Respostas: Miller a Bukowski e Bukowski a Miller

Tradução de João Coles
[Ler a primeira carta de Charles Bukowski a Henry Miller]


[Miller a Bukowski]
22 de Agosto de 1965

Caro amigo,

A única razão pela qual não lhe digo que venha de imediato cá a casa é porque ontem, depois de quase dois anos a protelar o meu próprio trabalho em benefício de outros, decidi que eu estou em primeiro lugar. E assim voltei ao trabalho, a uma peça de acto único já meio acabada – outra peça burlesca! - e não pretendo encontrar-me com ninguém até a levar a bom termo.

O tal amigo que me enviou os (3) exemplares adicionais do seu livro (o qual agora posso fazer chegar a amigos) deve ser o Bob Fink. Se ele ainda não lhe pagou, avise-me. Eu tencionava pagar, como fiz com os três primeiros, mas ele disse-me ao telefone: “já está tudo tratado!” Se ele ainda não pagou o preço total, pretendo acrescentar o remanescente. O livro vale o dobro daquilo que as editoras estão a pedir. Eu disse ao Lyle Stuart que se assegurasse de o pôr à venda na Pickwick's e na Martindale's – aparentemente não pensou nelas. Também lhe pedi mais formulários de encomenda para que os possa enviar a amigos.

Basta disto! Estou tão contente que tenha descoberto Céline. O seu primeiro livro (Viagem [ao fim da noite]) foi publicado quase na mesma altura que o [Trópico de] Câncer. Vivi mesmo ao lado da clínica dele em Clichy, mas era demasiado tímido para o procurar. O segundo livro (Morte a crédito) também é grandioso. Não deixe de o ler. Creio que saiu em edição de bolso (pela New Directions).

Espero que não esteja com as suas bebedeiras de caixão à cova! E sobretudo não enquanto estiver a escrever. É o caminho certo para matar a fonte de inspiração. Beba apenas quando estiver feliz, caso possa. Nunca para afogar as mágoas. E nunca beba sozinho! Perdoe-me por dizer estas coisas – mas porquê dar cabo da sua vida? Existe um ponto de vista, uma atitude perante a vida além daquela de Céline, acredite em mim. Ele acabou tornando-se num homem amargurado – acontece, porém, que ele era uma alma angelical genuína.

Alguma vez tentou escrever prosa? Um dos meus poetas em prosa favoritos é Jean Giono. Alguma vez leu o seu Blue Boy? Creio que significaria alguma coisa para si. Palavra de honra.

Tenho de me deter agora. Desejo-lhe tudo do melhor. Se puder servir de ajuda, diga-me alguma coisa.

Salut!
Henry Miller
 

P.S. Esqueci-me de lhe agradecer pelos desenhos. Eu persevero na pintura sem saber como desenhar. Na escola sempre fui corrido das aulas de arte. É tudo tanta bosta de cavalo feliz, não é?


[Bukowski a Miller]
Finais de Agosto de 1965

não, não sou do género de fazer visitas, e espero que não pense que pretendo impelir-me contra si. estava bêbedo quando escrevi a carta, se é que serve de desculpa. quanto às bebedeiras, se me atolam ou desenroscam a cabeça da minha criatividade, tanto pior então. preciso de algo mais para viver minuto a minuto do que para ser alguma espécie de artista criativo. o que quero dizer com isto é que preciso de alguma coisa que me dê ânimo, senão entorpeço, sou um cobarde, não quero atravessar as soleiras das portas.

livros [Crucifix] pagos, e mesmo a tempo (para mim). tive de fazer uma revisão completa aos travões do meu velho Plymouth. tenho conduzido sem travões. a mulher berrou quando viu o preço. ela acha que sou um idiota. eu sou um idiota. lá vai ela mijar e deixa a porta aberta e olho para as suas grandes pernas, mortas e inanimadas. a seguir liga o rádio. o rádio está sempre ligado. eu cirando pela casa com tampões para os ouvidos na minha cabeça perguntado-me se devia ir à rua comprar uma garrafa de vinho. tal como todos: conta do gás por pagar, conta do telefone por pagar, falésias a cair em cima da minha cabeça... não, não, raramente trabalho com prosa, principalmente porque a rejeição me mataria. toda essa energia desperdiçada. não tenho coragem para escrever um romance por medo de investir metade da minha vida nele para depois acabar sem pernas dentro de uma gaveta. houve uma vez que disse numa revista que aceitaria escrever um romance por um adiantamento de $500, em qualquer momento, em qualquer lugar. não surgiu qualquer comprador, nem surgirá. se lhe pareço ávido por dinheiro, não acredite nisso. é uma questão de energia – de vazamento. eu posso brincar com poemas sem me magoar muito e conseguir na mesma ser rei do meu próprio castelo, se é que me entende. a fedelha está agora a agarrar-se a mim – tem 11 meses e já quer dactilografar. há-de ter a oportunidade, a cabra.

vou tentar deitar a mão ao [Jean] Giono, ou pedir à mulher que trate disso. no entanto, não consigo imaginar alguém a ombrear com Céline. este homem tinha a cabeça cheia de parafusos dourados. merda, ai merda, doem-me os braços e o peito! parto amanhã para Del Mar, de comboio. estas mulheres mantêm-me sob rédea curta nestes 2 quartos minúsculos e preciso de me fazer ao largo por um momento: o céu, a estrada, o cu de um cavalo, árvores mortas, o mar, pernas novas errantes – qualquer coisa, qualquer coisa... os desenhos que lhe mandei são atrozes. uma péssima partida. estou a trabalhar num livro de desenhos que me pediram e estes 2 pu-los de parte. o editor quer muitos desenhos e uns quantos poemas – o que torna a coisa agradável: um pouco de tinta-da-china e muita cerveja e estou nessa.

