dois ou três movimentos em Leopardo e Abstracção 

(13 de novembro de 2021)

 

​​Sabemos já, todos, leitores dos livros e poemas da Tatiana (e ela di-lo dentro e fora deles), que os seus textos são longos, são narrativos. São – cada um dos poemas - um caminho desenhado de um início até um fim, como se o poema  fosse uma espécie de rua pela qual somos levados – levados pela mão e pela chamada de atenção a construções sucessivas, que aparecem, andando, cumulativas e sucessivas - portas e muros, alguns acidentes históricos e prosaicos, janelas, cafés, transeuntes, e muitos, muitos, muitos moradores, discriminados ou pressentidos. Ora, sabemos isso, e isso é de facto confirmado nestes poemas que compõem Leopardo e Abstracção. São 17 poemas longos, e alguns dos títulos revelam logo uma certa tendência stalker e voyeurista da nossa Tatiana: mulheres em sapatos difíceis; a segunda mulher do escritor; o que eu sei da filha de Agamémnon; o mistério dos homens adormecidos.

Já não bastava fixarmo-nos, nesta leitura ou passeio, num calcanhar de mulher com a sua correia por ajustar, e nas suas pernas longas, no seu gesto de “tentativo equilíbrio" no meio do aeroporto de uma metrópole; e depois sermos levados indecorosamente pela poeta a uma visita de cemitério cujo centro se desvia, levando-nos para um canto onde jaz uma mulher com um nome que não o seu; e depois perseguir, perder e regressar para tornar a perseguir uma mulher de camisa suada colada ao corpo por entre a multidão; e ainda nos vemos a ser levados a pairar num plano vagamente contínuo que olha com muita atenção e de muito perto para uma colecção de homens enquanto dormem. Voyeurismo e brincadeira à parte, é claro que estes homens são um pretexto. Um pretexto para por eles e através deles vermos o seu cansaço, a sua vulnerabilidade, como em torno deles “as cidades são imponentes e inteligentes e sem perdão”. 

Com este povoamento de personagens, que às vezes têm nome, outras vezes têm nome grande embora inicial minúscula, como churchill ou tito lívio ou a judite de caravaggio, e muitas, muitas vezes são um “tu” escorregadio, que temos dificuldade em decifrar e acompanhar; como dizia, com este povoamento já estávamos familiarizados em tudo o que a Tatiana tem vindo a publicar. Mas aquilo que esta releitura mais atenta do Leopardo me pediu, e que me deu muito prazer, foi tentar furar os fios condutores e narrativos, por onde a Tatiana tão bem nos acompanha em cada um dos poemas (ou nos leva, talvez, para que a acompanhemos), e que acontecem por entre as personagens e por entre as circunstâncias. Furar, quero dizer, cortar transversalmente este conjunto de 17 poemas, e olhar, contar o número de vezes que se repetem dois ou três movimentos entre imagens e ideias (é aos movimentos que são dados os leopardos) que, vistos assim, aparecem reiterados, procurados, eu diria quase obsessivamente nesta série de poemas. Vou tentar isolar alguns, cortá-los e colá-los. Não é nada original, estou a servir-me de uma ideia que nos aparece sugerida até pela quantidade de momentos em que a imagem do corte ou da lâmina aparecem nestes poemas:

 

“os teus pensamentos têm a violência 
de um fundo de lâminas
cortam tempo dentro como certas cordas” (circunstancial, p.13)

“o trabalho da mais absoluta solidão
dá em cinza dá em nada
e revela o seu lado enganador de lâmina” (sobre a insónia, p.17)

“entraste tu pela tarde cortando
a meio da respiração ofegante
uma sofreguidão de ar
que compõe em partes iguais
aceleração e queda” (cedo ou tarde, p. 20)

“como tudo o que é acidental
algo se incrusta por um golpe cego 
de martelo, violência e tempo
na harmonia indispensável 
de uma peça que a princípio
era aparentemente superficial” (a segunda mulher do escritor, p. 12)

“e eu penso o que é que em ti
se mutilou na destruição do papel” (materiais facilmente inflamáveis, p. 31)

“a rapariga que trabalha sentada à minha frente 
traz nos olhos o espanto de isaac perante a faca” (p. 32)

“o nosso tempo é cortado 
numa série de momentos 
que não têm a articulação de uma narrativa” (p. 32)

Quando primeiro comecei a sublinhar estes momentos do corte, do golpe, e até do acidente, que se repetem, julguei que estava a ler sobre uma certa vontade de interromper o tempo, de te desenvencilhares do peso da mochila da história e das coisas que convivem no que escreves, um pouco como projectas no teu poema sobre a filha de Agamémnon falando da “urgência de um corpo livre do seu enredo”. Depois percebi que é um bocadinho mais fundo do que isso, e se calhar até o seu contrário -  enfim, é complementar e contraditório -, o próprio caudal das coisas que nos cercam e povoam, aparentemente fluido, sugeres, é feito de cacos que ressurgem, e que podem cortar:

 

“(...) objectos
que embora parecendo inofensivos
se podem revelar facilmente letais
a tesoura com que se corta as unhas
a faca da manteiga a fivela do cinto (leçon de tenèbres, p. 44)  

Objectos que embora parecendo inofensivos se podem revelar facilmente letais. Este par de versos parece um alerta para o que de perigoso há por debaixo de tudo, sobretudo da distracção,  mas é também o tempo que é morto aqui, e por isso pareces desconfiar dos objectos, eles matam o tempo raso porque os esgotam nestes objectos que o ocupam e lhe servem de medida. Dizes isto - melhor, claro - no poema:

“o universo é por estes dias tão inóspito
que se pode reduzir muito depressa a objectos” (p.44) 

E sente-se muito, nestes poemas, um tom coleccionista que aparece, que enumera e extravia, acumula, e usa por vezes um dispositivo de quase-lista que parece procurar um efeito de saturação e o quase-quase-extravasamento de um jarro muito cheio de objectos da mesmidade.

“as canetas baratas que falham sempre
e os blocos de notas e o computador
e a caneca do sindicato de jornalistas
e as muitas caixas de chá
e todos os objectos pessoais” (materiais facilmente inflamáveis, p. 32) 

“algumas contas e conchas e papéis
que atafulham algumas gavetas (p. 58) 

“oito caixas de kleenex” (p. 52)

“o mesmo café à mesma hora

(...)

este meio copo de cerveja barata” 

“ (...) alguns objectos de uma dor digna de confiança
os objectos de uma perda com rosto humano
e inventários de pequenos arrependimentos 
coligidos em pequenas molduras em todas as moradas” (p. 49) 

“tu reconheces que os mais inofensivos objectos
aqueles com que levamos a cabo o nosso trabalho
aninham afinal a banalidade de um terror quotidiano” (materiais facilmente inflamáveis, p. 32) 

Não me parece que seja com o alívio de quem se quer desfazer da acumulação na garagem de casa que atiras com estes objectos para as páginas. Parece-me, aliás, que a tua escrita tenta criar mapas possíveis para uma convivência entre estes cacos, ou situações possíveis para, pelo meio deles, percorrer a rua. E sim, chamo aqui cacos já aos objectos do nosso próprio anonimato e da nossa própria perda de tempo; e equivalo-os aos recortes de instantes e de gestos das personagens que guardas, descreves e perdes nos teus poemas; e e equivalo-os aos objectos menos anónimos e do tempo passado e maior que de quando em vez convocas: todos eles aparecem meio que simultâneos e avizinhados, nos teus poemas (o teu gaio júlio césar do último poema do livro, por exemplo, é o de Roma, mas é também o nome do teu fiel relógio de cozinha). Não será por acaso que referes duas vezes, neste livro, o trabalho do museólogo paciente:

“os muitos fragmentos 
de vasos venezianos ou bizantinos 
fragmentados em centenas de cacos 
que uma mão teima em reconstruir 
povoando de remendos a sala 
de um museu desta ilha
dedicado ao escritor” (a mulher do escritor, p.12) 

“os objectos não se compõem
com a facilidade com que o último dos curadores
organiza objectos mínimos nos expositores” (circunstancial, p.13)  

Isto lembra-me uma passagem de que gosto muito, e que de vez em quando digo, por isso já ta devo ter dito, do livro O museu da rendição incondicional, da Dubravka Ugresic, em que alguém, na Alemanha, pergunta: “O que é a arte?”, e alguém responde: “A arte é um esforço de defesa da integridade do mundo, a conexão secreta entre todas as coisas… Só a verdadeira arte pode assumir uma conexão secreta entre a unha do dedo mindinho da minha mulher e o terremoto em Kobe (no Japão)”. Achei graça, por isso, a ter encontrado no teu poema gaio julio cesar os versos “queres muito ser/ alguma espécie de instituição/ do topo da minha manhã/ até à ponta do dedo grande do teu pé” (p. 65). Dedos dos pés, mindinhos ou grandes, parecem pois estar em alta na reconfiguração do mundo, pelo menos por escritoras que tentam desenhar novos mapas instáveis e afectivos, um pouco como nestes teus belíssimos versos: “como por exemplo toda esta secção de um mapa/ que vai de botthege obscure a via panisperna/ e se estilhaça no encaixe entre o ombro e o braço/ onde alguém se esqueceu de tatuar um banco de jardim” (hespéria, p.39).

