Duas epifanias

Vivemos tempos de desamparo, situações, coisas e pessoas que há pouco tempo pareciam anódinas ou mesmo simpáticas, são hoje motivo de irracional desconfiança ou irreprimível desdém. Uma versão dos “tempos sombrios” de Hannah Arendt misturada com o spleen niilista oitocentista, sem qualquer redenção estética, metafísica ou política.

Mas, seguindo o velho adágio hoderliniano “onde está o perigo cresce também o que salva”, as pérolas que encontramos na lama são quase sempre as mais belas, pelo realce do contraste e a inversão extraordinária das expectativas. E hoje encontrei duas clareiras, sem me desviar dos caminhos habituais, recompensa para uma insistência rotineira (que divino consegue premiar a convergência?). “Aceita tudo”, dizem-me baixinho os deserdados da alegria e da esperança (fazem legião). “Claro que sim”, respondo, não me faço rogado. Agarro tudo com duas mãos, dois braços, o corpo todo, nunca devemos ser mal-agradecidos. Por isso me considero, à força de estoicismo, um realista feliz.

Mas vejamos o que me trouxe o dia.

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Os Donos do 25 de Abril

Depois do 25 de Abril de 1974 surgiu, à boa maneira portuguesa, mais uma clivagem entre puros e impuros: os primeiros “estavam com o povo”  (Forças Armadas, Operários e Camponeses, todos em processo de proletarização, mesmo os energúmenos que lá habitavam); os segundos “estavam contra o povo” (devotos do antigo regime mas também cépticos moderados). Aqueles eram “progressistas”, estes “reaccionários, uns pretendiam que a História (providencial) avançasse, outros que parasse ou regredisse. Mas não bastava esta polarização, distinguia pouco os que se auto-intitulavam Heróis da Revolução. Passou então, estranhamente em mais uma variável capitalista, a haver os donos do 25 do Abril. Não que o dissessem literalmente, mas esse era, e é, o sentido que se retirava do ódio que nutriam por quem não participava no seu coro. A célebre expressão “onde estavas no 25 de Abril?”, queria, e quer, dizer: “não estavas lá (ideologicamente), logo ele não te pertence, não podes tomar posse dele”.

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Questão de estilo I (Charles Bukowski)

“Style is the answer to everything.
A fresh way to approach a dull or dangerous thing
To do a dull thing with style is preferable to doing a dangerous thing without it
To do a dangerous thing with style is what I call art

Bullfighting can be an art
Boxing can be an art
Loving can be an art
Opening a can of sardines can be an art

Not many have style
Not many can keep style
I have seen dogs with more style than men,
although not many dogs have style.
Cats have it with abundance.

When Hemingway put his brains to the wall with a shotgun,
that was style.
Or sometimes people give you style
Joan of Arc had style
John the Baptist
Jesus
Socrates
Caesar
García Lorca.


I have met men in jail with style.
I have met more men in jail with style than men out of jail.
Style is the difference, a way of doing, a way of being done.
Six herons standing quietly in a pool of water,
or you, naked, walking out of the bathroom without seeing me.”

Charles Bukowski

Como enxertar especulativamente este poema? Não terá ele quase esgotado o nosso entendimento sobre o estilo? Claro que se pode escrever ainda uma biblioteca inteira, ela está com certeza, aliás, a ser escrita, prossegue-se o incansável preenchimento de estantes sobre o estilo (também porque temos horror ao vazio). Mas ao mesmo tempo parece que nada consegue confrontar-se, em agonismo ou reverência, a este vitalismo poético. Bukowski (soube ontem que infelizmente está na moda) é aqui um repórter selvagem abrindo a lata de sentidos que o assombram, a ele e a um entourage pós-Beatnik. Não como profilaxia, antes para radicalizar mergulhos de apneia em buracos negros, talvez à procura da pureza da luz. Outra forma de vertigem Iluminista.

Volto à pergunta: “como continuar especulativamente este poema?”. Justamente, especulando, suplementando-o com a arte burguesa da explicação, do comentário, da alternativa racional, impondo Apolo a Dioniso. É preciso acalmar a tempestade, só quase Leibniz preferia o mar aberto ao porto seguro.

Este esclarecimento afigura-se como uma torção desajeitada à linha lógica, ou estética, que obrigaria ou a pôr Bukowski fora de jogo ou a deixá-lo brilhar a solo (estrela dançante dominando fatalmente a constelação). Mas este poema, no interior e exterior, é a melhor das epígrafes para se falar do estilo porque: 1) fará um vigoroso contraponto, invencível, quem sabe, ao que disser teoricamente a partir de agora; e 2) é ele próprio uma amostra perfeita de uma acto de “estilo singular”.

Por outro lado, guardo Friedrich Nietzsche, a sua ideia de “grande estilo”, para outra oportunidade. Hoje mantenho-me numa via de pensamento bastante dufrenniana.