Da admiração

Brigitte Bardot no atelier de Picasso em 1958.png

A admiração habita no mundo da ética, sendo simultaneamente um valor e um modo de nos relacionarmos com outrem (não apenas humanos). Hoje, parece fora de moda, a hipertrofia da autoestima orientou a admiração para dentro, acomodando-a nas diversas modalidades do narcisismo. No máximo, quando se trata de pessoas, o outro é um espelho onde nos podemos admirar.

Pelo contrário, a verdadeira admiração é uma forma de buscar o grande, o belo, o bom..., e desta forma ela é inspiradora, torna-nos melhores. Por isso, Victor Hugo queria tanto admirar como ser admirado. Este discurso, um pouco lamechas, eu sei, pode ser irradiado com uma nota de 1880 de Friedrich Nietzsche: “Para o inferno com todos os imitadores e seguidores e bajuladores e admiradores e devotos!” Mas esta incandescência retórica, de alguém que foi tão pouco admirado em vida, não resiste à força da definição que nos deixou René Descartes nas Paixões da Alma: “A admiração é uma súbita surpresa da alma que a leva a considerar com atenção objectos que lhe parecem raros e extraordinários.” (II, 70; cf. ainda 53 e 71). Objectos ou pessoas, claro. Reconhecimento feliz, pois, do extraordinário, que permite a constatação venturosa da superioridade do outro. Mais, a dinamite nietzschiana cede à sua própria disposição apolínea, no mesmo ano da nota anterior refere que “Se não soubermos ler um livro pelo amor do outro, como será pobre! Devemos senti-lo como o autor.” (Isto levanta interessantes questões hermenêuticas, que não cabem aqui).

Mas é nesta valorização do exterior, do que está fora de nós que as coisas se toldam, em 1968 Gilles Deleuze dizia que “A doença das pessoas de hoje é que elas já não sabem admirar nada”. (O medo da superioridade do outro conduz ou ao desdém ou à inveja). No seu comentário a Nietzsche (Nietzsche et la philosophie, 1962), mostrava como os tempos estavam propícios a odiar tudo o que era amável ou admirável, diminuir tudo através de facécias e interpretações vulgares, ver em todas as coisas uma armadilha, sobrevalorizando a prudência. Contra isto, disse mais tarde que ao trabalhar sobre um autor procurava “nada escrever que o possa afectar de tristeza, ou, se está morto, o faça chorar na sua campa.” (Conversações). E isto, é bom que se diga, não o impediu, como não impedirá ninguém, de ser lúcido ou crítico. A admiração, para quem não é minúsculo, eleva, mesmo quando não alimenta a emulação. Ao contrário da mesquinhez, que amplifica, ou inventa, a penúria e o defeito, a admiração destaca o extraordinário, como escreveu Descartes. E é esse “extraordinário” que encontro na natureza ainda relativamente natural, nos animais e em certos humanos (sobretudo aqueles que conseguiram tornar-se heterogeneamente eles mesmos). Com alguns, para imensa felicidade minha, costumo conviver. Uma felicidade espontânea, por estar junto deles, ouvi-los e vê-los. Uma felicidade diferida porque me inspiram, me permitem pensar e ser melhor, mesmo quando não lhes rendo inteira justiça. No final, espero que a minha admiração lhes dê algum retorno, que não seja eu o único favorecido.

Carta de Charles Bukowski a Henry Miller

Tradução de João Coles

O casal Webb publicou duas obras de Henry Miller depois de ter publicado os seguintes livros de Bukowski: It Cacthes My Heart in Its Hands e Crucifix in Deathland

[A Henry Miller]
16 de Agosto de 1965

bom, é o meu 45º aniversário, e com esta desculpa esfarrapada tomo a liberdade de lhe escrever – apesar de imaginar muito bem que recebe cartas suficientes que lhe dão cabo da cachimónia. até eu as recebo, a maioria delas bastante vivaz e eléctrica. é quando eles começam a falar de poemas que se tornam insípidos. e ainda apensam os poemas. a ouvir Chopin – sim, por Krristo, sou quadrado em certas coisas – e a beberricar uma cerveja. conheci o seu amigo Doc Fink e as suas piadas sobre os judeus, e também a sua espécie de concepção laxista sobre a sonoridade e a autenticidade. ele trouxe cerveja e a mulher atrelada, ouvi-o e ofereci-lhe uma colagem ou qualquer coisa que tinha feito. ele é o seu protegido, mas, merda, isso não é novidade nenhuma – muitos de nós somos.

