O Anjo Aniquilador no FB

Now my advice for those who die
Declare the pennies on your eyes

The Beatles, “The taxman”, Revolver, 1966

foi em 2004
nunca me esquecerei
Paris
todas a manhãs caminhava de Montmartre
até ao Quartier Latin
atravessava o Sena
ora pela Pont des Arts
ora pela Pont Royal
dependendo do meu humor
do tempo
e do fluxo de turistas
antes das aulas
ia ler para um café
sempre o mesmo
na Rue des Écoles
lia a poesia de Celan
e sentia a poesia de Celan
como só em Paris
num dia de Primavera
se pode sentir
a poesia de Celan
uma lata de Coca Cola
custava 4€
a arte exige sacrifícios
é quando estamos prestes a desistir
que o véu de Maia se rasga

a Beleza
o anjo aniquilador
de que falava Rilke
é insuportável
disse em voz alta
como se fosse a divindade
que falasse através da minha voz

é insuportável
porque infinitamente humano
foi precisamente então
que nasceu o meu primeiro livro
Um Parto de Espanto

escreve o poeta no Facebook
antes de distribuir prodigamente
likes como autógrafos
nas sessões de leitura
que regularmente organiza

abaixo
uma fotografia
do anjo aniquilador
projectando sobre a paisagem
a sua sombra indómita
sobreolho franzido
por pensamentos pesados
a cerveja consumida nas leituras de poesia
pode ser considerada
uma refeição de trabalho
para efeitos
de declaração de impostos?


mais abaixo
ainda
a imagem
do anjo aniquilador
erguendo um cachecol do Benfica
a legenda
reza somente
no domingo
até os comemos

Eduardo Quina, Ausência (recensão)

ausencia-capa.jpg

Em ausência [pequena liturgia de um regresso] (Eufeme, 2017), Eduardo Quina experimenta uma poética do desconsolo, indicado pelo título e confirmado por uma semântica da dor, do disforme, do abandono, da solidão, do desamor, da desesperança.... Estranho, quando sabemos que há muito se estabeleceu uma corrente isomórfica entre o êxtase poético e o êxtase religioso (entre nós, por exemplo Tolentino de Mendonça ou João Moita). Mas Eduardo Quina quis inverter Novalis, em vez da criação poética ajudar à criação do Universo, vemo-la mais como um apontador, e amplificador, da imperfeição e do desespero. Os recortes que imprime no tecido do mundo abrem para lugares sombrios. A transcendência, mistura de deuses pagãos e bíblicos, não funciona como um refúgio de compaixão, é antes um catalisador do mal. Esta interpretação ousa o que talvez não devesse, como diz Pessoa “Os Deuses são a encarnação do que nunca poderemos ser.” (Livro do Desassossego). Ou seja, a Alteridade jamais compreendida. De qualquer forma, Eduardo Quina compôs a sua língua e com ela fabricou um universo (não o Universo de há pouco), mais perto de Francis Bacon do que de Gustav Klimt, de Nietzsche do que de Kant, de Joseph Conrad do que de Gabriel Garcia Marquez, de Beethoven do que de Mozart. Um universo sem paz nem alegria, mas um universo. E isto é capaz de conjurar muita coisa.

O primeiro poema do livro, “[nota]”, mostra um trilho que podemos seguir para nos aproximarmos do pensamento, mais vasto do que o do autor, que lhe deu origem. Aí se evoca, numa tonalidade trágica, Orpheu, a penúria, a impunidade dos deuses, trazidos à luz pela palavra poética, que não passa de “estilhaços repercutidos e insignificante”. Uma evocação que revela o pano de fundo do livro: “memória e ausência.” Serão estes termos – teológicos e históricos – a compor a possibilidade do recomeço, com gestos tensos, elementos de um corpo que aguçou os sentidos do sofrimento, por isso as palavras, como diz em “[Re]começar”], só podem explodir-nos nas mãos e silenciar-se na voz.

