O livro de Jón e uma Língua que não era a sua

É um livro, mas são cartas, mais precisamente 28, escritas por Jón, personagem fictícia e real, à sua mulher Þórunn. Ambos separados por uma ilha, ela no norte, ele no sul, onde se refugiou numa gruta após ser acusado de assassinar o abade que era seu superior e simultaneamente marido da mulher com quem veio a casar. Jón, o pastor sem congregação perseguido por obscuros rumores e que se diz ter realizado um milagre ao desviar um rio de lava, é ainda um desconhecido que chega com o seu irmão a um local estranho, um homem que passa a ser visto com mais suspeita do que aquela que lhe mereceria apenas a deslocação para terras mais meridionais devido às suas ideias, às melhorias que introduz na gruta e nas terras que pertencem por direito à esposa e, sobretudo, aos seus planos optimistas para uma nova Islândia livre do jugo e do monopólio comercial dos invasores dinamarqueses, tema recorrente na literatura histórica islandesa, onde o veio nacionalista se funde com o orgulho de um povo. Rumores, ideias, planos: são estes últimos aquilo que mais partilha com Skúli, seu frequente visitante, também ele – como muitos neste livro – um homem de carne e osso antes de o ser no papel, o meirinho geral que deseja reinventar a Islândia e torná-la um país independente e exportador dos mais variados bens.

                  O livro de Jón é, na sua língua, um romance sobre Jón, e se o último é o mais irmão à originalidade que lhe compõe o título, o primeiro não lhe será menos fiel, pois este é um livro sobre e de Jón: ele é o narrador presente, o autor das cartas, é ele quem nos descreve a Islândia, os episódios bizarros, o clima, as viagens, as suas frustrações, desejos, crenças, ideias filosóficas, desilusões, enquanto somos leitores e, simultaneamente, Þórunn, essa mulher amada e abandonada num período de angústia, num país em que – no ano maldito de 1755 – a terra treme e a lava corre em rios.

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A escrita de Jón, que é, por sua vez, também ele Ófeigur Sigurðsson, é um misto de crença nas ideologias e na religião transmitida de geração em geração e das luzes que se fazem sentir na Europa, tardiamente chegadas a uma ilha remota nos confins do mundo habitável; Jón não esconde essa dualidade na sua escrita, nas cartas que envia, feitas de frases longas, onde se usa e abusa da /barra/, composto por afirmações e interrogações longas, repletas de referências culturais islandesas e europeias que tornam difícil a vida ao tradutor de um livro que, com poucos anos de impressão, têm na linguagem o peso de mais de três séculos e a distância de um mar que o separa de um país marginal mas unido ao continente que ambos partilham, tornando o seu trabalho pesaroso, extenuante, envolvente, duros de meses sentados a secretárias dolorosas.

                  Felizmente, para o leitor português, O Livro de Jón será bem mais fácil e celeremente tragado em toda a sua beleza linguística e sumarento conteúdo e, certamente, lido em peças de mobiliário que unirão o conforto da leitura ao das costas…

No entanto...

No entanto, as coisas não são assim tão simples. As promessas velozes varrem o planeta, sentimentos etéreos galopam na rede, beijos e abraços inconclusos incluídos, uma grande envergadura de sorrisos e excertos de poemas levam a nossa icárica curiosidade até bem perto do céu, destruição garantida, a saudade prejudica seriamente a saúde, tempus fugit, também para ti, meu caro, também para ti, o meu sofrimento é verde, verde vivo, e o teu tem as cores castigadas pelo incomparável revés, a vida é tudo isto (e tudo aquilo), temos demasiados amigos e um coração do tamanho de um punho fechado pela suspeita, cerca de 750 centímetros cúbicos de esmero, realce e burocracia; temos Copacabana e Martigny, não te esqueças, e fome de Vietname e os pulmões enchem-se de ar quente só para podermos sobrevoar a Capadócia das sextas-feiras, enquanto a vida decorre em classe turística, entre cafés, semáforos, serviços e cerimónias do chá e valsas do adeus e o auto-retrato de Tintoretto ao espelho quase todos os dias, depois de Marte e Vénus terem sido surpreendidos pela inominável ressaca do além, e o dia apresentar sintomas de inanição e a noite continuar à custa de muito engenho que o amor já não busca autonomamente, até porque que as esperanças não no-las deram, e Kafka é que tinha razão, e o Ronaldo também, uma vez que os anjos e os árbitros desapareceram por completo da face da Terra, ainda que se avistem alguns, de quando em vez, no calor ocasional do facebook e nos sonhos soterrados dos isentos.

