As Aventuras do Senhor Lourenço (§25 onirismo)

(cont.)

Os sonhos são a coisa mais pessoal que há, um exclusivo do sonhador. Apesar de Freud, da sua analítica científica, que se preocupou mais, é importante dizê-lo, com o incesto do que com o abandono do Édipo bebé, como se o Ocidente tivesse há muito elaborado uma escala de valores com pouco sentido (o bem e o mal não se jogam na lógica). E Lourenço sonhava abundantemente, tinha sonhos geopolíticos onde invertia as utopias, talvez porque um dia leu Theodor Adorno e percebeu que a história era destrutiva, tal como os homens que produzia, sendo a morte pelo menos tão normal como a vida. Daí sonhar recorrentemente com D. Afonso Henriques, não o herói que todos queremos entronizar, mitificando-o, mas um nobre irascível e arrivista. Com a crueldade do seu tempo totalmente activa e uma veia manipuladora que juntava e separava, consoante as conveniências, os homens-guerra que queria do seu lado quando se tratava de conquistar terreno, e bens, aos mouros, mas desavindos entre si nas pausas entre combates, não fosse o diabo tecê-las e uni-los contra si. Tudo era mais perigoso nessa Idade Média, onde a Igreja fazia de União Europeia e Cristo presidia ao Conselho das Tribos, religiosamente fanáticas e sequiosas de glórias e bens terrenos ao mesmo tempo. A contradição só envergonha os filósofos, alguns filósofos. Outro dos sonhos habituais era a de querer fugir, sem nunca saber se conseguia ou não, a uma horda de machos excitados com pénis erectos à procura do seu cu. Narrativa desconfortável, nunca Lourenço sentira a mínima atracção por homens ou caíra em qualquer rasgo satânico. Talvez tivesse que ver com a relação de mestre-discípulo na antiga Grécia Clássica, talvez ele quisesse um mestre que o inseminasse de sabedoria, daquela que ensina a morrer. Talvez, mas a hermenêutica dos sonhos é infinita, os oráculos que dizem decifrá-los deviam ser sistematicamente ridicularizados, apesar de haver mercado, escravos voluntários que se deixam hipnotizar porque têm medo de ser soberanos (embora gritem aos quatro ventos que querem mais soberania nacional, a independência nacional, os destinos de Portugal nas nossas mãos). O que dizer então de outro sonho repetido, embora menos frequente do que os anteriores, em que Lourenço agarrava relâmpagos com as mãos nuas, aguentando a descarga, e tudo o mais que faz de um relâmpago aquilo que ele é. Primeiro capturava um pequeno, o anunciador da tempestade, depois outro, e outro, e mais um... até ficar exausto, momento em que a tempestade cessava e o céu mostrava, num estranho esplendor, todas as estrelas do firmamento. Mas o que o afligia mais encenava a sua falência fisiológica da cintura para baixo, começava por não sentir os pés, depois a parte inferior das pernas, até chegar à cintura, órgãos sexuais incluídos (que no sonho apalpava freneticamente a procura de uma confirmação, em vão). Logo a seguir à paralisia, havia sempre um bando de vagabundos que o perseguiam, e ele a querer fugir, a arrastar-se, com as mãos a fazerem de remos, remando em terra, por cima de um caminho cheio de pedras lascadas. O bando a aproximar-se, sem que pudesse ver nitidamente nenhuma das caras, mas sentia o cheiro nauseabundo e a crueldade luciferina que os envolvia. “Rema mais depressa!”, dizia para consigo, mãos em sangue, como as de Cristo, a boca cheia de pó, as pernas, inúteis, troncos mortos, arrastadas pela força do resto do corpo. Acordava sempre no momento em que, após uma longa perseguição, lhe caiam em cima e extirpavam, pedaço a pedaço, os membros inferiores. Sem as pernas daninhas ganhava então velocidade e levantava voo, deixando para trás os canibais primitivos. Retirado o pedaço de carne e osso inúteis, Lourenço ficava com uma vida de pássaro, era agora um torso voador. E lá de cima tudo parecia diferente, mais belo e vivo, como quando se intensificam as cores de uma fotografia. Talvez pela primeira vez, sentia-se plenamente feliz.

