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Um dia li que Thomas Bernhard tinha mau feitio, que não era um pessoa de trato fácil, que dizia o que tinha a dizer sem ceder à hipocrisia, ao cinismo. — e parece que isso, na Áustria, não é lá muito bem visto (cf.Os Meus Prémios, 2009). Para Bernhard a Áustria era o inferno na terra. E os austríacos só tinham o que mereciam: «(…) eles são, num país assim, incapazes de desenvolvimento e têm também permanentemente consciência dessa incapacidade de desenvolvimento, um país assim precisa de pessoas que não se revoltem contra a pouca-vergonha de um tal país, contra a irresponsabilidade de um tal país e de um tal Estado (…)»(in Correcção: 2007, 34). Sempre tive uma tendência para escritores com mau feitio, que dizem o que têm a dizer. Doa a quem doer.
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Várias questões são levantadas quando lemos Thomas Bernhard. Em primeiro lugar, o ritmo que o autor confere à sua escrita. Bernhard era um grande apreciador de música. Nos seus vários romances isso está bem presente, nomeadamente através das várias repetições — palavras, ideias, frases — lembrando partituras. Em segundo lugar, as obsessões. Morte, suicídio, absurdo, o papel da História no destino de uma nação (Áustria). Em terceiro lugar, a estrutura sólida dos seus textos. Páginas e páginas sem um único parágrafo. Um corpo único, orgânico, que se estende e desenvolve ao longo das páginas.
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Bernhard nunca se perdoou por ser austríaco. Nunca perdoou à Áustria a incompreensão pela sua obra, mas também o nacional-socialismo que a Alemanha Nazi lhe "impôs". Educado entre colégios católicos e um nacional-socialista, Bernhard cedo percebeu que o mundo era absurdo e incompreensível. Se de um lado sentia a opressão imposta ao "eu" pelo catolicismo, do outro sentia essa mesma opressão vinda do nacional-socialismo. Thomas Bernhard passou a combater esses dois tipos de anulação. Começou a escrever poesia.
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A doença foi outra obsessão. Não o podemos censurar. Muito cedo sofreu de uma doença pulmonar, que o acompanhou toda a vida e que, por fim, o conduziu à morte. Desde cedo conheceu hospitais, o branco das paredes, o cheiro a Morte pairando pelos corredores, o corpo e a sua degradação. O espectro da Morte condicionou-lhe a Vida, obrigou-o a “refugiar-se” no campo, quando era a cidade que o chamava. O eu via-se, dessa maneira, dividido, condicionado. Anulado.
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Thomas Bernhard procurou a não-institucionalização da sua obra, do seu pensamento. Um escritor (ou artista) institucionalizado deixa de ter voz própria: ela passa a ser a voz da instituição. A independência era muito apreciada por Bernhard. Só dessa maneira podia escrever o que bem entendia, sem estar condicionado, limitado, pelo deve-e-haver da troca de galhardetes culturais. Apesar de ser um dos mais importantes escritores austríacos do século XX – ou talvez o mais importante – Bernhard nunca foi muito bem aceite pela chamada intelligentsia do seu país (ainda hoje é um escritor polémico e pouco amado). O livro Os Meus Prémios é disso um bom exemplo. Bernhard denunciou sempre a hipocrisia institucional (bem como a geral, a bem da verdade, também institucionalizada), o seguidismo, o caciquismo.
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Em Perturbação — segundo romance de Thomas Bernhard —, o narrador acompanha o seu pai — um médico de província — nas suas visitas diárias aos seus pacientes. O narrador é confrontado com personagens grotescas que, de certo modo, traduzem a visão bernhardiana do Homem e do Mundo. Todas as personagens encontram-se, de uma ou outra forma, confinadas a um determinado espaço, não se aventurando no mundo exterior (o mesmo acontece com o personagem da peça de teatro Simplesmente Complicado). Eles encontram-se fechados em si mesmo, presas às suas doenças, obsessões e incapacidades. O Homem, segundo Bernhard, é isso mesmo: doente, obsessivo e incapaz.
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A personagem Saurau — em Perturbação — serve todos os propósitos de Thomas Bernhard. Em primeiro lugar, é através do monólogo de Saurau que Bernhard começa a desenvolver a sua técnica narrativa baseada na repetição, nos longos períodos, frases (não podemos esquecer que este é apenas o segundo romance de Bernhard); em segundo, é através de Saurau que Bernhard dá a sua visão do mundo. Saurau não poupa ninguém: Homem, Deus, Estado. A torrente de impropérios é avassaladora. Bernhard serve-se, ainda, de outro artifício: Saurau é um louco. Aos loucos, como sabemos, tudo se perdoa (um pouco à maneira do Parvo de Gil Vicente em Auto da Barca do Inferno). Saurau vive obcecado com o seu filho e com aquilo que ele poderá fazer, no futuro, com o legado de Saurau. É evidente a clivagem entre gerações, entre o velho e o novo, entre uma Áustria imperial e uma Áustria republicana. No entanto, Bernhard não toma o partido de nenhum dos lados, pois o que resta — na realidade — é o nada. Todavia, não podemos cair na tentação de interpretar “Áustria” como o espaço geográfico e político desse país. “Áustria” é, no fundo, uma metáfora para toda a civilização ocidental. Uma civilização em declínio, queda.
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A vida é sofrimento. Bernhard sabia isso. Em Perturbação esse sofrimento está presente em todas as personagens. Todos eles sofrem de uma ou outra forma. O sofrimento, em alguns casos, é físico; mas, em todos eles, também o é psicológico. Bernhard descreve homens e mulheres incapazes, débeis, derrotados, conformados com a sua existência. A derrota é uma constante no universo bernhardiano. Thomas Bernhard sabe que nada no Homem o pode redimir da sua condição. Por muito que o Homem faça, ele será sempre um ser sujeito à angústia, doença, estupidez, Morte. O Homem é — no seu âmago — um ser absurdo.
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Outra questão que se levanta com a leitura de Thomas Bernhard é a sensação de estarmos sempre a ler o mesmo livro, a ler a mesma “história”. Tal facto não deve ser tido como um “defeito”. Há em Bernhard todo um “programa de escrita”. Mas que programa é esse? Bernhard parece pregar sermões. Só que não são sermões morais nem “moralizantes”. Antes “consciencializantes”. Na peça de teatro Simplesmente Complicado, Bernhard dá-nos a conhecer as obsessões, traumas, angústias de um velho homem enclausurado na sua própria casa, que cria e recria à sua imagem e semelhança. A personagem debate-se com a doença, a velhice e a proximidade do fim. Bernhard coloca o dedo na ferida: a loucura está mais perto de nós do que aquilo que pensamos; rapidamente se pode apoderar do nosso corpo e mente. Simplesmente Complicado é uma alegoria à nossa frágil e perene condição humana.
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Apesar do esforço de algumas editoras portuguesas, Thomas Bernhard continua a ser pouco conhecido do comum leitor. Acredito que não seja fácil “cativar” o leitor português — que na sua maioria despreza os seus grandes autores — para a escrita/obra de Bernhard. O reconhecido mérito das traduções de José A. Palma Caetano não é o suficiente para cativar leitores. Não é fácil (e por mim falo) folhear um romance como Correcção ou Extinção e ser confrontado com a solidez das suas páginas. Thomas Bernhard escreveu uma obra baseada na “solidez” do corpo de texto. Se o comum leitor português — que nunca leu Saramago — diz que Saramago não sabe pontuar, o que dirá de Thomas Bernhard?