Contra o optimismo

A base do optimismo é simplesmente o terror.

Oscar Wilde 

I don't believe illusions 'cos too much is real

The Sex Pistols 

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 Leio algures: «As pedras são degraus de outros caminhos...». Nunca fui muito com este género de ideia. Pedras são pedras em qualquer parte. Não acredito que exista alguém que goste de caminhar por um caminho cheio de pedras. Podem ser muito optimistas e mais tarde pensar que são «degraus de outros caminhos...». Mas, enquanto percorrem o caminho, duvido que não pensem: «Ora aqui está uma boa merda.».

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Não foi necessário ler Cândido de Voltaire para saber que sou pessimista. O optimismo nunca me atraiu. Sempre o considerei sem sal. E vendo bem as coisas é. Por exemplo: a chamada grande literatura é, toda ela, pessimista. Onde é que existe optimismo nos livros de Kafka, Dostoievski, Céline, Mishima, Hemingway, Faulkner, Cossery, Bernhard? Não me lembro. O mundo é irremediavelmente absurdo e está irremediavelmente condenado. E a esperança? A esperança é outra coisa. Talvez um dia fale sobre ela. Mas não associo esperança a optimismo. Um pessimista pode ter esperança. É possível. Só que a esperança não o cega. Por outras palavras: um pessimista é alguém que tem os olhos bem abertos.

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Os pessimistas são sempre mais criticados do que os optimistas. Se um pessimista chama a atenção para possíveis obstáculos na vida, há logo alguém que exclama: «Ai! És tão pessimista!». Mas o contrário não se verifica. Ninguém diz: «Ai! És tão optimista!». Ou: «Lá vens tu com o teu optimismo!». Os pessimistas são discriminados. São acusados de ver obstáculos em tudo, quando na realidade isso (o facto de ver obstáculos) só traz vantagens: os pessimistas são mais rápidos a desviarem-se deles. Os optimistas não. Tropeçam, caem, lamentam-se, depois vão ler Paulo Coelho e esperam, com isso, aprender a "caminhar".

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 Não acredito que a leitura de Nietzsche ou Schopenhauer tenha influenciado o meu inerente pessimismo.  Li-os pela simples razão de estar na moda, de ser aquilo que era esperado de mim. Andar com o Anticristo no bolso de umas calças de ganga rafadas fez milagres junto das raparigas mais susceptíveis. Vestir o preto, também. Mas voltemos ao meu pessimismo. Não sei qual será a sua razão, origem. Sinceramente, não me interessa. Mas sei que é inerente.

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O meu pessimismo explica-se sem dificuldade: a minha total descrença na bondade humana. É claro que há excepções: conheci, na minha curta vida (trinta e seis anos até ao momento em que escrevo estas linhas), pessoas muito boas, altruístas até à medula (embora ainda não tenha resolvido em mim a questão entre altruísmo e egoísmo, pois considero-os indissociáveis, numa relação simbiótica). O oposto também é verdadeiro: pessoas más não faltam. Conheci umas quantas e suplantam, sem dúvida, as boas. Exemplo: éramos crianças e jogávamos à bola no parque infantil do bairro. Sempre que uma bola ia parar a um certo e determinado quintal, surgia uma faca — vinda não sei de onde  — que a rasgava. Quem é que rasga, destrói, uma bola com a qual crianças brincam? Lá no bairro não havia só essa criatura. Havia uma outra, muito mais cruel, que, para além de rasgar bolas, também cortava as asas às crias dos pássaros que apanhava a fazer ninho nas “suas” árvores e no beiral da “sua” casa. Vi, tudo isso, com os meus próprios olhos.