Eduardo Quina desafia o vórtice do tempo com “relâmpagos poderosíssimos / para que se erga a luz sobre as imagens”, mas, como julgamos acontecer aos humanos que juntam arte e eternidade, compõe pequenas ramificações poéticas que parecem rijas, embora acabem por não pesar na política do Cosmos. Por isso, não deve haver “remorsos ou falsos consolos”, a escuridão combate a luz, e parece ganhar-lhe. E quando isso não acontece, a resplandecente e magnânima luz divina tem somente a força caprichosa do seu ensimesmamento: “a vida é apenas um conjunto de subtracções / e parece que os deuses nos sabem magoar / como são belos os deuses desprovidos de misericórdia.” (“3.”). Os deuses transportam “morte e ilusão”, até porque vivem numa “arbitrariedade compulsiva”, mesmo quando imaginamos essa compulsão feita de amor.

Se isto poderia heroicizar o homem, como pensava Nietzsche? Não. A nossa incompetência, com as palavras e com a vida, revela-se irredutível quando lemos Ausência. Não sabemos dizer as coisas demiurgicamente e deixamos morrer a amada duas vezes. Resta ao poeta ir de “alucinação em alucinação”, embora aqui, como não podia quase deixar de ser, Eduardo Quina abra uma frincha por onde entra claridade, permitindo-lhe, quando abandonar o ofício e se proteger com a armadura de uma espécie de amor fati, ainda “escrever humildemente / longe do mundo”.

Isto dá-se sensivelmente no meio do livro, a partir de onde parece ser possível construir “os vícios, etapa a etapa”, mesmo no impasse de “um estático clarão” ou na inclinação para o mal que provoca uma segunda morte. É assim que lemos no poema “13.” “uma papoila que floresce uma última vez: / abre-se onde já nada se espera / no som definitivo da demência”. Este desvio à lucidez é uma pequena bênção que permitirá outra liberdade do corpo (talvez o marcador semântico mais usado por Eduardo Quina), lembremo-nos de Dioniso. A alteridade é agora partilhada entre a transcendência e a imanência, sem empatias salvíficas, mas vemos aparecer uma nova política dos afectos. Pode olhar-se o futuro, mesmo quando nos “rendemos à ideia de tragédia.” O mito e a metafísica, o labirinto e o Céu, envolvem-nos agora sem nos esmagar, podem dilacerar-nos, mas não esmagar como quem se alegra do som de uma barata pisada numa geometria calculada de sapatos caros. E mesmo terminando, noutra “[nota]”, a revelar-nos que há somente medo, facas, barbárie, delírio, inferno, demência e que “a poesia é uma farsa.”, e talvez seja isso mesmo, Eduardo terminou um livro que alguém lerá embebido pelas forças emotivas da vigília. O autor, mão dos deuses, da alma e do corpo, terminou um livro que viajará pelo mundo, com a sua orografia acidentada e a combater – perdendo? – o tempo da pressa. Escolheu cuidadosamente as palavras, teve essa liberdade (apesar de nos alertar para a pujança do destino), olhou para as folhas em branco e anteviu o olhar do leitor em parágrafos com formas orgânicas. Acusou os deuses ao mesmo tempo que os louvou (a indecisão habita os crentes genuínos). Deformou o corpo. Invocou a morte, não como um fim mas como um meio (a pior das mortes, diz-se). Esboçou uma metapoética, à semelhança dos seus companheiros de ofício (quem resiste a esta tentação?). Olhou para o alto e percebeu que se afundava no sem-sentido ou pisava um campo minado. Mas fez tudo isto em júbilo; sombrio, se quisermos. E este trabalho, que exige uma recepção audaciosa, é a luz negra que prova a nossa filiação prometeica, insistimos e rimos, mesmo quando não conseguimos sair da esquina da primeira circunvalação do labirinto e isso nos deveria entristecer para sempre. Experimente-se, pois, a ausência.