Mas regressando ao lugar em que te encontro de tentar situar-nos no meio disto tudo, deambulante com super-cola e cinzel, ele tem a sua dose de ternura e de investigação, mas também de angústia. Aliás, uma possível chave para esta leitura pode estar no par de versos da página 56, em que en passant, a meio de um poema, aparece a pergunta:

“como adormecer 
entre um mundo de postais
e livros esquecidos no chão
e em mesas de cabeceira” (p. 56) 

Vou repetir: como adormecer entre um mundo de postais e livros esquecidos no chão e em mesas de cabeceira? É, realmente, um bocado difícil adormecer, Tatiana. A seguir a esta pergunta o poema segue dizendo: “a tua dor assusta-me/ porque não se reconcilia com nada”. Parece haver o temor de não conseguir organizar isto tudo nos expositores ou cuidar-lhe o sentido, arriscando permanecer, na sua beleza, como sugeres no poema leçon de tenèbres, “um apontamento à margem da destruição/ que é capaz de ser em si/ uma espécie de amor/ removida a seta/ a inútil a cegamente leal pressão das mãos tentando em vão reparar as ligações desfeitas” (p. 46).

Por isso ficas acordada, não adormeces. Enfim, “tu”. Tenho estado a alternar entre “a Tatiana” e “tu”, mas é à voz que se assume ou que se pressupõe no centro destes poemas que me refiro, claro. E essa voz atravessa estes 17 poemas, do início ao fim, acordada. Há, aliás, poemas com títulos como sobre a insónia, cedo ou tarde, e alguns sons antes da manhã. As referências ao sono, à insónia, àqueles que se observa a dormir, aos pensamentos que se percorre de noite, à espera pelo descanso, são muitas, seria difícil mencioná-las todas. Não vou fazê-lo. Mas vou dizer que elas, podendo ou não ser literais, parecem-me ser certamente metonímicas. E vou dizer que são acompanhadas, nos poemas, repetidamente - ao ponto de ser quase possível fazer um esquema desenhado -, por dois movimentos: um movimento circular (de ronda, de giro, de círculo, de cercar ou de ser cercada, e com aceleração); e um movimento linear, de espera e de rasgo, em direcção à manhã. 

Sobre o movimento da ronda, uma colagem de versos (e repito, isto são fragmentos esparsos nos poemas do livro que eu colei - heresia -, para sublinhar como ressurgem) poderia ser a seguinte: 

“um cerco rodeado de janelas” (sobre a insónia, p. 16)

“alguma coisa ainda mais rápida do que a sombra
aponta - enlouquecida bússola - para o centro da casa
para o que tem de permanecer de fora do espaço” (sobre a insónia, p. 16) 

“num apartamento de vinte cinco metros quadrados
rodeados por um marulhar de barulhos
por todos os lados e sem que nada os acosse” (o mistério dos homens adormecidos, p. 23) 

“uma urgência que preenche o vazio ao centro” (materiais facilmente inflamáveis, p. 33)

“uma força confiante como a dos leopardos 
rondando as casas do mundo” (materiais facilmente inflamáveis, p.34) 

“a velocidade com que o mundo gira
em direcção ao armagedon” (hespéria, p. 36) 

“daqui a algumas horas ou dias ou meses
acertar-me-à em cheio no centro do torso” (alguns sons antes da manhã, p.42) 

“o mundo fechou-se 
com toda a força dos pulsos
em redor do torso” (materiais mais pesados, p. 57) 

“o girar cada vez mais rápido 
de cada vez mais e mais cor
colando-se a cada minuto” (alguns sons antes da manhã, p. 42) 

“inesperado centro a que
com velocidade desarmante 
se reduziu o universo inteiro” (leçons de tenèbres, p. 44) 

“ele roda no sentido do relógio 
até que se faz chegar ao fim do tempo” (gaio júlio césar, p. 64) 

E sobre o movimento da luz, uma colagem possível incluiria alguns dos mais belos e até esperançados versos do livro:

“a madrugada há de romper de novo 
deixando ver
as paredes caiadas” (cedo ou tarde, p. 20) 

“a luz traz com ela
a promessa do dia ainda novo quando o recomeço é ainda possível” (cedo ou tarde, p. 20) 

“é estelar o seu abandono como um fragmento
de vidro que se ilumina de repente na escuridão do ar” (o mistério dos homens adormecidos, p. 25) 

“mas quando o dia começar 
eu terei fugido e estarei em uilenstende” (materiais facilmente inflamáveis, p.33) 

“e não é ainda esta a perspectiva dos corpos
que atravessam velhos túneis ao romper da manhã
quando a luz vem mais clara e mais clara ao fundo” (materiais facilmente inflamáveis, p. 34) 

“é um bom dia se a tua voz atravessa um continente
e chega com o romper da manhã antes
de o terror do pássaro do outono se lançar
voraz na sua última fala” (notas para uma salvação provisória, p.28) 

“não sinto que tenha autoridade 
para pensar no medo e na luz 
diante dos olhos
na precisa intersecção do medo e da luz” (antonio gamoneda, p. 48) 

“mas é ainda mais cómica a evidência
agora indisputada:
através do nevoeiro 
despenhando-se contra os faróis:
a noite fez-se manhã” (alguns sons antes da manhã, p. 43) 

Nestes fragmentos que estou a cortar, estou a deixar de fora as nomeações e os factos sobre os quais versas, e a concentrar-me nos movimentos que parecem acontecer, por entre eles, por alguém que tenta dar-lhes sentido e que com preocupação e cuidado vela por eles. Dizes tu, no poema materiais mais pesados (p.59):

“é como ser um deus do sono ou da morte 
que se passeie pelas ruas com um pequeno caderno 
onde vai apontando nomes como um delator”  

E em materiais mais inflamáveis descreves a ronda da noite de Rembrandt.  Tornou-se muito nítida para mim uma figura no centro destes poemas que assume o bonito e difícil papel de vigilante, um vigilante insone enquanto o mundo dorme e no entanto gira, provavelmente carregando a pergunta que há pouco sublinhei: “como adormecer?”. (E um à parte, achei graça e pouco inocente que tenhas chamado a este mundo onde não se adormece um “mundo de postais”, como se a colecção que fazemos dele não desse para ser senão lúdica e simulada). Muito surpreendentemente, quase comicamente, como dizes, a manhã acaba por aparecer, é um absurdo, mas também o anúncio de mais uma volta. 

Mas há um pormenor que não é nada pequeno e que está a rondar esta conversa sem que eu o explicite. Se calhar já alguém aqui perguntou: “mas ela não fala do título? o que é isto do leopardo? e a abstracção?".  Pois é, Tatiana, tu pões leopardos e abstracções dentro de um poema. Eles rondam a casa, e rondam todas as casas. Por isso não consigo ver esta figura que vigia de noite e tenta juntar os pedaços como não se pressentindo, ela própria, circundada, ameaçada, seja pelo  movimento imparável do tempo, seja por algum perigo escondido. Leopardos e abstracções rondam a casa. Esta ideia foi roubada a um poema da Hilda Hilst, que citas em epígrafe do livro, e é lata e misteriosa o suficiente para que eu sinta que possa tê-la roçado aqui ao de leve, mas que continua para mim intrigante - os leopardos são difíceis de caçar. Por isso perguntava-te, Tatiana, se queres dizer alguma coisa sobre isto. Antes disso, e de dizeres, tu, tudo que quiseres dizer, e de irmos ler finalmente alguns poemas, sem estarem todos estilhaçados, que isso é que interessa, se calhar líamos o poema da Hilda. O que achas?

Leopardos e abstrações rondam a Casa.
E as mãos, o ato puro pretendendo. Ainda
Que eu soubesse o que tudo vem a ser,
A ideia, a garra, de mim mesma não sei 
A fonte que gerou tais coisas nesta tarde. 
Leopardos e abstrações. Que vêm a ser?
Roxura, ansiedade? Memórias de Qadós,
Soberba e desafio se fazendo ronda
Plúmbeo Qadós diante da luz de Deus?
Se as tardes se fizessem meninice 
Para que eu descansasse. Se as mãos
Fossem as mãos de Agda, eu decerto cavava.
E morrendo, descobria a mim mesma 
Me fazendo leopardo e abstração
Na ociosa crueza desta tarde.