[repito-me, pode um escritor dizer algo de novo, estabelecer a sua marca pessoal? Dificilmente, até no sexo, acto privado por excelência, o que pensamos é um bem, ou mal, comum. Em rigor, repetimos clichés ad nauseam, tudo está colonizado por infindáveis lugares comuns]

No dia-a-dia, a descrença aprofundava-se, como se estivesse sentado em cima de areia movediça sem poder fugir. Cada vez acreditava menos no papel do professor, em qualquer eficácia pedagógica. Recordava amiúde as palavras de Sócrates no início do Banquete, onde contradiz Agaton sobre a possibilidade da sabedoria passar do mais cheio para o mais vazio. Além disso, longe do senso comum escolar, Lourenço era uma personagem apócrifa, cada vez mais levado à emigração interior. Felizmente, a imprensa sensacionalista tinha-se cansado dele, uma ou outra pequena nota, e pouco mais. O Expresso, cada vez mais sério, ainda lhe quis fazer uma “entrevista de fundo”, Lourenço recusou, argumentado que a sua biografia e pensamento eram muito fastidiosos. Mas na escola continuava a ouvir as boquinhas das storas decrépitas e desmioladas. Joaquim aconselhava-lhe a indiferença, eu, pelo contrário, a confrontação, para não lhe comerem papas na cabeça, ou lhe verem cada vez mais o rabo. “É preciso, disse-lhe, mostrar nervo”. Lourenço escolheu o estilo joaquinino, até que num intervalo grande da manhã, uma segunda-feira de Novembro, quente como se fosse Agosto, respondeu ao “Olha o nosso herói!”, lançado ao vento na sala dos professores velhos, com: “Suas putas e seus paneleiros, têm menos pensamento e moral do que dentes, velhas carcaças acéfalas e insensíveis, egoístas incultos, badamerda para vocês, ide todas, e todos, levar no cu, não com os vossos pénis irrisórios, flácidos e minúsculos, mas com mangueiras de profissionais de pornografia!” Um colega mais militante de si mesmo ainda esboçou o contra-ataque, mas Lourenço calou-o imediatamente, e, dizem, para sempre (reformou-se invocando uma doença ligada a afasias), com: “Se abres a merda da boca esmago-te a cabeça contra a parede!”

As Aventuras do Senhor Lourenço (§24 levar nas orelhas)

(cont.)

– Estás contente? – Perguntou Manuela, mais bela do que nunca, uma pele que só podia ter sido oferecida por Afrodite (em troca de quê?), ao vê-lo cabisbaixo junto à máquina automática do café.

– Não, claro que não. Mas isso importa pouco.

– Sim, sempre quiseste isto, gostas de te amar em mártir, é a maneira que encontraste para esconder os teus fracassos.

– Creio que não, ninguém, nem os masoquistas, gostam de sofrer. A finalidade nunca é o sofrimento, ele pode ser necessário como meio, jamais como fim.

– Não enroles, estou farta de conversa fiada. Pelo que consegui compreender de ti, julgo que és um tremendo anormal. E olha que te amava a sério. No início andei contigo pelo heroísmo, talvez influenciada pelo olhar que as colegas te lançavam. Disse para comigo que tinhas de ser meu, não te ia deixar à estúpida da Joaquina mamalhuda, ou à parvinha seminua do teu grupo, sempre cheia de citações entre os decotes teenager. Depois, consegui ver em ti qualidades que nem sonhas ter, posso não ser muito inteligente, mas tenho uma boa intuição ética (olha o que aprendi contigo, “intuição ética”). Tu és uma boa pessoa, pelo menos és muito melhor do que pensas, darias um óptimo pai, um óptimo avô.

– Não conheces ainda o fogo negro que arde em mim. – Disse Lourenço sem olhar para ela.

– Lá estás tu a forçar a página da desgraça.

– Não, Manuela, recebi isto ainda no útero, e manteve-se indomesticável, faz o que bem lhe apetece.