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 Se tentasse justificar o meu pessimismo, com uma base filosófica, seria incapaz. Ainda não li o suficiente para estabelecer um “programa” — algo que parece ser muito necessário para resolver tais questões e para que os outros nos levem a sério. No entanto, penso que ele, o meu pessimismo, é indissociável da minha precariedade existencial: saber que a vida é um milagre e saber que ela é um absurdo. Viver nesse limbo.

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 Pessimismo pressupõe sofrimento? Há quem acredite que sim. Cioran acreditava que se podia ser pessimista sem sofrimento. Para defender a sua posição, Cioran estabeleceu algumas linhas de pensamento. Uma delas é deveras interessante: com as desilusões criar um sistema. O sistema do pessimista é baseado nisso mesmo: nas suas desilusões. É claro que poderemos contra-argumentar dizendo que para ter desilusões o pessimista teve, em primeiro, que ter ilusões. É um argumento válido, com o qual não concordo. A desilusão é, no pessimista, sempre a priori.

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O discurso político português (principalmente do Governo e de alguns representantes do Estado) foi invadido pelo optimismo. E isso deixa-me a pensar. Como considero que todo o discurso político é falacioso, considero o optimismo — inerente ao discurso — falacioso. É claro que esta ideia aplica-se, também, a qualquer tipo de optimismo. Pois o optimismo é isso mesmo: uma falácia.

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 Por que razão o pessimismo? Porque o optimismo assim me obriga. O optimismo (que eu atrevo-me a designar de hipócrita) mais não é do que um mecanismo coercivo. O optimismo, nomeadamente aquele patente no discurso político, só serve um propósito: acalmar a massa, submete-la a uma vontade que é, muitas vezes, pouco clara. Todo o discurso optimista é falacioso. Ao contrário do optimista, o pessimista não recusa a realidade tal como ela é. Assim, ser pessimista, escolher o pessimismo, é um acto de resistência.

All is lost

Robert Redford é um velho que nunca foi actor, um homem belo pejado de rugas ou de sinais que atestam que ninguém foge da inescapável ceifeira. Redford não tem nome, nem história. O seu passado é interpretado a partir dos vincos na pele e dos cabelos brancos que só tornam talentoso aquele que ao longo da sua carreira escassos dotes artísticos revelou. All is lost (2013), de J.C. Chandor, é uma fotografia em movimento, o retrato de um ser inexpressivo e ao mesmo tempo cheio de expressões e carregado de histórias (a minha carne é o meu passado). Estamos perante um filme que ensina a sofrer como Séneca ensinou. Quem assiste ao filme sente que a criatura em luta contra o oceano batalha na verdade contra o barco que se afunda. Redford lê e adormece e vai-se afogando impávido. Nada surpreende se aceitarmos que a morte e a dor são vida e devem ser aceites com a mesma simplicidade com que se devora um bom repasto. Viver e saber ir morrendo. Tudo está perdido, tudo esteve perdido desde a nascença. O homem luta pela sobrevivência e quando pressente que não se salvará deita fogo ao que resta e atira-se para o fundo. Mergulha, enterra-se nas trevas. Mesmo esse mergulho faz parte da vida: atiramo-nos por vontade própria, estamos no fundo enquanto lá em cima o fogo reina, vemos o fogo e ainda não morremos, basta uma braçada e escapamos. Escapar de quê, se nos encontramos tão próximos da morte? Sempre estivemos mortos. A personagem interpretada por Robert Redford é Robert Redford, um homem, um idoso, nós, desgraçados e condenados a sofrer sem direito a estrebuchar. O que sabemos? Há uma carta, é com essa carta que se inicia o filme, mas poderia ser com essa carta que o filme acabava, poderia ser com essa carta que qualquer homem, não só aquele, se apresentava e despedia do mundo. 

