O mal académico

 

Segundo um estudo publicado em finais do ano passado pela mais reputada universidade siberiana actual, a massificação da atribuição de bolsas e de títulos de doutoramento tem vindo a contribuir para uma inelutável decadência do povo português, espécie já não muito abonada no que concerne ao intelecto. Essa decadência tem-se feito sentir de tal maneira que um dos mais renomados professores da dita instituição, o Professor Doutor Fiódor Dostoiévski, autor de O Idiota, incontornável trabalho sobre este flagelo chamado doutoramento, sublinha a importância da leitura para o combate  contra a bestificação provocada pela longa exposição aos pútridos ares académicos. Também vítima de uma pequena dose de estupidez, amenizada pela escrita e por um vício revitalizante pelo livro enquanto objecto transmissor de conhecimento, o doutor Dostoiévski confessa que um dos momentos mais deprimentes da sua vida aconteceu pouco antes de entregar a sua tese de doutoramento, quando o seu orientador o aconselhou a ler menos se quisesse vir a ser um bom universitário.

Se a universidade tem funcionado como sugadoiro cerebral, o que fazer para pôr um fim a esta epidemia? Como terminar com este surto de idiotice? Estas questões conduzem-me ao escritório de uma doutorada portuguesa, exilada permanente num apartamento à beira de uma praia de Tânger. “Os meus problemas surgiram no dia em que o meu orientador me encostou à parede, perguntando-me com uma fúria imensa por que motivo não o procurava tanto quanto os seus outros orientandos.” O que aconteceu após este encontro furtivo com um dos líderes da animalização humana é indescritível mas, para bem da ciência, atrevo-me a prosseguir: “Vivi um martírio: fui obrigada a assistir a todos os colóquios e seminários do orientador, compraram-me um relógio igual ao dele, não me deixaram dormir enquanto não lesse toda a sua obra (por obra entenda-se: tese de doutoramento remastigada ao longo de décadas, de forma a ampliar um curriculum vitae com trabalhos versando sempre o mesmo tema, mas de diferentes perspectivas).” Pergunta-se o leitor: quem obrigava esta doutorada a tão árduas tarefas? “Ameaças veladas, comentários que me feriam de morte. Chegaram a insinuar que não acabaria a tese se não me tornasse amiga pessoal e admiradora dos meus professores.” Depois destas vivências, a doutorada fugiu de Portugal, disse até nunca mais à Universidade de Lisboa, e apanhou um navio para Marrocos, onde hoje se dedica a vender chá de hortelã a turistas. Tendo conseguido sobreviver, dedica-se igualmente a sessões de terapia via telefónica com estudantes de doutoramento em vias de se tornarem macacos. “O que lhes digo é isto: da mesma maneira que as vossas mães vos ensinaram a não falar com estranhos, eu ensino-vos a enxotar assassinos disfarçados de cavalheiros”, sentencia e conclui: “Para acabar com esta praga dos doutoramentos, estou convencida de que o método mais eficaz consistiria na leitura massiva da obra de Shakespeare em todas as faculdades. Despejar toneladas de obras clássicas em cima das faculdades, mediante o auxílio de aviões, poderia de igual modo auxiliar a expurgar estes vermes.

 A solução passa por ler. A doutorada e Dostoiévski coincidem neste ponto. Decidida a pôr à prova este método, iniciei-me na leitura de Platão. Li a obra completa de Platão. Ou da obra publicada em português. Li ao lado de professores, de alunos, de funcionários. Só a visão do livro derrubava professores, mesmo os mais anafados, os instalados num sistema que lhes permitiu acumular carnes e ranço e ignorância. Experimentei recitar Shakespeare e foi vê-los tombar, pálidos, clamando por palha para a desidratação. O método da leitura funciona. Há uma salvação para a humanidade. Acabar com os idiotas académicos não é, no entanto, tarefa a que se possa dedicar o simples mortal. Apenas gente experimentada sobrevive a estas batalhas. Reproduzindo um excerto de O fechar da mente, memória da autoria do mais premiado escritor da comunidade esquimó: “A universidade tem destruído pessoas muito dotadas. Sente-se primeiramente uma leve presunção, uma vaidade enganadora, sintomática de uma doença muito profunda. O esvaziamento cerebral processa-se em pouco mais de um ano. Exposto a seis, sete anos de estupidez, como pode um aluno sobreviver sem mazelas? Não pode. Perdi um filho para a universidade. É o meu desgosto. Refugiei-me num iglu. Não aguentava assistir à derrocada do meu filho, um ser incapaz de enfrentar o mundo real, sempre obcecado com colóquios e papers e notas de rodapé. Comia na cama, rabiscando bibliografias e olhando para papel inútil, papel morto. Um pesadelo.” O objectivo deste texto passava por descobrir e fornecer pistas para a cura de uma doença para qual ainda não existe diagnóstico preciso. Essas pistas foram dadas, agora vou ali fazer um resumo de cem palavras em inglês para enviar para uma publicação com. Peers. Pares. Ai. Também eu?