em todo o caso, ele ofereceu-me aquele livro de Céline – como é que se chama? – Viagem ao fim da noite. oiça bem, a maioria dos escritores dá-me vómitos. as palavras deles não chegam sequer a tocar no papel. milhares de milhões de escritores e as palavras deles, palavras que não chegam sequer a tocar no papel. mas Céline fez-me ter vergonha do pobre escritor que sou, deu-me vontade de mandar tudo pelos ares. um maldito dum mestre a sussurrar dentro da minha cabeça. deus do céu, parecia um rapazinho outra vez. todo ouvidos. nada se mete entre Céline e Dostoiévski a não ser que seja Henry Miller. enfim, depois de me sentir mal após descobrir a minha pequenez, retomei a leitura, e deixei-me guiar pela mão, de boa vontade. Céline era um filósofo que sabia que a filosofia era inútil; um fodilhão que sabia que foder era praticamente uma impostura; Céline era um anjo que cuspia nos olhos dos anjos e descia pela rua fora. Céline sabia tudo; quero dizer que ele sabia tanto quanto havia para saber se tivermos dois braços, dois pés, uma gaita, alguns anos de vida ou menos do que isso, antes de tudo o mais. claro que ele tinha uma gaita. mas o Henry sabe isso. ele não escrevia como o [Jean] Genet, que escreve muito, muito bem, que escreve bem de mais, que escreve tão bem que nos põe a dormir. oh diabo, enquanto isto estão aos tiros nos telhados; na noite passada deitaram um Molotov na Hollywood Blvd. e na Ivar, que é bastante próxima, mas não próxima o suficiente para me beijar. eu trabalho com pretos e a maioria deles adora-me, portanto talvez devesse pendurar um cartaz ao pescoço a dizer, EI EI! OS PRETOS ADORAM-ME!! mas isso tão-pouco funcionaria porque depois um cabrão dum branco qualquer me daria um tiro. santo Deus, está aqui uma mulher a dar de comer a um miúdo, e enquanto lhe escrevo inclino-me para a frente e digo-lhe, “oooooh, prova um bocado de banana, PROVA UM BOCADO DE BANANA!!” eu, o bebé durão. enfim, passamos todos por isso. têm estado nisto desde que comecei a carta, tenho o rádio ligado e estou a fumar um charuto reles com a minha cerveja. por isso, se isto estiver confuso não é por ter um macaco verde debaixo da mesa a agarrar-me os tomates.

um tudo-nada bêbedo, como é hábito, sim. Chopin revive sob os dedos de...quem? Pennario, Rubenstein? o meu ouvido não é grande coisa. os ossos de Chopin estão mortos e continuam aos tiros nos telhados e eu sentado numa cozinha suja e barulhenta no inferno escrevendo a Henry Miller. mais uma cerveja, mais uma cerveja. persisto com a teoria de não desistir; eu não vou desistir de escrever se tudo voltar à estaca zero, não vou desistir mesmo que mandem um coro de prostitutas pontapear-me os olhos e um grupo de seis zés-pereiras mariconços a dar no bongo à la Havana, meu Deus. não comecei a escrever até cumprir 35 anos e se esperar outros 35 não restará grande coisa de mim. enfim, cumpro quarenta e cinco esta noite e estou a escrever a Henry Miller. tudo bem. acho que o Doc Fink me acha um snob. é que eu não acredito em ir bater à porta de alguém. sempre fui um solitário. vou ser franco: não gosto da maioria das pessoas – elas cansam-me, baralham-me, revolvem-me os olhos, roubam-me, mentem-me, fodem-me, enganam-me, ensinam-me, insultam-me, amam-me; mas, mais do que tudo, falam falam FALAM até que me sinta que nem um gato enrabado à força por um elefante. não me faz bem nenhum, em demasia não me faz bem nenhum. nas fábricas e nos matadouros as pessoas estão demasiado ocupadas para falar, e, por isso mesmo, gostaria de agradecer pela bondade dos meus patrões ricos. quando eles me despedem nunca oiço as vozes deles, e sou o maior filho da mãe que mais vezes se demitiu e foi demitido que alguma vez conhecerá; mas nunca oiço as vozes deles. é atencioso e delicado e cortês e eu saio dali porta fora e nem sequer penso em disparar de um telhado sobre alguém. penso: bem, vou dormir durante uma semana e depois ponho-me à procura. ou vou para casa dar umas trancadas e beber durante a noite inteira. este tipo de coisas. encaixo-me perfeitamente nestes planos. sou um merdas. mas um solitário sobretudo. e agora que tive uns poemas publicados vêm bater-me à porta e continuo a não querer receber ninguém. a diferença é a seguinte, se formos uns solitários e uns zés-ninguém, somos doidos; se formos solitários e um tudo-nada conhecidos, nesse caso somos snobs. hão-de encontrar sempre a prateleira certa onde nos encaixar independentemente do que fizermos. até esta mulher aqui tem de me corrigir constantemente diga a porra que disser. posso acordar de manhã e dizer, “meu Deus, que calor.” aí ela dirá, “tu só achas que está calor. não está tanto calor quanto ontem. imagina que vivias em África...” este tipo de coisas.

onde é que eu estou? outra cerveja? com certeza.

agora a menina quer dactilografar. ok, dá-lhe, querida, dá-lhe. vou buscar a máquina e lá começa o choradinho. “raios me partam, digo-lhe, não vês que estou a escrever ao Henry Miller? não percebes que é o meu 45º aniversário?”