(Hilda Hilst. Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)

Daniel Mendelsohn

Não me lembro bem da primeira vez que ouvi falar de Daniel Mendelsohn. Talvez o livro mais popular dele seja aquele que eu não li, An Odyssey: A Father, A Son and an Epic, que é um livro sobre a relação entre um pai octogenário e cientista, o pai de Daniel Mendelsohn, e o filho, um classicista que ensina em Bard College, em Nova Iorque. Já reformado, o pai resolve ir assistir ao seminário que o filho ensina a estudantes de licenciatura sobre a Odisseia, e ambos vão-se contradizendo ferozmente acerca da interpretação do texto, até que resolvem fazer uma viagem pelo Mediterrâneo em que, talvez um pouco como Telémaco e Ulisses, se descobrem um ao outro.

Não me lembro bem da primeira vez que ouvi falar de Daniel Mendelsohn, mas lembro-me de um dia dar por mim numa sala muito ensolarada com a sua tradução completa de Kavafis na mão. Essa edição é talvez a mais conveniente que conheço do poeta de Alexandria porque inclui todos os poemas, os do cânone, os que Kavafis rejeitou e aqueles poemas inexplicáveis que Kavafis não rejeitou, mas também não incluiu no seu cânone e que são bastante importantes para entender a sua trajectória. Estava eu nessa sala ensolarada, com essa tradução na mão, quando se aproxima um rapaz que conhecia mal e que começa a tagarelar com grande entusiasmo sobre um ensaio que tinha lido de Daniel Mendelsohn na New Yorker, acerca dos romances sobre Alexandre, o Grande, de Mary Renault. Aquela conversa trouxe-me à memória uns verões em Lisboa em que a Assírio & Alvim teve umas promoções desses romances, de que eu li um volume ou outro, achando-os grande entretenimento, e umas aulas de grego com Frederico Lourenço, nas quais ele a mencionara, não me lembro bem a propósito de quê, e tudo isso me fez pensar nuns capítulos de uma monografia sobre Eurípides, lidos à pressa para um teste qualquer de literatura grega, que tinham sido escritos por este tal Daniel Mendelsohn. Então, Kavafis, Eurípides, o discurso de um rapaz tagarela, umas coisas numa vida passada em Lisboa. Mas aquela conversa acabou e eu não tornei a pensar em Daniel Mendelsohn, exceptuando por causa daquele volume da Knopf, com os poemas de Kavafis, mais ou menos omnipresente na minha vida.

            Entretanto, fiquei amiga do rapaz que falava sobre Daniel Mendelsohn e numa visita que me fez, trouxe-me, com renovado entusiasmo tagarela, um livro dele, The Elusive Embrace: Desire and the Riddle of Identity. The Elusive Embrace é o primeiro livro de Daniel Mendelsohn. É um livro de memórias ensaístico em que ele tenta explicar como uma pessoa se torna quem é, falando dele próprio, da relação entre homossexualidade e identidade, da paixão de ler e escrever, de melancolia dos primeiros amores, que por vezes podem dar às pessoas vontade de mudar de cidade, da cultura gay em Nova Iorque, da contradição talvez apenas aparente entre cultivar o caos e ajudar a educar um filho que não o seu. Diria que The Elusive Embrace é um livro magnífico, sobre a extensão interminável de uma vida. Contém a mais bela comparação que conheço entre um objecto de arte da antiguidade e um elemento da cultura contemporânea. A dada altura, Daniel Mendelsohn compara a pose de um diadoumenos a um rapaz, Mike, a endireitar o seu chapéu de basebol:

 

There is a pose in Greek sculpture of the high classical period called diadoumenos: an athlete stands with arms raised, tying a ribbon around his head. At one point in our conversation Mike reached up with both hands to straighten his cap; if you squinted, the comparison wasn’t too much of a stretch.

 

            Gosto muito de estátuas de diadoumenoi. Da antiguidade, não sobreviveu uma completa. Não há então nenhuma que mostre a figura com as mãos a atar a fita, quase todas perderam os braços. Temos de imaginar esse gesto no vazio, a partir do fragmento. A descrição deste momento do rapaz com o boné talvez sugira a ligeireza da prosa de Daniel Mendelsohn, mas é ele o autor de um dos livros que mais me perturbou nos últimos anos: The Lost: A search for six of six million. Um pouco como em An Odyssey, o ponto de partida é a família Mendelsohn. O livro começa por contar a história do avô de Daniel Mendelsohn, sob o signo da intuição que o neto sempre teve de que algum segredo devastador era escondido pela família. Esse segredo acaba por ser revelado com a descoberta de uma série de cartas, crescentemente em tom desesperado, que o tio-avô materno, que vivia em Bolechow, hoje Bolekhiv na Ucrânia, tinha escrito ao avô de Daniel Mendelsohn em 1939, pedindo ajuda para escapar à ocupação Nazi. Os seis que eram parte de seis milhões eram este tio-avô, a sua mulher e as quatro filhas. Durante a Segunda Guerra, a família desapareceu sem deixar rasto. O livro tenta reconstituir o que lhes aconteceu, tenta responder à pergunta: no caos de um horror interminável é possível que alguém desapareça sem deixar qualquer rasto? Queria poder dizer que o livro de Daniel Mendelsohn sugere que não, mas talvez isso seja demasiado optimista. É preciso o cuidado de um descendente com uma inteligência proustiana para tentar contar a história do modo como uma família inteira desaparece durante uma perseguição genocida. Six out of Six Million expõe a dificuldade de reconstituir a narrativa de uma vida quando todas as pessoas que a testemunharam desapareceram. E talvez aqui a educação de Daniel Mendelsohn enquanto classicista não seja inteiramente irrelevante. Os classicistas são, dos filólogos, aqueles que por norma estão mais habituados a trabalhar com vestígios muito fragmentários, com pouca informação. Em certo sentido, é um milagre este livro. Mas a premissa do livro é agora, tristemente, especialmente válida. Quantas pessoas estão a desaparecer sem deixar rasto neste momento da história da Europa, naquele mesmo país onde há apenas alguns anos Daniel Mendelsohn pôde ir para recuperar uma parte da história da sua família? Pensado a partir dessa perspectiva, Six out of Six Million é então não só um relato historiográfico que tenta reconstituir os últimos meses nas histórias das vidas destas seis pessoas, em face do contexto histórico que as obliterou, mas é também um livro sobre um dever de memória enquanto forma de cuidado colectivo. Fala ainda da persistência de um trauma que passa de geração em geração. No melhor dos mundos possível, seria uma narrativa profilática. O horror de imaginar um mundo onde pessoas são trancadas em caves para mais tarde desaparecerem devia ser tão eficiente a criar a nossa mais profunda revolta e repulsa que aquela frase que se lê à entrada de um museu judaico algures em Paris, “nunca mais,” devia mesmo valer para sempre. Mas li Six out of Six Million no auge da pandemia, num contínuo de cinzento e distopia, em que o presidente dos Estados Unidos, então infectado com covid, se fazia desfilar em cortejo pelas ruas de Washington em direcção à Casa Branca, o que inevitavelmente faz pensar em Nero agarrado à harpa enquanto Roma arde. O que fazer perante isto? Tentar ler mais Daniel Mendelsohn, não esperar muito de política, mas votar melhor e tentar fazer a nossa parte. Começar por nós, sem desculpas.

            O livro mais recente de Daniel Mendelsohn, Three Rings: A Tale of Exile, Narrative and Fate, tem uma certa continuidade com Six out of Six Million. Nos capítulos iniciais ele fala um pouco da exaustão que se seguiu ao processo de escrita desse livro. Three Rings é, por um lado, um livro sobre e estruturado por um aspecto da composição da Odisseia, a composição em anel. Este mecanismo é um subterfúgio narrativo que surge nos poemas homéricos, que de alguma forma dá espessura à narrativa principal, em que histórias digressivas interrompem a principal, como por exemplo no episódio da cicatriz de Ulisses. Mas depois de narrado o excurso, a narrativa é retomada no ponto onde tinha parado. Uma volta, como num anel. É também um estudo sobre três intelectuais que se interessaram pela Odisseia ou por digressões, e um pouco sobre a relação da Odisseia com a história da literatura moderna e contemporânea enquanto fonte de inovação e resistência. Ou talvez não seja sobre nada disto, mas sobre três espécies diferentes de exílio, que, no entanto, estão de alguma forma ligadas, começando pelo de Erich Auerbach, forçado a exilar-se com a ascensão dos nazis, em 1936, em Istambul, onde, privado da sua biblioteca, começa a escrever Mimesis, um estudo fundamental na invenção daquilo a que hoje chamamos literatura comparada. Mas aquilo em que Auerbach estava interessado, como herdeiro de Goethe, não era tanto em inventar uma disciplina quanto numa ideia de literatura mais universal, capaz de ligar o espírito humano para lá de quaisquer fronteiras. Mimesis inclui um capítulo que é um famoso estudo do episódio da cicatriz de Ulisses. Daí, Daniel Mendelsohn parte para falar, no capítulo seguinte, de Les Aventures de Télémaque, uma reescrita didáctica da épica homérica feita no século XVIII por François Fénelon, que foi um best-seller no seu tempo, destronado apenas em 1774 por Werther. A obra explora uma lacuna na Odisseia, a das aventuras possivelmente vividas por Telémaco quando em busca do pai. Encerra ainda uma crítica aguda ao reinado de Luís XIV. Télémaque é um livro ferozmente oposto ao autoritarismo. Fénelon acabou por ser enviado para uma espécie de exílio interno, para a remota diocese onde era bispo titular, como castigo pela sua perspectiva anti-autoritária. Télémaque é lido e admirado na Recherche de Proust pela avó do narrador. Daniel Mendelsohn vê neste movimento de digressão em Proust e Fénelon um elo entre as duas obras e comenta: “In Search of Lost Time suggests that a vast series of digressions could themselves form the largest imaginable ring, one that embraces all of human experience.”