Faltava dizer ao Lourenço, mas Manuela não tinha nem as palavras nem as ideias certas, que a vida é acrobacia, que por isso se está sempre em risco de cair, atraído pela inata gravidade trágica, sim nós nascemos para a tragédia, é por isso que os primeiros gestos de cultura elaborada de qualquer comunidade, dos semitas ao gregos, passando pelos ingleses isabelinos, procuram reproduzir essa parcela da nossa essência, as primeiras linhas de cultura são sempre sobre o trágico. Ambivalente, Lourenço personificou esse rasgo contra a monotonia do bem e do conforto, mas, simultaneamente, nunca quis ultrapassar os limites, aventurar-se na imensidão, experimentar o abismo. Pelo contrário, Lourenço especializou-se em retiradas.

[bom, não me tomem por um narrador omnisciente, retrato o Lourenço tal como o imagino. Por mais que queiramos, não temos acesso a nenhuma consciência para lá da nossa. Além disso, as palavras que escrevo aqui não são imediatamente portadoras de vida. Por exemplo: tudo o que de magnífico e vital escreveu Hugo von Hofmannsthal se pode sequer aproximar de em Julho de 1929 ter morrido de um ataque cardíaco quando se dirigia para o enterro do seu filho Franz, que se suicidara com um tiro de pistola]

À parte de mim, do Joaquim e da Manuela, todos os professores da escola deixaram de falar com o Lourenço. Alguns ficaram-se pelo silêncio (aquele que dói), mas a maioria adornou o afastamento com impropérios lançados à socapa, facadas linguísticas que não permitiam resposta. Isto não chocava o Lourenço, só confirmava a sua melancolia. Ainda tentou uma resposta interior com um sintagma que viu escrito nas costas de uma cadeira de sala de aulas: “Lambe-me o cu”. Mas depressa se cansou desta táctica pífia, sem confrontar directamente os interlocutores permanece-se no solilóquio autofágico. Para completar a perseguição, lá veio a ordem da Direcção para que fosse ter “com eles” a meio de uma manhã de Exames Nacionais. Depois de entrar, fecharam a porta (mau sinal). A Directora, aquela mesma que tinha engolido o seu esperma, cornucópia inesgotável de humores contraditórios e vestuário “arrojado”, tomou a palavra, a bem dizer mais ninguém falou.

– Afinal, Lourenço, tudo não passou de um grande equívoco, não foi?

– Como assim? – Atreveu-se a perguntar Lourenço.

– Não percebeste a pergunta, queres um desenho? Tu és tanto herói como eu uma amazona.

Lourenço lembrou-se do cheiro intenso da sua vagina húmida, de como o tinha chupado, de ter tido vontade de vomitar quando lhe encostou a cabeça à barriga. Uma angústia muito superior a esta chamada de atenção moral.

– Lourenço, criaste muita perturbação aqui na escola, fomos e somos o centro das atenções, isso não é bom para o clima pedagógico.

– Porquê? – Ah, Lourenço, não se deve pedir explicações às tiradas retóricas.

– Porquê? Ainda perguntas porquê?

– Claro, não percebo a acusação. – Ainda mais Lourenço? Não sabes ficar calado, foste à Direcção para levares nas orelhas, não para um confronto de perspectivas.

– Não percebes?! – gritou a Directora. E continuou, és parvo o quê? Todos os dias a aturar jornalistas, os pais a caem-nos em cima, os colegas desconcertados...

– Não sou parvo, ou pelo menos não tanto quanto isso. Não vejo é razões para este histerismo, nem para o anterior, aliás. Eu só quero que me deixem em paz, percebes, deixem-me em paz! Tu, os colegas e os jornalistas. Deixem-me em paz!  – Virou costas e foi-se embora. E este talvez tenha sido o primeiro verdadeiro acto heróico à escala do Lourenço.

No dia seguinte foi à praia, como sempre a São João da Caparica, e curvou-se, como de costume, perante a beleza de ondas fortes (pouco habituais naquela zona), capazes de limpar todo o desassossego que o consumia. Ficou apenas a vontade de continuar a acelerar o processo, pedindo a algo mais vasto do que ele (uma divindade qualquer) que o apoiasse. A sua distância crónica em relação ao mundo estava mais do que nunca num ponto sem retorno. Mas os deuses são incapazes de assombro, por defeito mais do que por virtude. 