O sábio chinês e a sua luta contra os presunçosos

Quando esbarrares contra um snobe ou contra um desses presunçosos armados em génios,  arrosta-o e lança-lhe os óculos de sol para longe, de modo a que os teus olhos se fixem nos dele, agarra-o pela gola do casacão vindo de um filme francês dos anos 70 do século passado e abana-o até que a gosma que o cobre se evapore para os céus. Desde que um sábio chinês me contou que esta era a maneira mais eficaz de sugar a presunção  do cidadão inflamado pela fé de que vale mais do que dez tostões furados por chumbada de pressão de ar, não tenho parado de agarrar gente pela gola do sobretudo. Conheci um garoto, incauto leitor desprovido de intenções criativas, que se encontrou sem saber como rodeado por poetas que, encarnando nos mais elevados espíritos artísticos nacionais, citavam Cesariny enquanto lambiam a mortalha e coçavam a lã ensebada que por cima do cérebro nunca deixa de crescer. Fraco de espírito, com a mioleira ainda por solidificar, o rapaz passou, desde esse malfadado choque com os poetas do subterrâneo, a rabiscar afectados versinhos em cadernos que exibe com um regozijo tal que, quem o vir, fica com a sensação de estar perante um bardo em formação. Não fui a tempo de lhe salvar a dignidade, lamento, e por isso ainda hoje me penitencio. O rapaz mudou de ares, diz-se independente, só compra livros de autores sublimes desconhecidos do grande público, arroga a si o direito de não passar cartão a antigos amigos e conhecidos e faz-se acompanhar por gente da sua condição, pela malta dos versinhos e do casaco roto e da barbicha palha de aço no queixo. O exorcismo, as rezas ou o hipnotismo não resultam com esta malandragem sofredora da enfermidade do talento ausente. O indivíduo chega aos cinquenta anos, levando uma carreira de autor de recensões no jornal de referência e tendo já publicado o seu romance da praxe publicado em editora incontornável. Não é possível explicar-lhe, sem uma pancada de chuço na tola, que nada daquilo que fez foi relevante para a arte ou para a cultura do seu país. Transbordando de mania, esse sujeito deita-se à noite acanhado por deitar-se consigo mesmo. “Como é possível eu dormir comigo, alguém tão bom, como é possível?” Casos destes resolvem-se como a natureza pede, com safanões e, em casos mais extremos, com pantufadas na nalga. O sábio chinês revelou-me, após longo silêncio, e não sem grande constrangimento, pois não é agradável para um sábio confessar que teve dificuldade em executar uma empreitada, que o caso mais intrincado com que se defrontou foi o de um varão que, tendo recebido o apodo de “o maior talento da sua geração" por parte de meia dúzia de transgressores de um suplemento cultural, virou megalómano ao ponto de supor que a sua caneta transformava em ouro aquilo em que tocava. Não havia festival literário a que faltasse. Leituras de poesia em bares de malta formidável eram a sua praia. Publicava livros a rodo, livros seus e de amigos, trocava elogios com os amigos que publicava e com os amigos que o enalteciam na imprensa. Marchava com uma ginga ou um meneio de corpo que dava a ideia de que a sua pessoa se transformava progressivamente em poema. O sábio chinês sacudiu-o e não resultou, o presumido insistia em bramir que era o melhor de todos, “e ai de quem diga o contrário”, o sábio chinês deu-lhe com uma barra metálica nas costas e nas pernas e, mesmo sangrando, “o melhor escritor da sua geração” desembrulhava uns rendilhados a lembrarem Luiz Pacheco. O sábio chinês cortou-lhe um dois quatro dedos, uma mão, e ainda o coquete assegurava ser o mais talentoso, o génio dos génios, nem ultrapassável por Camões. Revelou-me o sábio, suando e exibindo umas olheiras cavernosas, que nem com a morte a criatura se livrou da confiança desmesurada em si própria. Após a sua morte, os amigos inventaram um prémio em seu nome e registaram na sua lápide: “Aqui jaz alguém que ombrearia com qualquer um, caso não tivesse sido liquidado.”