            O capítulo final de Three Rings é sobre um exilado muito particular, Sebald, e uma das suas obras mais emblemáticas, Os Anéis de Saturno, em que, ao contrário das digressões homéricas, que segundo Auerbach, iluminavam o percurso das personagens épicas, a digressão do narrador por Suffolk, leva-nos em direcção ao vazio:

 

Like Proust’s digressions and “ways,” Sebald’s meanderings ultimately form a giant ring that ties together many disparate tales and experiences; but if Proust’s ring appears to us as a container, filled with all of human experience, Sebald’s embraces a void: a destination to which, as in some narrative version of Zeno’s paradox, no amount of writing can deliver us.

 

Central em Os Anéis de Saturno é o encontro do narrador, que se assemelha a Sebald, com o tradutor, poeta e ensaísta Michael Hamburger, que escapara de Berlim em criança, um refugiado por causa de Hitler, e que a dado momento descreve a tentativa fútil de reconstituir o passado regressando à casa dos pais em Berlim. Mas o regresso, assim o descreve Hamburger, não lhe permite reconstituir a história e também isso deixa o presente mergulhado em obscuridade. Há um pequena e ténue ligação, mas vital, que Mendelsohn estabelece entre a história da tradução turca do romance de Fénelon, por Yusuf Kamil Pasha, e Auerbach. É na antiga casa de Pasha, que por um gesto de filantropia do dono se convertera num dos edifícios da Faculdade de Letras de Istambul, que Auerbach, no seu exílio, em fuga da Alemanha e dos nazis, acaba a trabalhar no livro que seria Mimesis, onde se contrapõe à obscuridade do episódio bíblico do sacrifício de Abraão, a que Deus mantém sobre as personagens e o seu destino, a narrativa iluminadora da cicatriz de Ulisses, cheia de pormenores de como o herói homérico recebe essa ferida que é a que permite que mais tarde, ao regressar a casa no fim da Odisseia, ele seja reconhecido inequivocamente por Euricleia, a sua velha ama. E talvez haja aqui um contraponto entre a parálise horrorizada das personagens de Sebald e este outro exilado que encontra, depois do terror e do cansaço da fuga, um lugar de onde recomeçar a escrever.

Há nas narrativas de Daniel Mendelsohn, e nos seus ensaios uma ternura paciente, aberta e cândida (vale muito a pena ler um livro como The Bad Boy of Athens, que inclui discussões igualmente eruditas, e igualmente comoventes, sobre coisas aparentemente tão díspares como as tragédias de Eurípides e a importância do Titanic na cultura contemporânea). Há também o lado obsessivo, que é o da busca dos sentidos que unem as coisas, na ausência dos quais a vida colapsa. Não na ausência dos quais, na ausência de uma habilidade de investigar as causas da sua presença ou ausência. Um pouco como Fénelon, Daniel Mendelsohn é um pedagogo, que não é a mesma coisa que um moralista. Há nele uma beleza e uma limpidez de estilo que me comovem verdadeiramente. Esta beleza e limpidez de estilo surgem muito claramente, por exemplo, no ensaio sobre Mary Renault de que o meu amigo me falou em tempos. O ensaio chama-se The American Boy e é sobre a correspondência que Mendelsohn manteve durante anos com a escritora sul-africana Mary Renault, uma correspondência que começa com uma carta de fã que o então adolescente Daniel Mendelsohn lhe envia e termina com uma visita dele em adulto, anos depois da morte da escritora, à África do Sul para conversar um pouco com as pessoas que a conheceram e que sabiam da correspondência entre ambos. A história desta correspondência é também uma história sobre amar alguns livros e sobre como certos livros podem ler os seus leitores, amando-os de volta. É um dos relatos mais comoventes que conheço da formação de um leitor, que é dizer, de como uma pessoa pode ser salva por um livro. O ensaio pode ser lido aqui . Daniel Mendelsohn é um autor discreto e que é há muitos anos ensaísta na New Yorker. Se Wes Anderson fizesse um French Dispatch 2,  gostava muito que Daniel Mendelsohn fosse uma das personagens.  

Detalhe de uma cópia romana do século I, encontrada em Delos, de um diadoumenos . A estátua original era de Policleito e remontaria ao séc. V a.C.

Dois poemas do volume ‘Mesmo o silêncio gera mal-entendidos: antologia 2000-2020’ de Ricardo Domeneck

2016

Os afazeres domésticos



                                    “Há de nascer de novo o micondó — 
                                     belo, imperfeito, no centro do quintal.”
                                                Conceição Lima


É o nosso trabalho dizer agora que hão de
renascer o capim-cidreira, o boldo e a hortelã
para os rins, os fígados, os intestinos da família
morta já pela metade, ainda que se espargira sal
sobre a terra dos quintais tomados pelo agiota,
e o dizer em ritmo propício à canção de ninar.

E que as mãos da vó quebrarão o pescoço
dos frangos caseiros para o pirão, que há de
alimentar por dias as mulheres de resguardo
que ao dar à luz indenizaram a família por velórios,
mesmo que daquelas rugas restem só carpos
e metacarpos brancos de cálcio no jazigo do clã.

E que o vô morto voltará em sonho para ralhar
até a bandeira nacional mudar de cor
com estes desnaturados que não se cansam
de dar desgosto a seus antepassados
que cruzaram oceano não só para a desgraça
trocar de passaporte e vegetação ao fundo.

E é nosso trabalho dizer que os avós sequestrados
d'além mar hão de alforriar-se em nossos corpos
e que os antepassados deste lado do Atlântico
hão-de reaver seus quinhões de terra preta,
e juntos, entre a hortelã, o boldo e o capim-cidreira,
de mão em mão as xícaras da saúde que nos elide.

*

2019

A timidez do linho

Você tem vergonha dos vizinhos
e reclama da finura das cortinas,
nós, aqui nus em plena
tarde na cama à janela,
e explico de novo, meu querido,
que é branco o tecido
porque reflete toda a luz do sol,
tornando impenetrável aos olhos
dos vizinhos que bisbilhotam
mesmo a finura das cortinas,
puídas como nosso lençol,
então sussurro no seu ouvido:
não é bonito
que a própria luz nos esconda?


NB: Os restantes poemas desta série e outros poemas de Ricardo Domeneck podem ser lidos aqui.

José Pedro Moreira, Leituras de 2021

Esta é a lista dos dez livros que mais prazer me deu ler este ano. Não é a lista dos dez livros culturalmente mais significantes ou dos melhores que eu li este ano (o leitor poderá encontrar essas listas noutro lado) – hedonismo é uma boa maneira de uma pessoa se meter em problemas na maioria das situações, leitura é uma das raras actividades em que julgo que esta prática deve ser pelo menos tolerada.

É saudável reconhecer que é praticamente impossível fazer uma lista destas sem cair no ridículo. Tentem escrever um parágrafo a recomendar a leitura do Ana Karenina sem cair em lugares comuns. Eu certamente não consigo e resolverei o problema evitando-o. Estes livros são muito mais inteligentes do que o que quer que tenha a dizer sobre eles, por isso o melhor é não dizer muito. O senhor leitor imagine antes uma vénia silenciosa e veneranda.

 Fiz primeiro uma lista dos vinte livros de que mais gostei de ler este ano. Não foi fácil. Foi mais difícil ainda reduzir a lista a um total de dez. Incluo em baixo os outros dez livros que constavam na lista inicial.

 Incluo também uma lista de alguns livros que saíram em 2021 e que estão no topo da minha pilha de leituras.

 

Os meus dez livros de 2021

 77 Oníricas, John Berryman (trad. de Daniel Jonas)

Concisa, irónica, inventiva, auto-paródica – a poesia de John Berryman é uma das minhas descobertas do ano. E a tradução de Daniel Jonas é soberba: informada, culta, inventiva, uma tradução de poesia por um bom poeta. Cá fica um poema:

 

75

 

Turning it over, considering, like a madman
Henry put forth a book.
No harm resulted from this.
Neither the menstruating        stars (nor man) was moved
at once.
Bare dogs drew closer for a second look

and performed their friendly operations there.
Refreshed, the bark rejoiced.
Seasons went and came.
Leaves fell, but only a few.
Something remarkable about this
unshedding bulky bole-proud blue-green moist

thing made by savage & thoughtful
surviving Henry
began to strike the passers from despair
so that sore on their shoulders old men hoisted
six-foot sons and polished women called
small girls to dream awhile toward the flashing & bursting tree!