Antes da morte que um português merece

Lisboa, Rua da Escola Politécnica 

Lisboa, Rua da Escola Politécnica 

Não me lembro ao certo da primeira livraria da minha vida tão cheia de livrarias. Suspeito que pode bem ter sido a Bulhosa em Entrecampos, de todo não tão decadente então. Eu devia ter talvez quinze anos. Esta é uma primeira vez – a primeira vez em que comprei um livro absolutamente sozinha, longe do burburinho de pais, primos e irmãos. Com a audácia de um leitor que entra numa livraria certo de si. Há umas semanas, Elena Ferrante tinha uma crónica no The Guardian sobre a intensidade das primeiras coisas, primeiro beijo, primeira vez, primeiro dia de escola, primeira palavra lida, primeiro emprego.  A autora italiana fala de como as primeiras vezes não são necessariamente as ideais, as melhores. O que afinal torna as primeiras vezes tão importantes é o seu carácter de momento marcante, a dimensão mitológica, a relação indelével entre a primeira vez que fazemos algo de particularmente significativo na história das nossas vidas e a noção de que isso se vai tornar parte da nossa história ou um hábito. Ternura, alegria, decepção, amargura - a primeira vez enquanto ponto a partir do qual narrar, nem que seja só a nós próprios, a crónica de nós próprios. Séneca escreveu que nada do que é humano nos é alheio, mas a articulação do humano tem uma velha ligação com a habilidade de nos fazermos entender. Tudo o que fica de fora dessa intuição, o que é inenarrável, é tão mais precioso ou monstruoso exactamente porque pode apenas ser indiciado pela linguagem. Mostrado, não demonstrado. Não sei então porquê esse primeiro livro, nessa livraria em Lisboa. O dia de escola devia ter acabado, podia ter sido uma tarde livre, eu devia estar a fazer tempo para que chegasse o autocarro. E porque naquela altura eu me queria tornar uma classicista, gostava de dizer que foi algo como Platão ou Homero, mas isso foi mais tarde. Uma helenista não era o que eu queria ser naquela altura. Provavelmente algum livro chato, sobre história do império romano. E no entanto há qualquer coisa como um golpe de felicidade, como um fruto aberto ao meio, como a certa evocação do odor de romãs no princípio do Outono, sobre uma mesa de madeira, quando Lisboa entardece sobre as suas mais amplas artérias. O ruído do tráfego e os faróis apontados à estátua dos Heróis da Guerra Peninsular e o livro na mão, atravessando a estrada, correndo para o outro lado daquele dédalo de semáforos. Qual foi o último livro que comprei? Uma tradução de Safo, apressadamente, numa livraria em Bloomsbury, no bolso do casaco depois, numa caminhada em direcção a Holborn, Oxford Street, Marble Arch, no autocarro de volta a Oxford abrindo o livro. Dando por mim, essa primeira cena da adolescência repete-se nesta. Coexiste com cenas de outros livros, versos de outros poetas: a cena da madalena em Proust, aquele texto de Borges em que um homem é esfaqueado para que se repetisse a cena da morte de César, sobretudo essa epifania amarga, aquela frase de Pavese, tantas vezes repetida, só é nosso aquilo que perdermos, o que existe intimamente na memória e que pode voltar de repente, inesperadamente, como uma conclusão.

Londres, Regent Street

Londres, Regent Street

Estas são as coisas amadas, foi o que o poeta disse, previsivelmente. Estão unidas porque uma certa coerência as enlaça. Mas não é uma coerência da memória, é um impulso. Queria crer, pretensiosamente, que a paixão de um leitor une estes dois momentos, queria dizer que o que acontece em Londres pode resgatar a cidade deixada para trás, que me divertem as intermitências da nostalgia, mas é adulto este cansaço e sério, e a noite das quatro da tarde em Londres faria dessa afirmação uma espécie de hybris. Antes da morte que um português merece (por saudade), tento pensar noutros lugares, ou de como eles se podem ultrapassar a eles próprios, salvarem-nos um pouco da contingência, ou de como todos os lugares são efémeros, que só uma coragem de ferro e algum amor pela inesperada estranheza do mundo nos mantém de pé no anonimato rotineiro de qualquer cidade. Que mesmo onde as palavras que enchem os livros confinam com o que não saberíamos dizer, mesmo no mais estranho dos lugares, algo de reconhecível pode ser resgatado e isso pode ocorrer-nos como um começo. Por exemplo, no bolso do casaco, sei que há algures um fragmento em que se pode ler:

κατθάνην δ’ ἴμερός τις [ἔχει με καὶ
λωτίνοις δροσόεντας [ὄ-
χ[θ]οις ἴδην Ἀχερ[

but a kind of yearning has hold of me – to die
and look upon the dewy lotus banks
of Acheron

(Tradução de Anne Carson em If not Winter: Fragments of Sappho, Virago, Londres, 2003)

Livros indirectos

Ulysses James Joyce.png

Por diferentes razões, há estantes cheias de livros silenciosos, ou melhor, de livros silenciados. Os que merecem o olvido são textos que se esgotaram, ou porque revelaram tudo, monótona e simploriamente, ou porque não conquistaram o sopro vital dos leitores (num retorno de generosidade).

Contra o fracasso, alguns defendem a sujeição do livro a uma qualquer utilidade, e o mais útil que se possa imaginar é dizer ao leitor aquilo que ele quer ouvir. Acredito, pelo contrário, que um livro deve ser excêntrico, abrir para o desconhecido, fabricar um pouco do porvir, sacudir o leitor, alargar o mundo. Resistir às interpretações lineares, armando-se de múltiplas centralidades, estar sempre um pouco à deriva, ser, como queria Jacques Derrida, indecidível. Ou ainda, conter linhas impuras e opacas que impeçam comentários claros e definitivos, dissolvendo a lógica, mais económica do que estética, do bestseller. Não pretendo elogiar a obscuridade pela obscuridade, entendam-me bem; é evidente que um livro tem de revelar algumas das suas intenções, ter força sugestiva e elucidativa, conduzir à emulação... Trata-se, antes, de denunciar a transparência a qualquer custo, a simplificação estéril, os sound bites que definem de uma vez por todas um qualquer sentido (era bem isto que a novilíngua pretendia). E por isso todas as obras devem ser indirectas, ter uma presença densa e polifónica.

Um livro sem uma certa indecidibilidade, um inteligente claro-obscuro, um livro directo transforma-se rapidamente em matéria inerte, e passará pelos escaparates como cão por vinha vindimada, como um meteoro pelo olhar de uma claque de futebol. Se deixar que se esgotem os seus significados, se não forçar uma e outra vez o jogo da reflexividade, onde o exterior (actualidade) se confronte com o interior (subjectividade), se sucumbir à nitidez e à utilidade terá uma esperança de vida, se chegar realmente a viver, tão curta quanto merece (a longevidade continua a ser o grande critério artístico). Deixem-me, para melhor me compreenderem (mas não totalmente), dar exemplos de alguns autores que me incitam a lê-los infinitamente, desses que não se deixam apanhar à primeira, nem à segunda, nem.. Platão, Dante, Shakespeare, Dostoiévski, Nietzsche, Kafka, Joyce, Celan. Autores que vêm até nós com rodeios, autores enigmáticos, enganadores, hilariantes, cheios de circunvoluções, mas que ao mesmo tempo nos permitem descobrir novas parcelas do mundo, ou de mundos, que aumentam a vida porque trazem sempre um derradeiro arroubo de lucidez enlouquecida.