13th of July, 4:50 pm. I’m sorry. I know that means little at this point. But I am. I tried. I think you could all agree that I tried. To be true. To be strong. To be kind. To love. To be right. But I wasn’t. And I know you knew this, in each of your ways. And I am sorry. All is lost here, except for soul and body. That is, what’s left of them. And a half day’s rations. It’s inexcusable, really. I know that now. How it could have taken that long to admit that, I’m not sure. But it did. I fought to the end. I am not sure what that is worth, but know that I did. I have always hoped for more for you all. I will miss you. I’m sorry.

Tentei ser isto e aquilo e falhei. Falhei, não existe outro modo de estar no mundo. Falhar e falhar.

Naufrágios - Breves notas sobre Thomas Bernhard


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Um dia li que Thomas Bernhard tinha mau feitio, que não era um pessoa de trato fácil, que dizia o que tinha a dizer sem ceder à hipocrisia, ao cinismo. — e parece que isso, na Áustria, não é lá muito bem visto (cf.Os Meus Prémios, 2009). Para Bernhard a Áustria era o inferno na terra. E os austríacos só tinham o que mereciam: «(…) eles são, num país assim, incapazes de desenvolvimento e têm também permanentemente consciência dessa incapacidade de desenvolvimento, um país assim precisa de pessoas que não se revoltem contra a pouca-vergonha de um tal país, contra a irresponsabilidade de um tal país e de um tal Estado (…)»(in Correcção: 2007, 34). Sempre tive uma tendência para escritores com mau feitio, que dizem o que têm a dizer. Doa a quem doer.

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Várias questões são levantadas quando lemos Thomas Bernhard. Em primeiro lugar, o ritmo que o autor confere à sua escrita. Bernhard era um grande apreciador de música. Nos seus vários romances isso está bem presente, nomeadamente através das várias repetições — palavras, ideias, frases —  lembrando partituras. Em segundo lugar, as obsessões. Morte, suicídio, absurdo, o papel da História no destino de uma nação (Áustria). Em terceiro lugar, a estrutura sólida dos seus textos. Páginas e páginas sem um único parágrafo. Um corpo único, orgânico, que se estende e desenvolve ao longo das páginas.

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Bernhard nunca se perdoou por ser austríaco. Nunca perdoou à Áustria a incompreensão pela sua obra, mas também o nacional-socialismo que a Alemanha Nazi lhe "impôs". Educado entre colégios católicos e um nacional-socialista, Bernhard cedo percebeu que o mundo era absurdo e incompreensível. Se de um lado sentia a opressão imposta ao "eu" pelo catolicismo, do outro sentia essa mesma opressão vinda do nacional-socialismo. Thomas Bernhard passou a combater esses dois tipos de anulação. Começou a escrever poesia.

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A doença foi outra obsessão. Não o podemos censurar. Muito cedo sofreu de uma doença pulmonar,  que o acompanhou toda a vida e que, por fim, o conduziu à morte. Desde cedo conheceu hospitais, o branco das paredes, o cheiro a Morte pairando pelos corredores, o corpo e a sua degradação. O espectro da Morte condicionou-lhe a Vida, obrigou-o a “refugiar-se” no campo, quando era a cidade que o chamava. O eu via-se, dessa maneira, dividido, condicionado. Anulado.

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Thomas Bernhard procurou a não-institucionalização da sua obra, do seu pensamento. Um escritor (ou artista) institucionalizado deixa de ter voz própria: ela passa a ser a voz da instituição. A independência era muito apreciada por Bernhard. Só dessa maneira podia escrever o que bem entendia, sem estar condicionado, limitado, pelo deve-e-haver da troca de galhardetes culturais. Apesar de ser um dos mais importantes escritores austríacos do século XX – ou talvez o mais importante – Bernhard nunca foi muito bem aceite pela chamada intelligentsia do seu país (ainda hoje é um escritor polémico e pouco amado). O livro Os Meus Prémios é disso um bom exemplo. Bernhard denunciou sempre a hipocrisia institucional (bem como a geral, a bem da verdade, também institucionalizada), o seguidismo, o caciquismo.