 

75

Examinando-o, considerando-o, como um louco
o Henry publicou um livro.
Nenhum mal adveio disso.
Nem as menstruadas   estrelas (nem o homem) se comoveram de súbito.
Cães em pêlo aproximaram-se para ver melhor

e praticarem as suas amigas manobras ali mesmo.
Refrescada, a casca rejubilou.
As estações chegaram e partiram.
As folhas caíram, umas poucas.
Um quê de extraordinário neste
entroncado unido volumoso verdazulado húmido

coiso obra do selvagem & prudente
sobrevivente Henry
começou a espantar os passantes do desespero
tanto que das suas espáduas purulentas os velhos desfraldaram
filhos de metro e oitenta e mulheres polidas chamaram
meninas a um pouco de sonho ante o cintilante & viçoso lenho!

 

 

Anna Karénina, Tolstói

E cá estamos, Anna Karénina. Serei breve. Uma das releituras deste ano. Li-o pela primeira vez quando saiu a tradução de António Pescada (Relógio d’Água), que recomendo. Um dos melhores livros que alguma vez li. E achei-o melhor ainda desta vez. “Li”-o desta vez numa versão audiobook, interpretado por Maggie Gyllenhaal. Ela é excelente. E há uns dias atrás vi o The Lost Daughter (Netflix, 2021), realizado por ela, uma adaptação de um romance de Elena Ferrante. Também muito bom. Mas não tanto quanto o Anna Karénina. E pronto, cá temos o Anna Karénina despachado num parágrafo.

 

A swim in the pond in the rain, George Saunders

Um livro recomendado por um amigo que é professor de Literatura Russa e que sabe o quanto gosto de Dostoiévski, Tólstoi e Tchékhov (Turguéniev não tanto). Este é talvez um dos livros mais difíceis de descrever na lista. O livro inclui um conto de cada um dos mestres russos (Dostoiévski, Tólstoi, Tchékhov e, bem, Turguéniev), cada conto é seguido de um texto ensaístico interpretativo. Aqui é que os problemas começam.

George Saunders é um leitor inteligente e perspicaz que ama estes textos e que os relê há anos, que os conhece de cor, que é capaz de ver coisas que não vemos.

George Saunders é um professor de escrita criativa, que ensina estes textos há anos, que há anos que dialoga com alunos sobre estes textos.

George Saunders é um autor, que há anos que procura soluções práticas para as questões narrativas que enfrenta.

Os ensaios são escritos de todos estes pontos de vista. Mas o leitor atento toma a primazia.

Muitas vezes lemos de maneira apressada. Somos sobranceiros a responder às questões que o texto invoca, por vezes negando a existência da pergunta. George Saunders é o leitor que nos faz voltar atrás e olhar com mais atenção. Que nos interpela com questões como “Que história está a ser contada aqui? Se é esta história que está a ser contada porque é que o escritor fez isto e não aquilo? Não seria muito mais fácil contar esta história de outra maneira? Ou talvez não seja essa a história que esteja a ser contada?”

É sobretudo um exercício de amor partilhado. Do prazer da descoberta de grandes textos e da exegese literária enquanto actividade social. Perdão se isto faz com que o livro pareça um bocado para o académico. É-o apenas no melhor dos sentidos: recordou-me de um seminário de Teoria de Literatura que assisti há mais de uma década atrás. Não interessa o tema, era no fundo um pretexto para um pequeno grupo de estudantes (não éramos mais de meia-dúzia) e a professora lerem grandes textos (Kafka, Goethe, Sófocles, etc.) e depois passar as quatro horas semanais do seminário a falar sobre eles. Esta foi uma das melhores experiências do meu tempo enquanto estudante universitário. Uma aprendizagem alegre, que prosseguia em debates entre cigarros na pausa para café, que fazia a imaginação pulsar rápido, que nos faz pensar em coisas que sempre estiveram presentes mas que não estávamos equipados para ver, ou, se víamos, que não éramos capazes de articular. Senti o mesmo ao ler este livro.

Criminal (série de banda desenhada), Ed Brubaker (argumento), Sean Phillips (ilustração)

O Criminal original (2006-2010) é uma das minhas séries de banda desenhada preferida. Como a descrever? Uma colecção de histórias de submundo do crime que recicla uma série de tropos do género heist. Há o assalto a um banco que corre mal, o carteirista toxicodependente, o rapaz que cresce neste ambiente e que tenta fazer nome, o patriarca violento, etc. Mas a consciência dos códigos do género nunca cai na caricatura, e as histórias que emergem são credíveis e excepcionalmente bem escritas. É consensual que Ed Brubaker se tornou o grande mestre da banda desenhada de crime. A meio do ano consegui comprar todos os números disponíveis da série mais recente (2019-...) com desconto. Aproveitei para reler os volumes originais e outras coisas de Brubaker: Gotham DC (um policial no mundo de Batman), The Fade Out e Fatale. Gotham DC é excelente, os outros dois são bons, mas estão um pouco mais abaixo em termos de qualidade. Criminal é um clássico.

Sabrina (graphic novel), Nick Drnaso

Comprei o Sabrina há um par de anos atrás. Na altura tinha sido o primeiro graphic novel a ser nomeada para o Booker Prize, e foi recebido por um entusiasmo crítico invulgar para um livro de banda desenhada e o autor foi exaltado como um prodígio (tinha 29 anos quando o livro saiu). Li finalmente o livro no início de 2021. Nick Drnaso é um prodígio. Se tivesse de reduzir esta lista a três livros este seria um deles.

Uma jovem está em casa dos pais, a tomar conta do gato. A irmã, Sandra, vem a casa, as duas irmãs conversam, partilham histórias de adolescência, falam sobre passarem férias juntas. Sandra deixa a casa. É a última vez que vê a irmã. Na cena seguinte Calvin, um soldado da Força Aérea, vai esperar o seu amigo Tommy, um jovem introvertido, ao aeroporto. A namorada de Tommy desapareceu há um mês, e Calvin, recentemente divorciado, convida-o para vir para a sua casa. A namorada de Tommy é Sabrina, a irmã de Sandra. Pouco depois descobrimos que Sabrina foi raptada e sofreu um fim violento. E, no entanto, esta não é uma história sobre um crime, mas um estudo sobre como um crime afecta os que são próximos da vítima, como lidam com a culpa de sobreviver à morte de alguém próximo. Torna-se igualmente uma história sobre a experiência de perda no mundo hiper-mediatizado de hoje, quando a notícia da morte se torna viral, e tema de uma série de teorias da conspiração.

Slaughter House-Five (graphic novel), Ryan North e Albert Monteys (a partir do romance de Kurt Vonnegut)

Mais do que “adaptação”, uma reescrita de Slaughter House-Five. Imensamente divertido e trágico. So it goes. Conhecia o trabalho de Ryan North da série da Marvel The Unbeatable Squirrel Girl, que ganhou uma série de prémios há uns anos atrás. Na altura li o primeiro volume e não me disse grande coisa. Mas Slaughter House-Five é tão bom que tenciono dar outra oportunidade a The Unbeatable Squirrel Girl em 2022. 

String Theory , David Foster Wallace

Os ensaios de Foster Wallace sobre ténis. Voltar a jogar ténis foi das melhores coisas que me aconteceu em 2021. Voltei a apaixonar-me pelo jogo, tornei-me membro de um clube local, comecei a jogar pela equipa do clube, e dei por mim a ler bastante sobre ténis. O livro de David Foster Wallace é o melhor livro sobre ténis que já li. É um dos raros casos de um livro sobre ténis que ama o jogo tanto quanto a linguagem, que invoca erudição filosófica e cultura pop para devidamente louvar a minúcia da excelência atlética. O ensaio sobre Federer é lendário (pode ser lido aqui). O meu preferido é o ensaio sobre Michael Joyce, um jogador que nunca entrou no top 50 do circuito ATP, mas que Foster Wallace admira e que acompanhou durante algumas semanas.

O primeiro ensaio do livro é sobre a experiência formativa de Foster Wallace enquanto jogador de ténis. Nas suas palavras, Foster Wallace foi “a near great junior tennis player”. Quando faleceu, os ex-colegas da equipa de liceu juntaram-se e dedicaram os courts onde costumavam treinar em sua memória. Isto nunca falha em me comover.

The Dream of Enlightment: The Rise of Modern Philosophy, Anthony Gottlieb

O segundo volume de uma empresa começada com The Dream of Reason, a criação de uma história da Filosofia Ocidental acessível a um público não especializado. O The Dream of Reason, que cobria o pensamento filosófico desde a Grécia Antiga até ao Renascimento, estava na minha lista dos livros do ano em 2017; The Dream of Enlightment, que começa em Descartes e vai até à Revoliução Francesa, não decepcionou. Resumir as ideias de Descartes, Hobbes, Rousseau, Locke, Espinoza e Hume em narrativas coerentes, elegantes e acessíveis é um feito acessível apenas a uma inteligência excepcionalmente organizada, fazê-lo com sentido de humor é quase um milagre. Aguardo impacientemente a publicação do terceiro volume.