Tempestade das mãos (recensão)

Capa-TEmPESTADE.jpg

Vem a propósito citar Slavoj Zizek, que surripiou a ideia a Gilles Deleuze, que por sua vez a tinha roubado a Marcel Proust, que também a tinha encontrado, mais do que criado: “o pensamento nunca chega à luz do dia espontaneamente, per se, na imanência dos seus princípios; o que nos incita a pensar é sempre um encontro traumático, violento, com um real exterior que se nos impõe brutalmente, pondo em causa as nossas maneiras habituais de pensar. Um pensamento verdadeiro, enquanto tal, é sempre descentrado: não pensamos espontaneamente, somos forçados a pensar.”[1]

I

Ora, André Domingues suplementa e não suplementa esta ideia. O livro que acaba de lançar para o meio da micro comunidade dos leitores de poesia (só podiam ser poucos), trabalho editorial da Debout Sur l’Oeuf, Coimbra 2017, 61p., sacode quem o abre (o título é um aviso), mas ao mesmo tempo parece haver uma distância sã entre a intensidade poética da escrita e aquilo que somos capazes de receber (o “pathos da distância” de que falava Nietzsche). É como se André Domingues não nos quisesse dar tudo, não por ser avarento, mas porque o seu jogo poético é realmente singular, na Tempestade das Mãos vemo-lo a compor poesia e a compor-se a ele mesmo, a fabricar-se, a subjectivar-se. É por isso que devemos encontrar a linha de leitura fora dessa vontade tão habitual de a partir da intenção da obra enxertarmos uns galhos com a nossa visão do mundo. Podemos também entender isto como um respeito quase messiânico pela alteridade do leitor, deixando-o a braços com uma incubação pessoal do que recolhe no seu livro. O messianismo não trata somente da salvação, mas também de gestação experimental de moléculas demiúrgicas, algumas maléficas. Neste sentido, o mito, essa magnífica potência do falso, sempre foi messiânico.
Por outro lado, há encenações e sugestões às quais é difícil ficar indiferente, por exemplo quando escreve:
[…]
E contra os grandes declives da língua
perder o verbo, perder o sítio, poder abrir
com a boca o fecho do teu vestido
e a própria corrida contra o tempo
tornar-se ardente como o eco, a noite
os cabelos da hora dispersos
[…]
(“Cegas Transparências”)

Toda esta imagética do movimento, descendente, e decadente, cronometrada por um tempo apressado, movimento que produz incandescências no espaço indistinto do eco e da noite, para, finalmente, encaixar a zona erógena dos cabelos num medidor abstracto; toda esta potência sugestiva só pode obrigar-nos a pensar, um pensamento emotivo, claro. Há mesmo tentativas de André Domingues fazer genealogias antropológicas, procurando desenhar as possibilidades do humano actual: “vínhamos de noite como animais estendidos / à sombra de uma enorme metrópole. […] Vínhamos claros e sonoros como dádivas desfocadas. […] a casa fulminada / os bosques descalços / os rostos sem rosto.” (“Todas as fontes”).

Mas se quiséssemos, como agora é já um hábito fazer-se, escolher o que prevalece no estilo de André Domingues, diríamos que da mesma forma como a “saia que esvoaça para além do previsto! (“O baloiço”) as suas palavras emergem e projectam-se fora de qualquer previsão inteligível (embora se deve atender aos presságios), sobretudo de uma inteligibilidade poética conservadora. São pura heterogénese, elas vêm a nós sem os protocolos que pré-determinam o sentido, ou sentidos. São uma tempestade de palavras, alimentada por forças hiperbólicas que chegam de todos os lados. Se há uma lei mínima neste livro de André Domingues, é a lei da noite, de uma obscuridade fecunda que remete para os recantos mais periféricos do Cosmos (“Tu, por detrás da transparência”), onde nascem os centauros. Talvez por isso seja uma poesia que gosta de ser dita, o sopro de André Domingues nas brasas do seu fogo sagrado precisa de ser ouvido. É esse fogo que ilumina a noite, não para mostrar impudicamente os contornos das coisas, mas para espalhar um halo de calor vivificante nos vendedores do desespero. Da mesma forma, o silêncio que se adivinha por detrás de tantas palavras é combatido por clamores genéticos: “Eu grito / porque quero / originar.” (“A casa”). 

