Morreu Manoel de Oliveira, prestar-lhe homenagem fazendo uma espécie de mini vade mecum a partir de artigos publicados no jornal francês Libération, que sempre viu nele um herói estético capaz de renovar a vitalidade do cinema. Vade mecum, se os leitores quiserem; patchwork se me perguntarem pelo método de escrita e análise, montado mais em paráfrases do que em citações. Mas tudo com incondicional reverência, mesmo se algumas das suas obras (é bem de obras de arte que se trata) me deixaram relativamente indiferente, por falta de inteligência minha, com toda a certeza.
Depois de Non, ou a Vã Glória de Mandar Manoel de Oliveira era já considerado um “jovem-velho cineasta lusitano”, tinha 82 anos mas à sua filmografia acrescentará ainda mais de 20 novas longas metragens. Trata-se de uma espécie de anomalia estético-temporal.
Um pé no século XIX romântico, que não cessou de citar, Camilo Castelo Branco como figura tutelar, mas também ancorado no modernismo, introduzindo nas narrativas as falhas discursivas e os enigmas visuais. Desportista (campeão de salto com vara e rally man), levava para o trabalho uma dinâmica que deixava sem fôlego técnicos e actores, muitos com menos 50 anos do que ele. Um arco majestoso traça a sua vida entre 1908, tempo do cinema mudo, e 2015, com o incontornável YouTube.
Aniki Bóbó em 1942 (premissas do neo-realismo?), túnel salazarista (refúgio nas vinhas da família da esposa, apenas duas longas metragens, prisão), depois de 1975 aceleração do ritmo de produção, com alguns filmes-oceanos (Amor de Perdição, 4h25; O Sapato de Cetim, 6h55). O tempo perdido na imobilidade da ditadura empurra-o para um frenesi produtivo. Com Paulo Branco, produtor-amigo, e os fiéis actores Diogo Dória, Luís Miguel Cintra e Leonor Silveira, torna-se o fenomenólogo do crepúsculo do Império e das vanidade da guerra (Non, ou a Vã Glória de Mandar); experimenta a melancolia do mundo sensível percebido pelo olhar de uma mulher que a vida não soube realizar (Vale Abraão); ou o segredo da lassitude, “ternura mortal por tudo o que vive” (Inquietude); as relações amor-ódio entre o teatro e o cinema (O Sapato de Cetim, Vou para Casa).
Em Oliveira a língua são grandes pedaços de prosa queimada, caindo frase após frase aos pés dos planos, vector de vertigem que unifica a sua obra, lhe dá a sua cor, a sua grandiosa marca. A voz off do narrador de Vale Abraão é o de que mais belo se ouviu nestes últimos vinte anos, como se Proust tivesse regressado dos mortos para colocar um suplemento fílmico ao seu Temps retrouvé.
Mal recebido em Portugal, respeitadíssimo em França. Disse João César Monteiro: “A obra de Manoel de Oliveira é demasiado grande para Portugal ou o país demasiado pequeno para a sua obra”. Tanto mais que é um mestre da contradição, sem sínteses, ideia contra ideia, um caminho em vez de outro, um ponto de vista novo que faz tábua rasa dos anteriores que pareciam definitivamente entronizados. Viveu em micro-ziguezagues.
Palme de ouro pelo conjunto da sua carreia em Cannes, dirigiu actores como Piccoli, Malkovich, Deneuve e Mastroianni, pai e filha. Em tudo uma certa ideia da elegância, da contenção. Mesmo em relação à crítica obtusa, sobretudo portuguesa, aos produtores ingratos, à ditadura salazarista (prendeu-o em 1963).
“Os filmes falam por mim”. Obsidiado pelo mistério e o seu contrário, a verdade. Preferia os “factos aos efeitos”, “Gostava de explicar tudo, que o espectador compreendesse tudo”. É impossível, e indesejável, por vezes deve apenas sugerir-se.
Ver também, ainda do ponto de vista francês, este artigo do Le Monde.