em todo o caso, espero que tenha recebido os 3 Crucifixos. o Webb deu-me 16 e não devia ter-mos dado porque tendo a distribuí-los a torto e a direito, a qualquer pessoa que esteja à minha volta quando estou bêbedo, mais os meus quadros, mas os quadros são um nojo, acho eu, continuo a tentar fazer com que o amarelo sobressaia entre as outras cores, talvez como a minha coluna vertebral. claro, sou amarelo, sou amarelo e sou rijo e estou cansado e estou bêbedo, e a vida dissipa-se como um peido e eu atravesso pelo meio. continuo a pensar no [D. H.] Lawrence a ordenhar as suas vacas, continuo a pensar na Frieda dele. sou um doido varrido. continuo a pensar nos rostos das fábricas, das cadeias, dos hospitais. não sinto compaixão por estes rostos, não os consigo decifrar, é só isso. como frutos silvestres a balouçar ao vento, como caca de pássaro sobre a estátua da vida. que raio. outra cerveja. bom, agora o [César] Franck está no ar. tomamos aquilo que nos dão. embora a S. [Sinfonia] em ré menor não seja má. quando fui casado com uma milionária, estava deitado no tapete bêbedo a ouvir a Sinfonia em ré menor do F. [Franck], ela ficou ali sentada e disse, “acho que essa música é feia” e assim soube naquele momento que o milhão sumira. já não havia volta a dar com ela. e para o provar, nessa mesma noite quando a fodi no quarto, as prateleiras todas caíram e as plantas e as bugigangas desabaram sobre as minhas costas e no meu cu. quero dizer, eu faço um bom serviço, mas não assim tão bom. ela também achou feio eu ter rido na altura. enfiei-o outra vez e vi o milhão a voar, a voar... “não gosto de um homem que faz pouco de si mesmo, não gosto de um homem que ri de si mesmo. gosto de um homem que tenha orgulho.” disse-me ela. bem, tenho de rir porque sou ridículo; tenho uma natureza efémera, eu cago e limpo o meu rabo, estou cheio de ranho e gosma e insectos e ideias grandiosas...mas na realidade sou um merdoso, nada mais do que um merdoso. ora, primeiro apareceu o tipo refinado com o alfinete roxo na gravata e a voz culta. porém, no fim de contas, ela acabou com um Esquimó, um pescador e professor japonês, o Tami, penso que era, é, esse o seu nome. o Tami ficou com o milhão; eu fiquei com o alfinete. presumo que não ouçam Franck.

em todo o caso, espero que tenha recebido os livros. a mulher ocupou-se do trabalho sujo, foi lá abaixo ao mercado e trouxe uma caixa de cartão e recortou-a ela mesma. um amigo teu que afirmou que pagaria pelos livros disse, “cobrarei apenas as despesas de secretariado.” propus 5 paus por um livro, o que não era mau, e uma vez que os meus direitos de autor são de apenas 10 cêntimos por exemplar em cada um dos 3000 livros vendidos, pensava que estava a fazer um negócio da China. presumo que ele tenha achado o mesmo, porque já passaram 2 semanas e ainda não sei nada dele. mas mais tarde lá lhe disse, “se estás nas lonas, esquece.” e suponho que estejamos todos nas lonas. a tumba está sempre à espreita e não lhe podemos fugir com o rabo à seringa, nunca. houve uma vez que vivi num quarto em Atlanta a um dólar e 25 cêntimos por semana. vivi durante um mês com 8 dólares. e escrevi poemas nas margens de jornais emporcalhados que encontrava no chão. sem luz, sem aquecimento. não sei o que é que aconteceu a esses jornais. tenho uma vaga ideia do que me aconteceu a mim. isso é normal, mesmo quando a coisa se torna anormal. estou a dar-lhe muita palha esta noite. ainda está a ler?, pergunto-me. enfim, 45 anos é uma idade triste. 30 foi a pior de todas. sobrevivi-lhes. eu não finjo ter coragem. só me pergunto se a tenho.

agora prepare-se que vou praguejar: naturalmente que gostaria de o conhecer. gostaria de o ver sentado numa cadeira à minha frente. probabilidade praticamente nula. não sou grande espingarda a conversar. não me sinto bem a maioria das vezes. seria como um profeta conhecer Deus. depois ia à casa-de-banho mijar, e eu diria, olha, afinal Deus também mija. não odeie a adulação, Henry, já estava a merecer alguma. já passou por isso. só lhe chamo “Henry” por causa de umas cartas extensas e apatetadas de um estudante qualquer que insiste em chamar-me “Sr. Bukowski” o tempo todo até que me sinta enlevado, mas aquilo que ele quer mesmo fazer é rastejar pelo meu cadáver achatado. em todo o caso, se alguma vez decidir vir cá, ena pá, o meu número de telefone é NO-1-6385 e a morada está no envelope. agora estou a gozar consigo. esqueça.

Céline, Céline, oh meu Deus, Céline. como se inventou um homem daqueles??

outra cerveja.

de qualquer maneira, posto que é Céline, quero que saiba que já experimentei de tudo, independentemente do que escrevo: os bancos dos parques, as fábricas, as cadeias; fiz de segurança num prostíbulo em Forth Worth, trabalhei numa fábrica de biscoitos para cães, partilhei a cela com o inimigo público n.º 1 (que sorte!); tramei e fui tramado; estive nos hospitais com as tripas à mostra; fui para a cama com todas as putas e todas as mulheres loucas de Costa a Costa; todos os trabalhos terríveis, todas as mulheres terríveis, tudo, e só um pingo disto aparece na minha poesia porque ainda não sou homem o suficiente e talvez nunca o venha a ser; fui escorraçado na última La Grande Ronde Review por ser grosseiro, por a minha ortografia ser má. enfim, todo o tipo de golpadas. não comprei o exemplar, não tive coragem, mas contou-me outra pessoa. deram-se ao trabalho de me esfolar ao longo de 5 páginas e meia. talvez esteja a fazer progressos?? mas o que a maioria não percebe é que, apesar da minha ortografia ser má, escrevo boa parte das coisas bêbedo e os malditos dos dedos saltam ao lado e na manhã seguinte sinto-me demasiado indisposto para as ler, salto-as, ponho-as de lado, tal como farei com esta carta. a manhã não é forte o suficiente para aguentar a noite.