O génio e o superficial

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Portugal tem um escritor genial vivo, talvez o seu melhor prosador desde sabe-se lá quando, um escritor daqueles mesmo bons, comparável a, vá lá, Dostoiévski, Faulkner e companhia. Sabemos que nem tudo o que esse escritor escreveu é brilhante. Escrever um livro genial já é tarefa gigante para um animal. O escritor português genial não é obrigado a parar de escrever ou a calar-se só porque é génio ou porque as hienas farejam o palco. O génio faz o que lhe apetece. Até morrer. Ser humano e ser livre implica fazer o que se quer. Que lhe interessam as hienas, aqueles que sentem o cheiro, que possuem nome, carreira mas não obra, que vivem dos amigos, a publicar os amigos, a entrevistar os amigos, a blá blá com os amigos? Que interessam os recensionistas/recensioneiros/recensionadores? Que interesse tem a palha para quem está ao nível dos melhores mortos? “É repetitivo”, argumentam os que mal o leram, que mal leram o que quer que seja. “É enfadonho”, ladram outros, carcomidos pelo tédio mas vaidosos o suficiente para também desejarem um lugar ao sol. Vergamo-nos quando o génio passa ou assim nos deveríamos comportar se fôssemos educados para valorizar aquilo que temos de melhor. Não é assim, não fomos educados para respeitar e admirar os nossos melhores. Ortega y Gasset explicou muito bem a tragédia que representa a ascensão das massas ao poder. Desaparecem as minorias, as elites, passamos a ser governados pelo povo. Coitados de nós, governados por gente igual a nós. Pela senhora da mercearia. Pelo sapateiro. Pelo contabilista. Miseráveis. O sapateiro não aprecia génios. Coitado, o sapateiro faz os melhores sapatos, mas não obras de arte, não este sapateiro de Gasset, este só produz sapatos banais, sapatos à sua imagem. É por aqui que passa o problema. Queremos baixar a bitola. Comparamos Bernardos Santarenos a Shakespeares não apenas por ignorância, também por má-fé, por inveja, por não sermos capazes de nos transcendermos. O Nobel para outro português? Sim, se não for para o génio, se cair na algibeira de um dos nossos, de um normal. “O génio não vende”, sussurram alguns iluminados, vendeu mil e seiscentos exemplares. Que interessa que a crise tenha destruído o mundo? Há trinta anos vendia trinta mil. Agora vende mil. O génio não vende e isso é muito importante para quem nunca vendeu, para quem vende com sorte cem exemplares do seu "trabalho artístico", se a apresentação do livro contar com vinho e leituras animadas num ambiente em que se possa fumar. Questões minúsculas só podem ser relevantes para quem deseja ser relevante. Falar acerca de anjos caídos, muito bem, o debate interessa. Podemos começar a falar daquilo que os génios venderam ao longo dos séculos. Dos génios que não foram publicados em vida. E depois chamamos o director de vendas da FNAC para dar a sua opinião.

A morte do senhor André

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Não entrava na livraria do senhor André desde o fim da licenciatura, quase há uma vida. Quando o visitei pela última vez, senti que não o voltaria a ver. Poderia ter voltado à Lácio (no Campo Grande) sempre que desejasse, ninguém me impediu, fui eu, foi a minha cabeça que me proibiu de regressar a sítios que me prendessem às lembranças das aulas, dos professores e da penúria.