 Tutti Frutti, Marco Mendes

O livro reúne as bandas desenhadas de Marques Mendes publicadas diariamente no Jornal de Notícias, entre os dias 3 de junho e 23 de dezembro de 2018, e ainda as bandas desenhadas rejeitadas. Peças humorísticas, autobiográficas, políticas, de uma enorme beleza.

Wolf Hall, Hillary Mantel

Este livro é fácil de enquadrar: o primeiro livro da trilogia sobre Thomas Cromwell, Wolf Hall segue a carreira de Cromwell durante a queda do seu patrono, o Cardeal Wolsey, e a sua ascensão a figura central na corte de Henrique VIII durante o processo que culminaria com o coroamento de Ana Bolena. Romances históricos que se comprazem com intriga palaciana e detalhe salaz abundam, mas a excelência da prosa de Mantel transcende o que é circunstancial. A maior surpresa do ano. O livro ganhou uma série de prémios e há anos que amigos me andam a recomendá-lo, ainda assim não esperava que fosse tão bom. Nem tão engraçado. Contém alguns dos melhores diálogos que li nos últimos anos. E comecei 2022 a ler o segundo volume da trilogia, Bring up the Bodies.

Os meus outros dez livros de 2021

Livros de 2021 no topo da minha lista de leituras para 2022

Tatiana Faia, Leituras de 2021 (e algumas (re)leituras por vir)

Há nesta lista várias omissões injustas e inexplicáveis até mim, mas tentei falar sobre alguns livros que me marcaram ao longo de 2021. Se tivesse elaborado este balanço noutro dia e olhado para o ano que passou de outro ângulo, outros livros podiam ter sido mencionados. Estas coisas valem o que valem. Quero apenas falar de alguns livros que me interessaram e me inquietaram ou que, por um motivo ou outro, me encheram de alegria.

 

O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir (tradução de Constance Borde e Sheila Malovany-Chevallier, Vintage, 1997). No princípio do ano tive uma daquelas discussões parvas com uma amiga que me dizia insistentemente que não valia a pena ler O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir porque estava datado. Esta conversa acabou da maneira que se está mesmo a ver. Quando lhe perguntei se ela tinha lido o livro ela respondeu que não. Eu fui ler O Segundo Sexo e prometi contar-lhe como corria. Há em O Segundo Sexo momentos de uma agudeza de pensamento, de denúncia da exploração e da opressão a que uma considerável parte da população mundial foi e é submetida (a que nasceu no sexo feminino), que nunca vai ficar datada e não é só pela enumeração sistemática da infelicidade gerada pelo patriarcado a que Beauvoir se dedica com uma lógica difícil de refutar, como por exemplo quando ela descreve as tarefas inúteis em que as raparigas são instruídas numa idade jovem, como varrer o chão diariamente, que só servem para perpetuar a sua opressão, para as estupidificar. Não é possível concordar com tudo o que lemos – como a afirmação de que uma mulher com um casamento infeliz nunca será uma boa mãe (Beauvoir simplesmente não tinha suficiente elementos estatísticos para dizer isto, é uma afirmação puramente anedótica e misógina; alguma desta misoginia fez, claro, escola entre outras feministas: pense-se num livro como Slip-Shod Sybils da igualmente eloquente Germaine Greer). Ainda assim, O Segundo Sexo permanece um livro essencial. Mesmo o que é datado pode ter bastante valor e interesse. Há uma energia na prosa de Beauvoir que é a energia dos visionários e dos vanguardistas.

 

La Corsara. Rittrato di Natalia Ginzburg de Sandra Petrignani (Neri Pozza Editora, 2018). Quando estou na fossa mesmo ponho no Audible Le Piccole Virtù de Natalia Ginzburg lido por Giovanna Mezzogiorno e embora este exercício não me deixe necessariamente de melhor humor, deixa-me sempre de coração ao alto. Acho que há poucos escritores tão bons a descrever pessoas como Natalia Ginzburg. Isto é, tão exímios a encontrar a exacta medida de alegria e melancolia que trazemos connosco e que trama o enredo das nossas vidas, que o explica e o condiciona. Este livro de Sandra Petrignani não é uma biografia exaustiva, é exactamente aquilo que o título diz que é, um retrato. E é um belo retrato. Encontramos Natalia Ginzburg no contexto da sua vida, das amizades que cultivou, das relações familiares e amorosas que a definiram. É ainda, a partir de Ginzburg, um fresco de algumas décadas extraordinárias na história de Itália. É uma vida singular e difícil a de Ginzburg, marcada pela guerra, pela morte trágica e precoce de dois maridos muito amados, por encontros e desencontros com amigos extraordinários. Este retrato não colige só o trágico, mas também momentos inesperados (o breve envolvimento amoroso de Ginzburg com Quasimodo no pós-guerra) e extremamente divertidos, como por exemplo quando Ginzburg resolve começar a escrever teatro e de Elsa Morante só recebe comentários negativos. Sandra Petrignani tem uma tendência a divagar. Esquecemo-nos, por exemplo, ao longo de dezenas de páginas, de Ginzburg para ouvir falar de Calvino, Olivetti, Einaudi ou Pavese. É uma prosa jornalística ágil, atenta, inteligente e que, quando divaga, mesmo longamente, divaga em direcção aos centros de gravidade que definiram a vida intelectual e emocional de Natalia Ginzburg. Um livro para todos os ginzburguianos como nós.  

 

The Foreign Connection: Writings on Poetry, Art and Translation de Jamie McKendrick (Legenda, 2020). É um livro de ensaios curtos, este, cada um deles de uma imensa erudição, cheios de ligações inesperadas e ruminações aguçadas, divertidas, irreverentes (uma passagem típica: “It’s odd to say so of the man who covered the Sistine Chapel ceiling with the history of the world, but the sensibility at work in Michelangelo’s poems is a narrow one.”). Coligem-se aqui então os ensaios (muitos deles em formato revisto) que Jamie McKendrick, poeta e tradutor inglês, foi publicando ao longo dos anos em periódicos. A foreign connection do título é sobretudo à literatura italiana, de Dante a Montale e daí a Bassani, Pavese, Pasolini, chegando a Valerio Magrelli e Antonella Anedda. Encontramos aqui, quase sempre, uma clareza necessária e de repente inesperadamente óbvia, como quando se defende que a tradução é uma forma de activismo literário. Outros textos só podiam ter sido escritos por um poeta, como aquele em que McKendrick especula que música exactamente é aquela que se escuta no famoso poema de Kaváfis, “O Deus Abandona António” e daí se tece uma ligação que vai de Shakespeare à música que em criança, em Liverpool, Kaváfis deve muitas vezes ter escutado nas ruas. Alguns ensaios são uma introdução à poesia inglesa escrita pela geração a que McKendrick pertence (Hofmann e O’Donoghue), outros levam o leitor através do mapa da poesia irlandesa (Heaney, Paulin, Muldoon) ou americana (Dickinson, Crane, Bishop). Muitas vezes a pintura e a literatura cruzam-se, quando se discute, por exemplo, o Dante de Botticelli ou os elos que ligam Catulo a Dante e Ticiano. Outras vezes resgatam-se ligações inesperadas entre pintores canónicos e obscuros, ou entre quadros emblemáticos e menores. Discute-se o que as obras de grandes pintores italianos, ingleses e indianos fazem a quem passa muito tempo a olhar para elas. Predilecções pessoais cruzam-se com autores e artistas marcantes nestes ensaios que nos lembram da necessidade de nos rodearmos de certos poemas, de certas imagens, de certas ideias, para que o nosso mundo se mantenha fértil e belo.

 

 

Like de A.E. Stallings (Farrar, Straus and Giroux, 2018). Penso que A.E. Stallings é uma das poetas mais interessantes a escrever hoje. Stallings é uma americana casada com um jornalista grego, há muitos anos radicada em Atenas. As suas crónicas no Times Literary Supplement sobre seja o que for são sempre uma grande alegria de ler. A sua poesia coloca-a na mesma família poética de Louise Gluck, Anne Carson e Alice Oswald. Os seus poemas são caracterizados por um grande virtuosismo formal que lembra Auden e aponta para a sua educação de classicista. Mas a matéria dos poemas, para lá da sua cuidada roupagem formal, são as injustiças que vamos deixando de estranhar, coisas domésticas, menores, quotidianas, vistas muitas vezes com grande sentido de humor e ironia (o like que dá título ao livro é o do Facebook, o primeiro verso do poema “Like, the Sestina:” “Now we’re all “friends,” there is no love but Like” – n.b. desde que o livro saiu, o Facebook acrescentou o botão do amo, o que evidentemente resolve tudo). O seu virtuosismo formal atribui uma dignidade acutilante àquilo que seria banal e insignificante (como o brinquedo de um filho que se perde, ou os objectos de que as pessoas se servem em situações temporárias e que fazem o leitor pensar nos objectos que os refugiados carregam consigo, com grande sacrifício, até às costas da Grécia). O cuidado formal que A.E. Stallings investe nos poemas, a métrica, a rima, o retomar de formas fixas, podem ajudar a revestir o que é quotidiano do poético, mas não é retórica isso. Antes aquela coisa difícil que só os poetas a sério conseguem fazer, de revelar o lado de epifania e transcendência das coisas mais banais quando vistas à luz de uma certa linguagem. Veja-se isso num poema sobre uma coruja vista na ilha de Spetses: “It’s not what we see, but what sees us/ Makes us who we are./ Do you remember years ago on Spetses,/ Under the evening star…/ We strolled along the sea road/ And spied a little owl/ Less a bird/ Than a small clay jar/ Balanced implausibly on an olive branch…/ Then she swivelled the orbit of her gaze upon us/ Like the Cyclops eye-beam of a lighthouse.”