bom, em vez de me alongar, acho que me vou deter. certamente e sem dúvida alguma já falei o suficiente. depois de um início de loucos tenho picado o mesmo ponto faz 8 anos num trabalho horrível. mas no outro dia, vendi um quadro por $20. coisa nunca antes vista. alguém de uma pequena cidade na Florida alvejou-me com uma nota de vinte e disse, “mande-me um dos seus quadros.” parece que ainda não estou morto. o Henry nunca morrerá.

Desenhos de Bukowski enviados em apenso a Henry Miller. Lê-se nas legendas "The Age of Christ" e "On turning it down for lack of money"

Epístolas de Horácio - Cassandra Jordão Entrevista Pedro Braga Falcão

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Depois de um longo hiato, Cassandra Jordão volta à carga com uma entrevista a Pedro Braga Falcão, a propósito da sua tradução das Epístolas do poeta latino Horácio.

Ficámos de nos encontrar com o doutor (xôtor) Pedro Braga Falcão na livraria Flâneur no Porto. O tradutor de Horácio atrasou-se meia hora e compareceu no seu melhor fato de treino (ainda sem acertar com o detalhe da peúga por cima da calça, contudo). A livraria encontrava-se fechada e, como é costume nestes encontros entre literatos, dirigimo-nos para o café mais literário, mais boémio e mais próximo que nos foi possível encontrar. Ou assim garantimos ao poeta: as mesas eram de fórmica cinzenta com umas toalhinhas de papel por cima, havia uns croissants solitários e tristonhos (talvez de há dois dias, talvez um pouco mais) no expositor do balcão, e quando pedimos dois copos de vinho rosé não havia. Na verdade, nenhuma variedade de vinho estava disponível. Tivemos de nos contentar com café. Para nossa surpresa apareceu acompanhado do seu filho de cinco anos, que falava claramente demasiado e queria muito os croissants de dois dias. O tradutor não nos dispensou toda atenção que merecíamos por causa do pirralho, o que nunca fica bem num erudito.

Pedro Braga Falcão é doutorado em estudos clássicos com uma tese sobre a música da poesia de Horácio e há ainda uma licenciatura em música, como instrumentista de viola de arco (embora PBF não negue o seu interesse pela trompa). É professor na Universidade Católica Portuguesa, gosta de etimologias (Palavras que falam por nós, Clube do Autor), é autor de um livro de poemas (Do Princípio, também pela Cotovia) e há outro livro de poemas a sair em breve pela Enfermaria 6. Nenhum destes méritos iguala a audácia e a autoridade da sua opção por um venerável bigode (se é que podemos chamar bigode a um conjunto esparso de pêlos sobre o nariz). Juntámo-nos numa tarde de Outono, quase inverno, para falar da nova tradução das Epístolas de Horácio.

Como surgiu a ideia de traduzir as Epístolas de Horácio e porquê esta obra em particular? Foi por gostar de ler correspondência alheia?

Se tentar ler as epístolas de Horácio como correspondência alheia, vai ficar bastante desiludida (risos). Suponho que a única coisa que ficará a saber é que Horácio se tratava de um comilão baixinho, grisalho e corpulento, e que tinha um grupo grande de amigos de quem não sabemos praticamente nada. Bem, a Cassandra na sua qualidade de profetisa poderá saber mais qualquer coisa (risos afectados e estupidamente pedantes). Porque decidi traduzir as Epístolas? Na verdade, era a consequência lógica de traduzir as Odes; cronologicamente, era o que fazia mais sentido: as Epístolas foram publicadas a seguir aos primeiros três livros de odes... Mas a minha intenção é mesmo traduzir toda a obra de Horácio (só faltam os Epodos, as Sátiras e a Arte Poética).

O Pedro já havia traduzido as Odes de Horácio (também na Livros Cotovia, em 2008) e, antes disso, o Carmen Saeculare tinha sido objecto da sua tese de mestrado. Não há mesmo mais nenhum autor clássico que lhe interesse?

Claro que há. Aprecio muito Herberto Helder e António Ramos Rosa. Infelizmente ainda não se encontraram os manuscritos originais das suas obras, que toda a gente sabe que estão em latim.

Podia falar-nos um pouco de como começou a sua obsessão com Horácio e de porque é que continua a insistir nela?

Tudo começou quando a minha mãe me ensinou a ser poeta. Passados vinte anos encontrei Horácio. É claro que por vezes ele me aborrece bastante. Mas ensinou-me toda a imperfeição de um verso demasiado bem composto... nunca mais me esqueci de procurar nos versos essa vertigem de compositor de palavras, em tudo o que escrevo. Gostava de dizer que era uma obsessão essa busca, mas receio que ainda não estou nesse estado; ainda deixo alguns versos em paz.

Horácio tem influência sobre a sua criatividade enquanto poeta ou nem por isso?