 Os livros que encontrava nas estantes da Lácio não eram difíceis de achar noutro lugar, e os preços não eram convidativos. A impressão que aquele espaço me dava era a de que se tratava de uma biblioteca particular pertencente a um homem que não tinha prazer em vender os seus livros. Frequentava a livraria para conversar com o senhor André. A dada altura, comprei-lhe um livro por quarenta absurdos euros. Vivia com muito pouco e o dinheiro fazia-me falta. Por sugestão do homem, paguei o livro a prestações. Dei tanto dinheiro por um livro que não me interessava só para ter um pretexto para ver mais vezes o senhor André. 

 O ar desconfiado e carrancudo do livreiro assustava muita gente. O senhor André não apreciava imberbes ignorantes e gente que não  manuseasse livros com a delicadeza necessária. “O livro retirado da estante deve regressar ao mesmo lugar”, não raro o ouvi proferir frase parecida. A sua caturrice só afugentava os temerosos. Aqueles que amavam os livros ficavam, resistiam, colavam-se ao homem para escutar as suas palestras. O senhor André perorava sobre os mais diversos assuntos, sempre de forma castiça e humorada. A sua vinda do Brasil num navio carregado de caixotes de livros, o seu labor na Bertrand na Avenida de Roma, os comunistas intransigentes, os existencialistas, os bordéis e as mulheres feias que deveriam andar encapuçadas. Nunca lhe faltava assunto. Mas interessavam-me menos as histórias do que a sua companhia.

 Daqui a uns anos ninguém recordará o senhor André. Aquela magia desapareceu com ele. A sua morte encheu-me de tristeza. A morte dele representa a morte de uma parte idealista do meu passado, uma parte que tanto renegava. A nossa morte começa com a morte dos outros. O mundo não perdoa. Quem me traz de volta aquele dia em que o velhote me apelidou de escritor? As memórias extinguem-se, tornamo-nos pedras duras. Este não é um texto sobre a amizade, mas sobre o fim de tudo aquilo de que gostamos, da incapacidade de conservarmos as lembranças mais doces. Não importa de quem é a culpa. Um dia também eu esquecerei tudo e também por todos serei esquecido.  

 

Poesia diante do espelho da morte

Em torno de algumas ideias de Antonio Gamoneda e de Vergílio Ferreira

                 

La poesía no sería posible – no existiría –

si no supiésemos que vamos a morir.

Antonio Gamoneda, El lugar de la reunión

 

O terror da morte nasce com o balanço do que se perde.

Vergílio Ferreira, Invocação ao meu corpo

 

 

                  É sobejamente conhecida a frase de André Malraux, retirada do romance L’Espoir, na qual o autor francês diz mais ou menos o seguinte: é a morte que transforma a vida em destino. Com efeito, uma vida eterna seria uma vida que constantemente se adiaria, uma vida inconclusa, um perpétuo devir que deixaria em permanente suspensão o significado último dos nossos actos. Apurar as consequências das nossas decisões seria tarefa vã: elas jamais deixariam de se actualizar e de se reproduzir. À sua frente estaria o infinito, a totalidade em potência, um horizonte de expectativas tão amplo que seria legítimo que cada um pensasse a cada momento que a sua vida até então tinha sido apenas preparação para uma nova vida que então começasse. Todos os nossos gestos se esvaziariam sem intenção derradeira que os sancionasse, e a memória seria ferida por cauterizar, ilegível cicatriz. Seria então – e não antes – que o homem estaria verdadeiramente condenado à sua liberdade.

                  É a morte, ou antes, é a consciência que temos de que vamos morrer, que põe a vida em perspectiva. É ela que a circunscreve e lhe dá unidade, e é através dessa consciência que ela adquire sentido, ou seja, que se apreende a si mesma como destino. Em suma, é porque morremos que nos sentimos viver.

Mas entre viver e sentirmo-nos viver há uma brecha que se abre, um espaço intermédio, desconhecido dos animais, por onde o fluxo vital que nos anima se escoa e se projecta para fora de si como uma espécie de excesso ou de saldo da nossa vida. A percepção do excesso que nos constitui é o que nos dá a consciência que temos de nós mesmos, e é através dela que começamos a ex-istir, isto é, a conceber-nos como projecto ontológico que extravasa a mera observância dos processos biológicos que garantem a nossa sobrevivência.

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