Um outro poema de A. E. Stallings pode ser lido em tradução aqui.

 

Dora Bruder de Patrick Modiano (Folio Gallimard, 1999). No final da década de 80, lemos numa pequena nota introdutória, o narrador de Dora Bruder encontrou num velho jornal, Paris-Soir, datado de 31 de Dezembro de 1941, um pequeno anúncio sobre o desaparecimento de uma rapariga de 15 anos, Dora Bruder. Em Dezembro de 1941 Paris está sob ocupação nazi e Dora Bruder é judia. Dora Bruder tem coisas em comum com o narrador, de ascendência judaica, e com o pai do narrador, que pode ou não ter-se cruzado com Dora Bruder na altura do seu desaparecimento. Há depois o elo perturbador entre a Paris do passado e do presente: Dora Bruder e o narrador têm em comum o mesmo quarteirão de Paris, o Boulevard Ornano, onde ambos cresceram. Podia dizer-se que esta novela é uma espécie de conto policial, sobre a obsessão do narrador com Dora Bruder. Ou podemos especular que esta novela é ao mesmo tempo um comentário sobre a permanência fantasmagórica das grandes abstracções históricas sobre a história dos indivíduos, vista aqui como algo que os continua a obliterar ainda no presente, muito depois do seu desaparecimento. O desaparecimento inexplicado e inexplicável de Dora Bruder, por um lado, é uma forma de resistir a uma ideia que domina muita da literatura recente sobre o holocausto: a de que é possível extrair algum sentido deste evento para algum efeito de consolação, numa imposição perversa de um vago mecanismo de compensação emocional e moral que diz mais da forma como o lado mediocremente transacional do capitalismo invadiu certas estruturas do nosso pensamento ético do que de facto compensa ou explica alguma coisa. Como podemos nós querer dizer, há um sentido para isto, para a obliteração sistemática de pessoas como nós? Por outro lado, o inexplicável e o pouco sentido que podemos fazer dele são na maturidade da escrita de Patrick Modiano o que a ironia e a sátira foram nos seus primeiros romances (nomeadamente em La Place de L’ Etoile, uma obra que, no seu tom de sátira cultural e histórica, tem muitas coisas em comum com os primeiros romances de um escritor da mesma geração que ele, António Lobo Antunes). Ao excesso desse romancista jovem e polémico, brilhante e com um desejo extremo de se tornar visível, que satirizou irrepreensivelmente a hipocrisia da sociedade e dos intelectuais franceses em relação ao holocausto, opõe-se esta narrativa concisa, quase com a intensidade despojada de um film noir centrado em certos bairros de Paris, que é sobre o modo como a realidade às vezes se mistura perigosa e tristemente com a ficção. Lembra-nos que não podemos ficar demasiado acomodados com o lado sórdido e intolerável da história.

 

Três Cliques à Esquerda de Katerina Gógou seguido de Cancro de Sean Bonney (Barco Bêbado, Novembro de 2020, tradução de José Luís Costa e Miguel Cardoso). Escrevi sobre este livro aqui.

 

The Murder of Regilla: A Case of Domestic Violence in Antiquity de Sarah B. Pomeroy (Harvard University Press, 2007). No ano de 160 d.C., ou pouco depois, um romano chamado Bradua levou a tribunal um grego chamado Herodes Ático. Esse Herodes Ático foi no seu tempo um famoso milionário, professor de dois imperadores romanos do período antonino, Marco Aurélio e Lúcio Vero. Foi ele quem construiu em Atenas o teatro que tem o seu nome e onde ainda hoje é possível assistir a concertos e outros espetáculos na encosta situada a sudeste da Acrópole, um espaço que amo profundamente, de um amor que ficou um pouco estragado com a leitura deste livro. A acusação que Bradua faz contra Herodes Ático é a de que Herodes Ático tinha assassinado a própria esposa, Regila, que era irmã de Bradua e que se encontrava à data no oitavo mês de gravidez, à espera de um filho de Herodes. The Murder of Regilla é um livro que tenta reconstituir vários aspectos do mundo clássico que se encontram pouco documentados ou que são por norma menos estudados e por isso tendem a ser menos objecto de escrita de divulgação por parte de classicistas (Sarah B. Pomeroy, de resto, é autora de um outro estudo importante, e bastante acessível a não especialistas, sobre a vida das mulheres na antiguidade, Goddesses, Whores, Wives and Slaves: Women in Classical Antiquity, originalmente publicado em 1975): a vida de gregos poderosos na corte de imperadores romanos, a vida quotidiana de mulheres romanas na Grécia, que é um aspecto absolutamente singular da vida de Regila e as consequências (ou falta delas) do feminicídio na antiguidade. Tudo isto nos faz pensar sobre questões de poder, colonialismo e violência de género no presente. A Antiguidade é sempre um mapa para isso.

 

The Europeans: Three Lives and the Making of Cosmopolitan Europe de Orlando Figes (Allen Lane, 2019). Não parece, mas este é um livro sobre comboios, ou melhor, é um livro sobre o triângulo amoroso entre Turgueniev, a cantora de ópera Pauline Viardot e o marido dela, Louis Viardot. Mas é sobretudo um livro sobre a relação entre comboios, ópera e as paixões de um século, o XIX. Orlando Figes escreve aqui sobre as origens do mundo contemporâneo e das formas como nos fomos tornando consumidores de cultura, no melhor sentido desta expressão que é vagamente infeliz. Pelo meio, há um retrato inesquecível do jovem Turgueniev enquanto empregado de escritório, cuja ingrata função era registar e garantir que eram cumpridas as sentenças de prisioneiros condenados à pena capital (Turgueniev alterava-as frequentemente para penas bem mais leves). É também um livro sobre a vida imensamente criativa, e imensamente esquecida, de Pauline Viardot e dos pintores, escritores e compositores que orbitaram em redor deste triângulo. Enfim, o retrato de um século num momento de viragem, bem escrito e bem documentado, imensamente bom de ler.

 

Duas antologias de poesia portuguesa: Uma Antologia Dialogante da Poesia Portuguesa, editada por Rosa Maria Martelo (Assírio & Alvim, 2020) e Já Não Dá Para Ser Moderno: VI Poetas Portugueses de Agora editada por Ricardo Marques (Flan de Tal, Janeiro de 2021). Nuno Brito escreveu sobre a antologia de Rosa Maria Martelo aqui. De alguma forma são duas antologias sobre diálogos que poetas estabelecem entre si. Os diálogos entre poemas que Rosa Maria Martelo antologia são deliberados e convergem, parece-me, para uma breve história fascinante da poesia portuguesa, sobretudo contemporânea. Uma introdução lúdica, bem pensada e extremamente bela a alguns dos nossos poetas, por assim dizer, mais canónicos, visto de uma perspectiva comparada. Já Não Dá Para Ser Moderno: VI Poetas Portugueses de Agora sendo sobre o diálogo que se estabelece a partir de um traço que une os seis poetas aqui agrupados, o facto de que a sua poesia não ser uma de reacção a poetas anteriores, o que segundo o editor os singulariza, acaba por discutir o que se pode pensar como originalidade entre poetas a escrever na segunda década do presente século. É uma antologia que pensa, a meu ver, a marginalidade de um cânone em formação e a originalidade vanguardista dos poetas que agrupa. Concorde-se ou discorde-se com a tese do editor, é um objecto que faz um balanço útil e relevante da última década e que traz à baila uma característica da poesia contemporânea portuguesa de que pouco se tem falado e de que devíamos falar mais – o sentido de humor de certos poetas.