Nem por isso. A minha criatividade vem da minha infância e das minhas longas brincadeiras no meu pinhal, a sós com o meu mundo de criança. Horácio é apenas um autor de vários que me ensinaram a estar na poesia. Bach, Beethoven, Tchaikovsky, Tom Jobim, Janis Joplin, Chico Buarque, Leonard Cohen, Jacques Brell, Gabriel Garcia Marquez, José Saramago, entre vários, foram outros poetas a fazê-lo. Sou um privilegiado por ter nascido quando toda essa gente já tinha andado por cá.

Que outro autor da antiguidade gostaria de traduzir?

Vergílio, claro. Outro poeta até à medula. Quando acabar de traduzir tudo de Horácio, talvez venha a traduzir tudo de Vergílio. Quem sabe. 

De todas as traduções de autores clássicos publicadas em Portugal na última década, qual a que mais o influenciou e porquê?

As Odes de Horácio da Cotovia (risos algo boçais). Foi uma influência decisiva para esta minha última tradução (continuam os risos idiotas e algo pedantes)... Bom, para dizer a verdade sou mais influenciado pelo trabalho da academia inglesia... Nisbet, West, Rudd... Enfim, tenho uma dívida de gratidão para com o trabalho de gente como esta, e tento sempre ser tão sério e honesto como estes foram na sua actividade intelectual e académica.

Pode elaborar um pouco – para os nossos leitores – sobre porque devemos ler as cartas de Horácio hoje (além do motivo óbvio de se ficar com a impressão de que estamos a ler o heterónimo com menos talento de Ricardo Reis)?

Em geral nunca elaboro antes do meio-dia, pode cair-me mal (não me parece que esteja a brincar, este tipo é um pouco afectado). Ricardo Reis nunca escreveu cartas em verso, o que me leva a considerar que talvez o seu horacianismo deixe um bocado a desejar (risos parvos). Bom, essa pergunta que faz é difícil de responder. Cada leitor terá a sua motivação para ler. A primeira razão é clássica: um texto que sobreviveu a dois mil anos de história num estado impecável de conservação (como poucos!) diz muito da sua qualidade.  Depois, o facto de ter sido o inaugurador de um género (cartas em verso), que conheceu grande fortuna no Ocidente, até ter caído aparentemente no oblívio...

Mesmo em Portugal?... (fui como que forçada a fazer esta pergunta, embora no fundo não me interessasse muito a resposta)

Sim, mesmo em Portugal, grandes nomes da nossa literatura, particularmente renascentista, como Sá de Miranda, Pêro de Andrade de Caminha, António Ferreira, Diogo Bernardes, cultivaram o género... Mas essa não é a única razão. A principal é o texto em si, e as tensões que ainda hoje encerram. A tensão entre agradar aos poderosos e liberdade artística. A tensão entre a boémia e o regramento. Mas também a truculência com que ataca os vícios da sociedade, e como expõe cruelmente toda a fragilidade da natureza humana. E todos aqueles conselhos que poderiam facilmente tornar-se mantras na nossa vida, nil admirari, “nada admires”, sapere aude, “ousa saber, ousa ser sábio”, ou frases lapidares como “mudam de céu, não de alma, aqueles que correm os mares”…

Na sua opinião, há algum autor clássico que ainda não tenha sido traduzido para português que nos faça uma falta enorme? 

Parece-me que toda a historiografia clássica está lamentavelmente por traduzir. Tito Lívio, Tácito, Políbio, no contexto romano; são autores que nos relevam o mundo apaixonante da história de Roma e quase não têm tradução em português. Lamentável.

Se Horácio escrevesse a letra de uma canção punk como seria?

Uma canção que nunca seria editada. É demasiado erudito para o punk. Mas seria muito bom vê-lo tentar. É claro que o facto de nem sabermos onde estão os seus ossos deverá dificultar muito a tarefa.

Livros dos editores (II)

 

 

João Coles

Claire-Louise Bennett é uma escritora inglesa que vive em Galway e estreou-se na ficção em 2015 com Pond. Na verdade, já havia publicado ensaios e histórias em várias revistas irlandesas; Pond é o seu primeiro livro. E foi uma belíssima surpresa. Nã…

Claire-Louise Bennett é uma escritora inglesa que vive em Galway e estreou-se na ficção em 2015 com Pond. Na verdade, já havia publicado ensaios e histórias em várias revistas irlandesas; Pond é o seu primeiro livro. E foi uma belíssima surpresa. Não se trata de um romance nem de uma recolha de contos. Digamos uma recolha de histórias ou de episódios encadeados, como cada dia que despertamos forma uma história diferente, umas mais outras menos longas. Bennett fala-nos sobre os prazeres e desprazeres da vida solitária contados por uma mulher que vive longe da cidade, dos devaneios e da dispersão da mente enquanto cozinhamos ou cortamos as unhas dos pés ou quando estamos de papo para o ar ou estamos a ler um livro, da relação íntima com a casa e com os objectos que nela habitam, desta poética do espaço de que falava Bachelard e que muitas vezes nos é alheia: “[home as] a stone plant with cosmic roots, a kind of intimate conduit between the subterranean and the aerial” - quando entrevistada à The Paris Review (PR). O livro é sobretudo isto, um relato da existência da mente em solidão. A solidão que, explica ainda na entrevista à PR, traz atmosfera a uma obra de ficção; a atmosfera rodeia mais eficazmente uma voz solitária tal como a chama de uma só vela.