 

Paris – Retour a magenta

À memória de Noel Jesus Leopoldo

Quando N. lhe contou o que o levava ali, a directora da agência de modelos não queria acreditar no que estava a ouvir. N. queria alugar uma modelo com determinadas características para fazer um serviço no hospital. Teria de acompanhar um homem com a vida a prazo, o seu pai, nos seus últimos momentos de vida. A modelo teria de se manter ao lado do doente, que queria morrer com a visão de um rosto feminino que tivesse determinadas características, e quando a droga letal fosse administrada, bastava que se erguesse, o olhasse nos olhos, e sorrisse da forma mais natural possível.

A mulher procurou fazê-lo compreender as dificuldades inerentes àquele trabalho, pois se por um lado as características físicas eram muito restrictivas, por outro, nem todas as pessoas que se enquadrassem naquele perfil teriam o sangue-frio necessário para lidar com uma situação tão melindrosa.

R. ficou a olhar para o homem enquanto este virava costas para ir embora. Depois de um minuto de estupefacção, começou a fazer telefonemas. O primeiro foi para a secretária, a quem pediu o catálogo geral com o portefólio de todas as modelos da empresa. O segundo foi para um psicólogo seu amigo. Não podia mandar uma rapariga qualquer. A circunstância não admitia qualquer falha. Iria colocar todo o seu empenho na prossecução daquela tarefa tão pouco usual.

Na véspera do dia aprazado, N. recebeu um telefonema da agência. Era da própria directora.

Já temos a modelo.

-   Sabia que conseguiria. Mande as fotos, por favor…só o rosto.

A mulher entrou acompanhada de uma enfermeira e apertou a mão aos poucos familiares presentes. Tinha a bata hospitalar vestida, mas irradiava uma beleza carismática. N. apreciou o trabalho da directora. Levou a modelo pela mão e sentou-a junto do pai, que parecia estar a dormir, alheio àquela cena quase teatral em que ele era o protagonista. Depois de muita hesitação, acordou o pai e comunicou-lhe que tudo estava preparado. Olhou o médico, que confirmou com um ligeiro movimento da cabeça, e verificou que a modelo tinha os olhos pregados no chão, como se os resguardasse do sol, aguardando o momento em que a máquina fotográfica disparasse. N. aproximou-se do dispositivo de som e começaram a ouvir-se aplausos na gravação. Era o disco “Amália ao vivo no Olympia”. N. não deixou de pensar no contra-senso daquelas palmas, tendo em conta o contexto, mas percebeu a escolha do pai, pois este havia visto a artista no Olympia na década de 60, no ano daquela gravação. Ele próprio poderá ter contribuído para o aplauso.

A modelo manteve-se quieta e de rosto no chão, como quem se concentra para ouvir um poema. A gravação continuou. N. combinara com o pai que o momento certo seria quando este erguesse o braço. O filho saltou para as faixas pedidas pelo pai e quando se ouviu a artista cantar

Cantando dou brado
E nada me dói
 Se é pois um pecado
Ter amor ao fado
Que Deus me perdoe

um braço tão decidido quanto possível ergueu-se da cama. Sem que houvesse necessidade de alertar a modelo, esta levantou-se com firmeza e aproximou o rosto do homem, mais do que N. acharia possível. O pai abriu os olhos e viu um rosto que parecia ter sido esculpido naquele momento, e uns olhos castanhos e raros, brilhantes e escuros como os de uma sevilhana. As pestanas pareciam um pequeno leque que abria e fechava, acompanhando o ritmo cardíaco. Os olhos quentes e negros arrastavam-no para outro tempo. Deixou-se levar pelo Boulevard Magenta. Michelle. Levado pela mão entre risos e beijos. Um corpo cosido ao seu sob a intermitência de um néon. Um beijo com sabor a Paris. Paris condensada nuns lábios com sabor a Sena. Os traços do rosto não podiam ser igualados por um mestre. O cabelo era escuro, liso e comprido e podia sentir-se o aroma do mel e de frutos exóticos. O homem fixou-se no rosto. Quis erguer o braço mas não conseguiu. Percorreu-lhe os contornos sinuosos com o olhar. O cabelo era igual. Michelle. A pele era imaculada e tinha a textura da seda. A modelo aproximou-se mais dele e deu-lhe a mão. N. ficou siderado. O homem reabriu os olhos e viu aquele rosto belo junto da sua cara. Sentiu o perfume insinuante e uma voz que ecoava cada vez mais longe. Olhou-a no fundo dos olhos quentes e negros. Michelle estava ali com ele, de regresso a Magenta. Paris cabia toda naquele olhar.