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Em Perturbação — segundo romance de Thomas Bernhard —, o narrador acompanha o seu pai — um médico de província — nas suas visitas diárias aos seus pacientes. O narrador é confrontado com personagens grotescas que, de certo modo, traduzem a visão bernhardiana do Homem e do Mundo. Todas as personagens encontram-se, de uma ou outra forma, confinadas a um determinado espaço, não se aventurando no mundo exterior (o mesmo acontece com o personagem da peça de teatro Simplesmente Complicado). Eles encontram-se fechados em si mesmo, presas às suas doenças, obsessões e incapacidades. O Homem, segundo Bernhard, é isso mesmo: doente, obsessivo e incapaz.

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A personagem Saurau — em Perturbação — serve todos os propósitos de Thomas Bernhard. Em primeiro lugar, é através do monólogo de Saurau que Bernhard começa a desenvolver a sua técnica narrativa baseada na repetição, nos longos períodos, frases (não podemos esquecer que este é apenas o segundo romance de Bernhard); em segundo, é através de Saurau que Bernhard dá a sua visão do mundo. Saurau não poupa ninguém: Homem, Deus, Estado. A torrente de impropérios é avassaladora. Bernhard serve-se, ainda, de outro artifício: Saurau é um louco. Aos loucos, como sabemos, tudo se perdoa (um pouco à maneira do Parvo de Gil Vicente em Auto da Barca do Inferno). Saurau vive obcecado com o seu filho e com aquilo que ele poderá fazer, no futuro, com o legado de Saurau. É evidente a clivagem entre gerações, entre o velho e o novo, entre uma Áustria imperial e uma Áustria republicana. No entanto, Bernhard não toma o partido de nenhum dos lados, pois o que resta — na realidade — é o nada. Todavia, não podemos cair na tentação de interpretar “Áustria” como o espaço geográfico e político desse país. “Áustria” é, no fundo, uma metáfora para toda a civilização ocidental. Uma civilização em declínio, queda.

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A vida é sofrimento. Bernhard sabia isso. Em Perturbação esse sofrimento está presente em todas as personagens. Todos eles sofrem de uma ou outra forma. O sofrimento, em alguns casos, é físico; mas, em todos eles, também o é psicológico. Bernhard descreve homens e mulheres incapazes, débeis, derrotados, conformados com a sua existência. A derrota é uma constante no universo bernhardiano. Thomas Bernhard sabe que nada no Homem o pode redimir da sua condição. Por muito que o Homem faça, ele será sempre um ser sujeito à angústia, doença, estupidez, Morte. O Homem é — no seu âmago — um ser absurdo.

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Outra questão que se levanta com a leitura de Thomas Bernhard é a sensação de estarmos sempre a ler o mesmo livro, a ler a mesma “história”. Tal facto não deve ser tido como um “defeito”. Há em Bernhard todo um “programa de escrita”. Mas que programa é esse? Bernhard parece pregar sermões. Só que não são sermões morais nem “moralizantes”. Antes “consciencializantes”. Na peça de teatro Simplesmente Complicado, Bernhard dá-nos a conhecer as obsessões, traumas, angústias de um velho homem enclausurado na sua própria casa, que cria e recria à sua imagem e semelhança. A personagem debate-se com a doença, a velhice e a proximidade do fim. Bernhard coloca o dedo na ferida: a loucura está mais perto de nós do que aquilo que pensamos; rapidamente se pode apoderar do nosso corpo e mente. Simplesmente Complicado é uma alegoria à nossa frágil e perene condição humana.

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Apesar do esforço de algumas editoras portuguesas, Thomas Bernhard continua a ser pouco conhecido do comum leitor. Acredito que não seja fácil “cativar” o leitor português — que na sua maioria despreza os seus grandes autores — para a escrita/obra de Bernhard. O reconhecido mérito das traduções de José A. Palma Caetano não é o suficiente para cativar leitores. Não é fácil (e por mim falo) folhear um romance como Correcção ou Extinção e ser confrontado com a solidez das suas páginas. Thomas Bernhard escreveu uma obra baseada na “solidez” do corpo de texto. Se o comum leitor português — que nunca leu Saramago — diz que Saramago não sabe pontuar, o que dirá de Thomas Bernhard?