Foi o primeiro livro de poesia de Bukowski que li por inteiro. Li sempre poemas soltos como se os lesse das várias revistas aonde ele os mandara. A poesia do velho Buk é, por um lado, como a sua prosa, desconstrói tudo aquilo que a precede (para cri…

Foi o primeiro livro de poesia de Bukowski que li por inteiro. Li sempre poemas soltos como se os lesse das várias revistas aonde ele os mandara. A poesia do velho Buk é, por um lado, como a sua prosa, desconstrói tudo aquilo que a precede (para criar há que destruir primeiro a matéria prima), por outro, é aqui que o vemos no seu melhor. Continuamos no seu imaginário de L.A., a sua linguagem crua, o seu humor aguçado, todo o álcool derramado também, claro, mas vemos com maior clareza o que nos romances e nos contos acaba por se camuflar, ou seja, o Charles Bukowski que em sua casa lê “The Shower” para as câmaras de filmar em pouco menos de 2 minutos. A epígrafe da primeira parte do livro resume-o muito bem: “one more creature dizzy with love”.

Outra vez Bukowski. Foi um ano passado em sua companhia, de maneira que repeti-lo é inevitável. Na correspondência com Sheri Martinelli, e não ocorria com muitos, segundo o editor deste livro, Bukowski deixa cair a máscara e envolve-se em discussões…

Outra vez Bukowski. Foi um ano passado em sua companhia, de maneira que repeti-lo é inevitável. Na correspondência com Sheri Martinelli, e não ocorria com muitos, segundo o editor deste livro, Bukowski deixa cair a máscara e envolve-se em discussões intensas sobre arte e literatura e estética. Sim, entrevê-se nestas cartas uma espécie de crítico literário desconhecido escondido entre o beberrolas e o durão das ruas de Los Angeles, ofuscado por Henry Chinaski. Sheri Martinelli foi das primeiras pessoas a publicar a obra de Bukowski, e a sua revista a primeira a recenseá-la. Tudo isto não antes de a chumbar numa primeira abordagem com uma carta de rejeição muito singular na qual lhe dá conselhos gratuitos num tom condescendente, o que, claro, leva Bukowski a reagir tempestuosamente, defendendo a sua estética e o seu estilo, o seu meio de expressão que não obedecia a quaisquer regras a não ser as dele. É assim que começa este livro, com as duas cartas que criaram a centelha desta relação improvável entre estes dois extremos opostos e que se manteve viva durante sete anos.

José Pedro Moreira

Todos temos livros a que precisamos de regressar. Não são necessariamente os melhores livros que lemos, mas são os livros que conseguem verbalizar impressões e sentimentos que nos acompanham, mas aos quais temos dificuldade em dar forma. Não são tan…

Todos temos livros a que precisamos de regressar. Não são necessariamente os melhores livros que lemos, mas são os livros que conseguem verbalizar impressões e sentimentos que nos acompanham, mas aos quais temos dificuldade em dar forma. Não são tanto um porto de abrigo, antes uma cidade estrangeira onde nos sentimos surpreendentemente em casa. No início de 2017, o Brexit e a eleição de Trump anunciavam um mundo mais sujo, mais desigual e mais indecente. Talvez por isso tenha sentido a necessidade de reler Antigos Mestres. Um velho crítico de arte misantropo tenta não se matar depois da morte da sua companheira, a única pessoa que tornava a existência tolerável. Thomas Bernhard escolheu, como subtítulo, comédia.

De como a literatura pode mudar um homem, ou de como a literatura nos pode fazer homens. Com alguma intriga académica pelo meio. Recomendado pelo Paulo Rodrigues Ferreira. Não lhe poderia estar mais grato.

De como a literatura pode mudar um homem, ou de como a literatura nos pode fazer homens. Com alguma intriga académica pelo meio. Recomendado pelo Paulo Rodrigues Ferreira. Não lhe poderia estar mais grato.

O melhor escritor de humor português escreve sobre o humor. O que raio é, para que serve, como fazer rir. Pelo meio cita-se Shakespeare, Beckett, Camilo Castelo Branco, Sartre, Chesterton e George Foreman. Sim, é bastante divertido.

O melhor escritor de humor português escreve sobre o humor. O que raio é, para que serve, como fazer rir. Pelo meio cita-se Shakespeare, Beckett, Camilo Castelo Branco, Sartre, Chesterton e George Foreman. Sim, é bastante divertido.

Uma história da Filosofia Ocidental, desde a Grécia Antiga até ao Renascimento. Sem ser chato ou abstruso, sem intimidar o leitor com longas notas biográficas, mas sem esconder as lacunas nem tratar os leitores como idiotas. Gottlieb é erudito, clar…

Uma história da Filosofia Ocidental, desde a Grécia Antiga até ao Renascimento. Sem ser chato ou abstruso, sem intimidar o leitor com longas notas biográficas, mas sem esconder as lacunas nem tratar os leitores como idiotas. Gottlieb é erudito, claro, um guia sóbrio e com sentido de humor. The Dream of Enlightment, a continuação, fará certamente parte das minhas leituras de 2018.

