta, num tom rude mas refinado. Como se espera de alguém filho do romancista Kingsley Amis (Sir em 1990, por serviços prestados à literatura, achava a escrita do filho sexomaníaca e um pouco grosseira; o filho preferia Vladimir Nabokov) e estudante em Oxford. Com os livros Dead Babies, Success e Money (1975, 78 e 84 respectivamente) impõe-se pela criatividade estilística, o poder descrito de uma veracidade atordoante e uma feroz crítica social. Ataca a partir de ângulos inabituais o mundo obcecado pelo dinheiro, o consumismo desenfreado, o individualismo niilista e a sexualidade viciosa. Sem ser miserabilista, as classes desfavorecidas não são impolutas, Martin Amis descreve e prescreve, antecipa o “espírito do tempo”, por isso previu na década de 70 como nos iríamos alienar num consumismo descontrolado, amoral e inestético, onde até a alta cultura foi abraçada, num beijo de morte ainda por reconhecer, pela indústria capitalista.

[a literatura como analítica da actualidade, mais poderosa do que o jornalismo ou as ciências humanas, mais também do que a sempre-eterna filosofia, durante muito tempo rainha da crítica. A prestidigitação literária, ou porque antecipa ou por produz profecias auto-realizadas]

Amis escreve os primeiros romances na ressaca do hedonismo hippie, essa extraordinária e arrebatada libertação moral e sexual. Mas Amis viu também na revolução uma face obscura, uma espécie de “carnaval negro”, exemplificado na morte da mulher de Roman Polanski por Charles Manson. Por outro lado, a alteração abrupta dos valores e comportamentos sexuais criou uma “imensa tensão” entre filhos e pais, estes não souberam transitar da repressão sexual em que tinham vivido para o campo de prazer livre da juventude. Assim, a revolução desenvolveu também desequilíbrios e ressentimentos.

[um bom analista sabe que a linha de interpretação dominante esquece muitas pontas soltas. Amis lançou-se à descoberta das sombras negras que estão para lá da cortina de luz das épocas sagradas da história. David Lynch faz isso no cinema em relação a fragmentos “perfeitos” da realidade, gosta de esgravatar à procura da anormalidade. Eterno retorno do semelhante de Alice’s Adventures in Wonderland, mais uma variação do fascínio pelos subterrâneos da humanidade]

Money. A Suicide Note, de 1984 – a página web da Amazon.com, na Editorial Reviews, qualifica-o de “Absolutely one of the funniest, smartest, meanest books I know” – põe em cena um capitalismo integral, um homem unicamente movido pelo dinheiro. Para Amis, John Self, personagem central de Money, representa o paroxismo do individualismo e da obsessão materialista numa sociedade que emergiu em 1973. Sem esconder alguma ingenuidade, Amis acredita que até àquela data era fácil adoptar uma vida boémia, viver com cerca de 10 Shillings por semana. Este lifestyle, económico e experimentalista, desenvolveu as avant-gardes, as revistas literárias e as humanidades. Quando pouco depois começou a ser necessário ganhar 10 vezes para sobreviver, tudo isso desapareceu, tinha chegado a “sociedade do dinheiro”.  Claro que esta sociedade, sabemo-lo todos, é suicidária, faz muitos émulos de John Self, vivendo para consumir bens socialmente relevantes, objectos que se apresentam como de luxo. Excepto numa coisa, John, como os discípulos, ama a comida barata, porque é “mais rica em gordura e açúcar”.

[a Amazon julga saber o que leio a partir das minhas pesquisas. Por isso me aconselha paternalmente coisas semelhantes, fabricando uma teia semiótica à volta do meu presumido gosto e necessidades. A “sociedade do dinheiro” destruiu muitos modos de vida, mas talvez os criativos, os divergentes que sabem manejar a caneta devessem ter resistido, mantido a frugalidade de um dia-a-dia alimentado mais por ideias do que por objectos. Tenho amigos da esquerda política mais pura que andam de laptops Apple, articulam facilmente Marx com Steve Jobs ou Mao com um iPhone. Eu próprio, que sem ir à missa também me considero de esquerda (tenho preocupações que não acabam no meu umbigo e preocupo-me mais com os dominados do que com os dominantes), escrevo este texto num iMac. E se no meio de todas estas contradições o suicídio não fosse, como tantos vaticinam, uma linha de decadência? Se pudéssemos ver como são festivos os comportamentos autofágicos que desfazem a parte da humanidade que sublimou todo o imaterial (evito, por razões de clareza, o “espiritual”) no material?]

Quanto ao declínio do Ocidente, o último romance, Lionel Asbo: State of England, parece ser um fresco sobre uma Europa doente. “Parece”, porque Amis assegura que à medida que envelhece mais se convence que a literatura tem as suas raízes em coisas positivas. Não se pode escrever um romance, diz, em modo colérico. É preciso afeição e amor para escrever. Mesmo as personagens pícaras são construídas com ternura, sente amor por John ou Lionel. Este, aliás, subestima-se ao julgar que é estúpido. Amis acredita que há enormes reservas de inteligência nas classes populares (a que Lionel pertence). A inteligência tem pouco que ver com a instrução, ela é irredutivelmente democrática, e não um privilégio de classe, emerge sempre como uma força bruta pouco influenciada pela educação. Mas estes personagens, os livros que escreve para denunciar as sombras menos visíveis da humanidade, não querem mudar nada ao statu quo ante. Além de The Satanic Verses e de Daniel Deronda de George Eliot (facadas na ética vitoriana), poucos são os romances que têm algum efeito na sociedade. Apesar disso, um escritor deve escrever sobre a realidade, “cada vez que se conta um sonho perde-se um leitor” (os sonhos são demasiado pessoais). O romance deve apanhar o universal, é essa a grande herança do pai, que demorou décadas a compreender.

[amar incondicionalmente os personagens, todos eles fruto de uma erótica maior. Só se pode escrever bem quando sentimos em cada linha, mesmo nas diabólicas, a presença, discreta, de uma centelha de luz resistindo aos sopros mortíferos. A literatura é mais uma forma de fazer realidade, também ela tece a manta de retalhos do mundo tangível. Acrescenta ou muda muito? Altera e cria para lá da quantidade, é uma arte muito reservada, secreta quase, de produzir vida e sentido. Mas nas dobras da história, quando a humanidade muda de caminho, aí está o seu esplendor. Quanto aos sonhos, o onírico pode ser bem mais universal do que o raciocínio lógico-analítico. Creio, aliás, que somos todos filhos de sonhos]