A modelo sorriu com doçura e amor, beijando-lhe os lábios com a leveza de uma borboleta. Ele fechou os olhos e não voltou a abri-los.

As Aventuras do Senhor Lourenço (§23 entre Deus e Marx)

(cont.)

Tudo se precipitou, como acontece num ribeiro seco depois de uma forte chuvada. Uma torrente superficial de críticas e desdém chocava constantemente com Lourenço, arrastando-o contra esquinas afiadas. Impossível de parar: “esperem”, “vamos pensar”, “analisem melhor”, “vejam as contradições da notícia”..., dizia Lourenço, mas a loucura geral queria, por tudo e por nada, despedaçá-lo. Um Zé Ninguém tinha subido ao estrelato e agora caía. Bem feito! Justiça ícara ou bode expiatório redentor.

Antes vivia na solidão do anonimato, do “ninguém quer saber”, depois chegou ao estrelato admirativo, agora era apontado por todos os dedos, com e sem unhas de gel, alguns amarelos do cigarro, envelhecidos quase todos (os alunos vivem num magnífico “who cares?” em relação aos adultos), com aquelas rugas de pele cansada e veias salientes, quase a explodir, de um azul mal camuflado. Ainda falava um pouco comigo e com o Joaquim, mas este iconoclasta militante tinha-se subitamente interessado por coisas vagamente holísticas, juntando-se a uma colega viúva, rija, que dava Religião e Moral. Isaltina, era esse o seu nome, quase fora freira, mas um pedreiro que fazia arranjos no convento desvirginou-a, meio à força meio consentido, perto do altar de Nossa Senhora, e ela esteve tão perto de reproduzir o êxtase de Santa Teresa de Ávila que forçou o macho a assumir para o resto dos dias a responsabilidade de dormir com ela. Começou então a sua vida secular de professora e mulher casada, embora sempre com “um pé perto de Deus”, como costumava dizer.

Na época, eu percorria territórios políticos ligados à extrema esquerda, gerindo bolchevicamente uma cozinha comunitária. Todos as manhãs havia uma reunião geral, demorada, para se votar a ementa do dia seguinte, e os impasses e dissensos eram mais do que muitos, às vezes quase se chegava a “vias de facto” entre vegans e vegetarianos ou marxistas geométricos e maoístas moralistas. Na verdade, quase todos tinham uma roda dos alimentos moderada, mas não prescindiam da tenacidade revolucionária, tudo era razão para competirem sobre quem era mais democrata participativo. Quem me conhecia tinha dificuldades em compreender aquele novo estilo de vida, o próprio Lourenço, normalmente incapaz de julgar os outros, esboçava uma admiração crítica e justificava a minha guinada cívica com a crise dos 40 ou um rabo de saia particularmente apetitoso. Mas, como muitos outros, só tinha ido à procura de uma veracidade que me protegesse da dispersão pós-moderna sufocante. Se quiserem, transformei-me provisoriamente num fundamentalista.

– Mas o que é que se passa contigo? – Perguntou-me, logo na manhã de segunda-feira, Lourenço.

– Não se passa nada, o Joaquim é que anda metido em sarilhos.

– Tu estás pior, agora acreditas na verdade política?

– Não é bem isso, retorqui, e tu fazias melhor em preocupar-te com essa de “traidor cobarde”.