 

Três livros de poesia portuguesa que me acompanharam em 2021: As Orelhas de Karenin poemas de Rita Taborda Duarte, desenhos de Pedro Proença (Abysmo, 2019), Tojo: Poemas Escolhidos de Miguel-Manso (Relógio d’Água, 2013) e Atirar para o Torto de Margarida Vale de Gato (Tinta da China, 2021). Podia-se falar destes livros em conjunto a partir de um aspecto que Pedro Mexia define, no seu breve texto introdutório ao livro de Margarida Vale de Gato, como a prática de um “formalismo informal” (de um modo geral mais visível ao nível do cuidado com a linguagem do que do retomar de certas formas poéticas fixas). A outra coisa que os une é um sentido de humor inusitado, irreverente, de uma imensa inteligência verbal que expande em muito a nossa percepção daquilo que a linguagem pode fazer. Esta expansão é por vezes lúdica e concentrada. No caso de Rita Taborda Duarte, veja-se a este propósito “os resumos” de poemas em As Orelhas de Karenin, que por vezes brincam com a história da poesia contemporânea portuguesa e releem, às vezes parodicamente, às vezes pragmaticamente, os poemas mais extensos do livro. Ou assoma, em Miguel-Manso, na escolha de palavras inusitadas ou em desuso, que evidenciam por vezes um interesse quase académico na história do português enquanto língua, mas que se tornam centrais aos interiores cuidadosamente construídos pelo poeta, onde por vezes se entrevê a sua educação de pintor. Em Margarida Vale de Gato há uma atenção à polissemia de certos conceitos (e.g. elegia, história, prazer) que serve de instrumento a um comentário histórico e social lúcido e necessário, irónico e bastantes vezes (auto-)paródico (estou a pensar, por exemplo, no jogo entre título e poema em “A história foi enormemente exagerada,” numa composição em que a narradora erra de florista em florista num 25 de Abril em busca dessa flor que não se encontra em lado nenhum).

 

Passion Simple de Annie Ernaux (Gallimard, 1991). É um livro autobiográfico sobre uma paixão que se podia descrever como tóxica (obsessiva, desigual, quase meramente física) entre um homem casado e uma mulher divorciada que podia ser Annie Ernaux, mas, como sucede com a escrita biográfica desta autora, que se caracteriza por uma mistura de escrutínio pessoal e do tipo de impessoalidade que converte a sua expressão narrativa na voz de uma memória colectiva (na qual o individual se dissolve no histórico e vice-versa, o que é a característica marcante de um dos seus principais livros, Os Anos), esta mulher podia ser qualquer mulher, podia ser qualquer pessoa num estado de paixão e atracção sexual cegos e é justamente isso de que este livro é crónica, numa suspensão de juízos que é um ensaio atento sobre um estado mental a que, com sorte e azar, de vez em quando ninguém escapa. De um modo muito menos óbvio, um pouco mais oblíquo, é um livro sobre a relação entre a escrita e esse estado de paixão absoluta. A esse propósito, vale a pena deixar aqui um excerto da primeira página.

 

Cet été, j'ai regardé pour la première fois un film classé X à la télévision, sur Canal +. Mon poste n’a pas de décodeur, les images sur l’écran étaient floues, les paroles remplacées par un bruitage étrange, grésillements, clapotis, une sorte d'autre langage, doux et ininterrompu. On distinguait une silhouette de femme en guêpière, avec des bas, un homme. L’histoire était incompréhensible et on ne pouvait prévoir quoi que ce soit, des gestes ou des actions. L’homme s’est approché de la femme. Il y a eu un gros plan, le sexe de la femme est apparu, bien visible dans les scintillements de l‘écran, puis le sexe de l’homme, en érection, qui s’est glissé dans celui de la femme. Pendant un temps très long, le va-et-vient des deux sexes a été montré sous plusieurs angles. La queue est réapparue, entre la main de l’homme, et le sperme s'est répandu sur le ventre de la femme. On s’habitue certainement à cette vision, la première fois est bouleversante. Des siècles et des siècles, des centaines de générations et c’est maintenant, seulement, qu’on peut voir cela, un sexe de femme et un sexe d’homme s’unissant, le sperme – ce qu'on ne pouvait regarder sans presque mourir devenu aussi facile à voir qu’un serrement de mains.

 

Il m’a semblé que l’écriture devrait tendre à cela, cette impression que provoque la scène de l’acte sexuel, cette angoisse et cette stupeur, une suspension du jugement moral.

 


Queria terminar com uma nota sobre livros que não mencionei no texto principal, porque ainda não os li ou não os reli ou porque conto escrever sobre eles mais demoradamente ao longo de 2022, mas que me parecem de assinalar por um motivo ou outro.

A Lição do Sonâmbulo de Frederico Pedreira (Companhia das Ilhas, 2020), que foi distinguido com o Prémio União Europeia de Literatura de 2021 e cuja recepção crítica foi, a meu ver, inexplicavelmente omissa: não há assim tantos romancistas distinguidos com um prémio internacional na geração de romancistas portugueses a que Frederico Pedreira pertence (e são escassos até ver os romancistas portugueses nascidos na década de 80). Por outro lado, Frederico Pedreira tem um percurso enquanto tradutor, ensaísta, poeta e romancista que, de um modo mais geral, merece destaque e atenção e parece-me coisa de uma vileza incompetente e triste este tipo de menosprezo crítico por omissão preguiçosa ou facciosa.  

 

A Varanda de Ricardo Marques (Companhia das Ilhas, 2021), por motivos semelhantes ao do romance de Frederico Pedreira menos o prémio. É uma breve novela ensaística sobre a relação entre espaço (mental, físico), cultura (sobretudo literária mas também cinematográfica) e confinamento, um livro em tom conversacional que encerra uma reflexão mais profunda sobre o modo como estamos a viver agora e, regressados ao normal, o que pede mudança, revisão, rejeição de velhos padrões. É um livro que entra em diálogo com outro que discutimos aqui, A Torção dos Sentidos de João Pedro Cachopo, recenseado para a Enfermaria por Victor Gonçalves.

 

Dois livros editados no Brasil, mas acessíveis em Portugal, via encomenda pela internet ou Livraria da Travessa: São Miguel da Desorientação de Miguel Martins (Macondo, Dezembro de 2020), porque Miguel Martins é um dos grandes poetas de língua portuguesa, ponto final parágrafo, dogmaticamente e com imensa gratidão sempre que é possível lê-lo, e o mesmo vale para Mesmo o silêncio gera mal-entendidos: antologia 2000-2020 de Ricardo Domeneck (Garupa, 2021), exactamente pelos mesmos motivos. Alguns poemas desta antologia de RD podem ser lidos aqui.

 

Ventos Borrascosos de Fernando Guerreiro (100 Cabeças, 2019) é outro livro de poemas que segue sendo em geral ignorado pela crítica que escreve em jornais, coisa que para mim é motivo de perplexidade, preocupação e, de um modo geral, sinal do marasmo que vai caracterizando boa parte do que se escreve sobre livros em jornais portugueses e que mantemos o mau hábito de dignificar com o epíteto, convencional e em certos casos puramente ficcional, de crítica literária.

 

Pessoa: An Experimental Life de Richard Zenith (Allen Lane, 2021). Indispensável, incontornável, etc., sem ponta de ironia na enumeração dos ins-todos. Um livro a ser celebrado. Edição portuguesa para breve, diz-se.

 

Fernando Pessoa e Outros Fingidores de Maria Irene Ramalho (Tinta da China, 2021). Se por mais nada (e há, no entanto, bastante mais) porque coloca de novo em circulação e de modo facilmente acessível um dos mais belos ensaios que alguém alguma vez escreveu sobre um dos principais heterónimos pessoanos, “A doença do poeta,” a propósito de alguns dos poemas de “O Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro. 

 

Poemas de António Franco Alexandre é a reedição do ano, o que é quase desnecessário mencionar. No entanto, durante uns quantos meses, irei garantidamente continuar a alimentar esperanças pouco razoáveis em relação ao futuro do mercado editorial português, que me pareceu de um potencial digno de celebrações líricas infinitas assim que aquela gloriosa capa azul começou a aparecer nas minhas timelines das redes sociais.

Memories of Asia Minor in Contemporary Greek Culture: An Itinerary de Kristina Gedgaudaitė (Palgrave MacMillan, 2021). Um livro que quero muito ler. Em 1922 a Grécia procedeu a uma troca terrível de populações com a Turquia e tornou-se, pela primeira vez na sua história contemporânea, um país de refugiados. Os gregos que viveram durante séculos na Ásia Menor tiveram de recomeçar a sua vida noutro país, supostamente o seu, exceptuando que não viviam lá há seculos. Que memória fica deste evento histórico, deste lugar, deste corte, nas gerações que vêm a seguir? Este livro é um itinerário para essas memórias. Desconfio que este é também um livro muito necessário não só para entender a Grécia de hoje, mas sobre a relação entre trauma, violência histórica, identidade e persistência da memória.

WhatsApp p/Bitches de Ana C. Joaquim (Douda Correria e Poesia Incompleta, 2021) porque é um livro belo, vivaz e irrequieto, que, com riso mas sem catequismos ou agendas, questiona convenções e limites – sociais, emocionais e daquilo que achamos que é linguagem poética (escrito em português-brasileiro do WhatsApp). A edição é também belíssima.