As referências constantes a Bukowski na poesia do João Bosco da Silva e as excelentes traduções que o João Coles tem publicado na Enfermaria tornaram inevitável que o lesse mais este ano. O João Coles escreve sobre o livro em cima muito melhor do qu…

As referências constantes a Bukowski na poesia do João Bosco da Silva e as excelentes traduções que o João Coles tem publicado na Enfermaria tornaram inevitável que o lesse mais este ano. O João Coles escreve sobre o livro em cima muito melhor do que eu seria capaz. Basta-me dizer que Love is a dog from hell foi o meu livro de poesia favorito do ano.

Jason Schreier é um dos editores do site Kotaku. Inteligente, liberal e provocador, é também uma das bêtes noires do movimento Gamergate (uma ramificação do fenómeno Alt Right), e uma das vozes mais interessantes a falar sobre videojogos.  Apes…

Jason Schreier é um dos editores do site Kotaku. Inteligente, liberal e provocador, é também uma das bêtes noires do movimento Gamergate (uma ramificação do fenómeno Alt Right), e uma das vozes mais interessantes a falar sobre videojogos.  Apesar de muitos de nós passarmos umas quantas horas por semana a jogar videojogos, sabemos muito pouco de como são feitos. Blood, sweat and pixels acompanha o longo e quase sempre tortuoso processo de criação de dez jogos recentes. Schreier é um jornalista exímio, e cada capítulo está apoiado em horas e horas de entrevistas. É também um bom contador de histórias, que consegue transportar-nos para o meio do caos que é um projecto criativo que envolve centenas de pessoas, pressionadas por prazos e expectativas irrealistas. Há tanta peripécia que por vezes nos esquecemos que não estamos a ler um livro de contos. Dei por mim a encontrar pathos onde menos esperava: o capítulo sobre Stardew Valley, por exemplo, obra solitária de Eric Barone (também conhecido Concerned Ape), lê-se como uma história de obsessão, amor, tolerância e desejo irracional de criar algo único, e é difícil não sentir empatia pela figura.

Em termos de banda desenhada, o meu 2017 foi marcado por finalmente ter lido a totalidade dos volumes de Preacher. Preacher conta a história de Jesse Custer, um pastor que adquire poderes sobrenaturais, e parte numa roadtrip pela América fora, na co…

Em termos de banda desenhada, o meu 2017 foi marcado por finalmente ter lido a totalidade dos volumes de Preacher. Preacher conta a história de Jesse Custer, um pastor que adquire poderes sobrenaturais, e parte numa roadtrip pela América fora, na companhia da sua namorada e do seu amigo vampiro. Vão à procura de busca de deus – que parece ter deixado os céus e estar a fugir deles.

Sabia que era uma das colecções mais importantes dos anos 90, e parece ser impossível descrever os livros sem usar as expressões  “iconoclástico” e “ridiculamente violento”. Não são desadequadas, Preacher compraz-se em chocar os leitores, mas minimizam a elegância de como a obra aborda temas de amizade, amor e religião. Que uma meditação humanista sobre deus coexista com uma personagem chamada Arseface ou um vilão que parece um caralho andante sem se perder num riso pueril atesta a qualidade da escrita de Garth Ennis.

Tatiana Faia (continuação)

Elizabeth Costello de J. M. Coetzee. Coetzee é um dos meus escritores favoritos. Acho que se pode ler qualquer coisa dele de uma assentada. Não sendo imediatamente evidente como é que um romance sobre uma escritora de idade avançada, apologista de u…

Elizabeth Costello de J. M. Coetzee. Coetzee é um dos meus escritores favoritos. Acho que se pode ler qualquer coisa dele de uma assentada. Não sendo imediatamente evidente como é que um romance sobre uma escritora de idade avançada, apologista de um vegetarianismo radical, que num dado momento a leva a estabelecer uma comparação entre o abate de animais e o holocausto, termina num ensaio sobre as raízes clássicas e bizantinas do mundo em que vivemos, sobre a religião, sobre África, sobre Kafka como autor fundamental do nosso tempo, sobre o vazio da vida de escritor, que surge como uma profissão que exige um compromisso e uma honestidade de pendor quase espiritual, quase uma independência sobre-humana. Perturbador, profundo, impecavelmente bem escrito. Não há neste livro nada que não seja relevante para pensarmos o que seja viver eticamente. 

Aftermath. On Marriage  and Separation de Rachel Cusk. Há no princípio deste livro uma citação do Agamemnon de Ésquilo, daquele passo muito debatido por classicistas, em que se lê, Zeus has led us on to know,/ The Helmsman lays it down as law /…

Aftermath. On Marriage  and Separation de Rachel Cusk. Há no princípio deste livro uma citação do Agamemnon de Ésquilo, daquele passo muito debatido por classicistas, em que se lê, Zeus has led us on to know,/ The Helmsman lays it down as law / That we must suffer, suffer into truth. Uma das unidades sociais mais básicas do mundo em que vivemos continua a ser o casamento. Não há nada de escandaloso ou chocante neste livro de Rachel Cusk, ainda que o livro tenha sido violentamente atacado. Aftermath é sobretudo um ensaio sobre o violento colapso de uma ordem, sobre feridas e cicatrização. Como arrancar um dente. The last supper, Outline, A life’s work, Aftermath. De um modo quase discreto, capturando o que parecem ser as situações mais comuns que estruturam as vidas de mulheres, o parto, o casamento, trabalhos e férias de família, os livros de Rachel Cusk lembram-nos que há na literatura um poder testemunhal que nos ajuda a viver um pouco melhor.