– Nunca te disse que era herói, que tinha feito aquilo deliberadamente, sempre fui modesto, não te armes em inquisidor de esgoto.

– Certo, Lourenço, certo, mas podias ter sido mais assertivo a desmentir a liberdade do teu mergulho sobre o badameco do bombista.

– Discutimos isso muitas vezes, pensei que concordávamos numa concatenação de acasos que me fizeram agir sem eu querer.

– Tens razão, desculpa-me, tenho andado tão ocupado, sempre a discutir e votar, e vou ter um Skype daqui a pouco, antecipo os gritos do costume sobre a ementa de amanhã.

– Mas por que razão não largas isso, estás armado em mártir?

– Não, Lourenço, não meu amigo, tu procuras a harmonia indolente no dolce far niente, ou dolce essere niente, eu estou fascinado pela Verdade, quero encontrar uma fórmula que dê sentido a tudo o que faço e penso. Quero sentido, estou farto de absurdos, como a tua história, por exemplo, tu és um absurdo, tudo o que te aconteceu é um absurdo. Virei-me para o neo-marxismo porque ele é uma espécie de religião do texto, semelhante em muitos aspectos às restantes três. Não se pode pôr em causa a Verdade (revelação analítica) de O Capital, e mesmo o Manifesto, com o seu estilo panfletário, está ancorado na Verdade. Pode parecer-te uma regressão dogmática, Lourenço, mas faz-me um bem do caraças acreditar na Verdade. Se não fossem as discussões intermináveis sobre a ementa e a falta de depilação das raparigas, creio que era um homem feliz.

– Mas tu eras todo interpretação, recordo-me de que quando te encontrei citavas frequentemente o “não há factos, apenas interpretações”, de Nietzsche.

Não sabia bem o que responder. Sim, gostava imenso daquela sentença, linha de irmandade com o Joaquim, mas depois fiquei mais perto da sagração incondicional do texto, como quando o encenador e dramaturgo Jorge Silva Melo defende a inquestionabilidade do texto teatral, condição de toda a produção teatral, imperativo estético inviolável, no fundo mais uma forma de bibliomania. Peguei no Joaquim para me defender.

– Lourenço, que diferença vês entre eu procurar a verdade e o Joaquim o divino?

– Não sei se vejo diferenças, não é, aliás, essa a questão. O Joaquim anda entretido com a Isaltina, acho que lhe faz bem, até já não cheira tão mal da boca. Tu meteste-te com fundamentalistas que sonham com uma nova ordem total.

– Sim, respondi. Mas nós queremos emancipar as pessoas, não dar-lhes uma droga espiritual que as faz crer na felicidade de pacotilha.

– Ei! Foste ao baú ideológico buscar essa ideia, não?

– Goza, Lourenço, goza que deves ter muitas razões para achares que és melhor, já reparaste no buraco negro onde está enfiado?

– Sim, sei bem onde estou, mas não conjuro nada com adesões idiotas, morrerei de pé, sem me vender.

– Olha, isso também é de um baú qualquer, e de um pretensiosismo piroso.

E foi assim que quase nos chateamos. Entretanto, talvez Lourenço tivesse razão, hoje já me deixei de verdades e democracias participativas, regressei ao cepticismo e às interpretações, talvez porque tenha encontrado uma colega que faz amor comigo duas vezes por semana, sem discutir as posições, uma em casa dela outra na minha. Sempre à tarde, para não termos de dormir, e acordar, juntos. E é incrível como adoro os múltiplos orgasmos que facilmente ela consegue ter, fechando sempre os olhos e pedindo complacência a Deus, não a Marx. 

As Aventuras do Senhor Lourenço (§22 Lourenço no Correio da Manhã)

(cont.)

[não tenham pena do que vai acontecer ao Lourenço, o trágico, ainda que banal, continua a ser um poderoso antídoto contra as formas de anestesias gerais, o universal bocejo de indiferença em que vivemos]

O trágico enfeitiça, mesmo os sacrificados. Creio que Édipo não trocaria a sua biografia por uma entediante vidinha de heleno bem comportado.