II

Em Tempestade das Mãos, escapando, como disse, das mãos sapudas de certos leitores agrimensores, André Domingues sente-se livre para refazer os códigos comuns dos significantes (“Por vezes sinto o pânico de uma estrela. / Por vezes piso o palco do mistério.”), e no entanto percebe-se uma vontade de que o leitor apanhe alguns fios do novelo da comunidade metafísica da linguagem, uma comunidade mínima, os poetas guardam e projectam algo raro, um sentido raro e no entanto vital: talvez a ontologia da linguagem. Não da linguagem toda, como queria Heidegger, da linguagem dos afectos, que conjugam emoções com descrições e esperanças. O trabalho deste livro é também o de refazer os acordos linguísticos tradicionais, renomear a vida e a morte, mas sobretudo os gestos humanos de quase todos os dias com sintagmas tensionais, feitos de um agon inesperado entre palavras: “tudo se eleva numa imóvel e imensa derrocada” (“Anatomia da Melancolia”), “uma irradiação de ideias fixas” (“Salvo este crepúsculo”) ou, entre outros, “beijávamos flores armadilhadas” (“O ausente”, o meu poema preferido). Por isso, olho para o seu livro como um fluxo em ziguezague, nada é linear, tudo é rizomático. Uma heterogeneidade especial das partículas poéticas que compõem os poemas, como se cada palavra vivesse uma certa soberania na ligação, agónica ou de cumplicidade trágica, com outras palavras. São palavras-força, mais do que palavras-significado. Muitas vezes auto-referenciais, e quando abrem para um qualquer sentido, percebe-se que se trata de algo por vir. Tanto mais que André Domingues trabalha as palavras até ao limite que toca no enigma que as originou. Uma poética agónica à procura de outra fonte linguística, reinventar a língua, mais com ferramentas nostálgicas do que utópicas.

A uma passante

A dupla nacionalidade do sorriso.
O corte longitudinal do olhar.
O teu ar de crianças sentada no colo
da criação.

Não era difícil de adivinhar
que mantinhas uma relação séria
com a efemeridade.

III

Mas nada está atomizado, não se trata de uma poesia de dicionário. O autor (ainda se pode usar este termo?) é um artífice das palavras, já o disse, as suas injunções improváveis reforçam o poder semântico do jogo poético, há uma lógica molecular que passa bem sem os sistemas taxonómicos rebeldes que normalmente organizam os desvios ao senso comum. As revoluções são aqui delicadas, quase gentis, trata-se de recompor os elementos da língua sem a violência de um novo acordo linguístico. Apesar disto, há muitas histórias neste livro, inverosímeis à superfície, mas que despertam no leitor memórias de aventuras, bastantes cheias de estratégias erógenas. A inventividade está também em reunir, ou não separar, o orgânico e o inorgânico, revisita-se o Crash de David Cronenberg em “A emergência da rosa”:

[…]
Através do vidro recorto-te o perfil
de dama reservada na culminação
da carruagem
estou já dentro do diálogo
que as tuas pernas nuas travam
com o banco impávido do metropolitano
[…]

E revisita-se Giorgio de Chirrico, que está em múltiplos lugares do livro, justamente a desfazer a geometria dos milhões de páginas que compõem, com dogmas, a sintaxe imagética do mundo:

[…]
Havia ainda o vulto de um piano ao longe
lá onde a sombra das persianas persistia.
E tudo era exactamente impreciso e consentido.
Como uma verdade perfurada.
(“Permanências pobres”).

Um livro de desconstrução feliz (felicidade cósmica), à procura de leitores atentos e corajosos, sem grelhas, que saberão receber os apertos poéticos de André Domingues e fazer deles um trampolim para se tornarem, pelo menos ligeiramente, diferentes. É para isso que cá andamos, não? Para nos tornarmos diferentes! Acabei do vos dar, com o autor, a “mais recente claridade das promessas” (“O plano da discórdia”).


[1] A Subjectividade Por VirEnsaios Críticos sobre a Voz Obscena, Lisboa: Relógio D’Água.