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Manoel de Oliveira

Morreu Manoel de Oliveira, prestar-lhe homenagem fazendo uma espécie de mini vade mecum a partir de artigos publicados no jornal francês Libération, que sempre viu nele um herói estético capaz de renovar a vitalidade do cinema. Vade mecum, se os leitores quiserem; patchwork se me perguntarem pelo método de escrita e análise, montado mais em paráfrases do que em citações. Mas tudo com incondicional reverência, mesmo se algumas das suas obras (é bem de obras de arte que se trata) me deixaram relativamente indiferente, por falta de inteligência minha, com toda a certeza.

Depois de Non, ou a Vã Glória de Mandar Manoel de Oliveira era já considerado um “jovem-velho cineasta lusitano”, tinha 82 anos mas à sua filmografia acrescentará ainda mais de 20 novas longas metragens. Trata-se de uma espécie de anomalia estético-temporal.

Um pé no século XIX romântico, que não cessou de citar, Camilo Castelo Branco como figura tutelar, mas também ancorado no modernismo, introduzindo nas narrativas as falhas discursivas e os enigmas visuais. Desportista (campeão de salto com vara e rally man), levava para o trabalho uma dinâmica que deixava sem fôlego técnicos e actores, muitos com menos 50 anos do que ele. Um arco majestoso traça a sua vida entre 1908, tempo do cinema mudo, e 2015, com o incontornável YouTube.

Aniki Bóbó em 1942 (premissas do neo-realismo?), túnel salazarista (refúgio nas vinhas da família da esposa, apenas duas longas metragens, prisão), depois de 1975 aceleração do ritmo de produção, com alguns filmes-oceanos (Amor de Perdição, 4h25; O Sapato de Cetim, 6h55). O tempo perdido na imobilidade da ditadura empurra-o para um frenesi produtivo. Com Paulo Branco, produtor-amigo, e os fiéis actores Diogo Dória, Luís Miguel Cintra e Leonor Silveira, torna-se o fenomenólogo do crepúsculo do Império e das vanidade da guerra (Non, ou a Vã Glória de Mandar); experimenta a melancolia do mundo sensível percebido pelo olhar de uma mulher que a vida não soube realizar (Vale Abraão); ou o segredo da lassitude, “ternura mortal por tudo o que vive” (Inquietude); as relações amor-ódio entre o teatro e o cinema (O Sapato de Cetim, Vou para Casa).

Em Oliveira a língua são grandes pedaços de prosa queimada, caindo frase após frase aos pés dos planos, vector de vertigem que unifica a sua obra, lhe dá a sua cor, a sua grandiosa marca. A voz off do narrador de Vale Abraão é o de que mais belo se ouviu nestes últimos vinte anos, como se Proust tivesse regressado dos mortos para colocar um suplemento fílmico ao seu Temps retrouvé.

Mal recebido em Portugal, respeitadíssimo em França. Disse João César Monteiro: “A obra de Manoel de Oliveira é demasiado grande para Portugal ou o país demasiado pequeno para a sua obra”. Tanto mais que é um mestre da contradição, sem sínteses, ideia contra ideia, um caminho em vez de outro, um ponto de vista novo que faz tábua rasa dos anteriores que pareciam definitivamente entronizados. Viveu em micro-ziguezagues.

Palme de ouro pelo conjunto da sua carreia em Cannes, dirigiu actores como Piccoli, Malkovich, Deneuve e Mastroianni, pai e filha. Em tudo uma certa ideia da elegância, da contenção. Mesmo em relação à crítica obtusa, sobretudo portuguesa, aos produtores ingratos, à ditadura salazarista (prendeu-o em 1963).

“Os filmes falam por mim”. Obsidiado pelo mistério e o seu contrário, a verdade. Preferia os “factos aos efeitos”, “Gostava de explicar tudo, que o espectador compreendesse tudo”. É impossível, e indesejável, por vezes deve apenas sugerir-se.

Ver também, ainda do ponto de vista francês, este artigo do Le Monde.

Poesia

Comemorou-se há pouco o dia da poesia. Sabemos bem que dedicar um dia a isto e outro àquilo é uma convenção muitas vezes próxima do patético, mas fica a substância, que neste caso é a própria poesia, que diariamente, por necessidade vital, é homenageada aqui na Enfermaria.

Ontem encontrei, em puro e santo acaso, um haiku que servirá para abraçar espiritualmente, mas talvez atabalhoadamente, os bons poetas que generosamente aqui colocam os seus poemas, também para meu deleite. 

Antes de relançar o achado no mundo, confesso-me um admirador sem reservas da forma haiku, que a partir do qualquer coisa ou fenómeno, por mais insignificante que seja, numa enorme economia discursiva, permite entrar num campo mais abrangente, no "todo" ou no "nada", no limite a mesma coisa. Um haiku age como uma espécie de gota de chuva que cai sobre um ramo, provocando um frisson inicial que é rapidamente superado. Em boa verdade, um haiku não transforma nada, mas aumenta a sensação de se estar no mundo profundamente ancorado na vida. E não será esta a finalidade de toda a poesia?

"Tenho um fio de vida

Parece partir-se a cada instante

Mas persiste"