[já o escritor desta história, fiel aos factos, revisitáveis na memória do mundo guardada no Google, tem um receio de morte de não passar de pequeno escritor de novelas, enfeitadas com falsas intensidades e peripécias de cordel, adornos de feira, preenchidas por personagens que dificilmente cumprem o plano de parecerem vivas e autónomas, peças fraquinhas de um relógio acebolado]

Referi algumas vezes que Lourenço tinha qualidades, sem que a avaliação fosse influenciada pela nossa amizade. Objectivamente, ele possuía bons traços de personalidade. Destaco a recusa em lamentar-se, evitando assim “ancilosar-se no seu modo de ser.”

Regressemos à história. Numa manhã de finais de Maio, à ida para a escola, Lourenço passa os olhos pelo Correio da Manhã exposto no quiosque da estação de metro, lendo: “LOURENÇO MENTIU!” Primeiro, pensou num qualquer jogador de futebol ou numa estrela de reality show. Durante umas centenas de metros foi tecendo um puzzle simples com esse título do tablóide mais bem sucedido de Portugal. Chegou mesmo a pensar numa leitura nietzschiana, a contra-pêlo, da indignação (no mundo da comunicação social, indignar continua a ser lucrativo). Só quando se sentou numa carruagem de metro meio vazia explodiu no seu cérebro a possibilidade do “Lourenço” ser ele. O “posso ser eu” encheu o seu corpo de adrenalina, tanta que o coração ameaçou parar antes de se pôr ao trabalho, bombeando um fluxo inabitual de sangue para repor o equilíbrio vital, mas fê-lo atabalhoadamente, excedendo-se bastante, obrigando uma grande parte do sangue a viajar até às extremidades do sistema circulatório, junto à pele, para se arrefecer. Pouca sorte, ficou vermelho como um tomate maduro sem ganhos fisiológicos, o dia quente e húmido, prova da primeira onde de calor do ano, não refez a harmonia térmica.

Na próxima estação, Lourenço saltou do lugar e esticou o passo para chegar o mais depressa possível a um quiosque de jornais. Ia em contra-corrente, como quase sempre na sua vida, chocando e pedindo desculpas. Sempre gentil, apesar da ansiedade. 5 minutos depois comprou um Correio da Manhã, abriu-o e foi à procura da notícia. Estava logo na página 3, uma fotografia enorme de si e um título, “Fomos bem enganados!”, definiam a trama geral da folha, preenchida por texto, muito texto para um tablóide.

Segundo o jornal de faca e alguidar, especializado em desgraças sexuais, vitais e políticas, mistura de estilo vertiginoso e libidinoso, Lourenço atirou-se sobre o terrorista porque tropeçou enquanto fugia do local em pânico. Aliás, segundo uma “fonte idónea”, pertencente ao grupo do Lourenço durante a caminhada pelas linhas do metro, o suposto herói “tremia como varas verdes”, foi necessário animá-lo constantemente. Depois, quando chegaram à estação, ele foi o primeiro a querer fugir dali, mas a aflição tolheu-lhe os movimentos e acabou por se atrasar. Apesar disso, continuava a fonte, lá conseguiu, e uma vez na plataforma foi o “ver se te avias”. Felizmente, “tropeçou em alguém ou em si mesmo e foi aterrar, para bem de todos, em cima do bombista.”

Em hiperventilação, Lourenço procurou no passado factos que desmentissem aquele, ou aquela, merdas. Fê-lo uma e outra vez, mudando de perspectiva e esforçando-se por invocar detalhes redentores. Mas não conseguiu encontrar provas irrefutáveis contra a fonte. Nem as imagens do circuito vídeo interno, que só captaram o mergulho final sobre o bombista, seriam de grande ajuda. Talvez o jornal tivesse razão, como poderia ele, em consciência e liberdade, ser um herói; ele que hesitava por tudo e por nada, ele que nunca teve coragem além da necessária para fazer uns exames académicos, apanhar transportes públicos e ir sozinho à feira do livro; ele que aliava niilismo e conforto; ele que enquanto jogou futebol quis sempre ir à baliza?