Não-lugares?

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Em 1992, Marc Augé publicou na editora Seuil um livro importante de início de século (apesar da data): Non-lieux. Introduction à une anthropologie de la surmodernité (editado em Portugal pela 90 Graus e, depois, pela Letra Livre, com tradução de Serras Pereira; no Brasil a edição é da Papirus, e, pelo que sei, vai na 9.ª). Nele refere que vivemos num triplo excesso: tempo sobrecarregado de acontecimentos, um espaço volátil devido a fortes circulações e deslocalizações e, em relativa contradição, uma concentração sobre o eu-sujeito, uma espécie de egomania. Isto designa a sobremodernidade, assente no tríptico tempo, espaço e sujeito.

Em relação ao espaço, pensado do ponto de vista antropológico, isto é, como factor importante na constituição do ser humano, disse naquele livro que “se um lugar pode definir-se como identitário, relacional e histórico, um espaço que não se pode definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, então será um não-lugar.” Ora, que não-lugares são estes? Meios de transporte, cadeias hoteleiras, hipermercados, estações de serviço das auto-estradas, aeroportos, ou, ainda, campos de refugiados. Estes espaços constituem não-lugares porque não são apropriados pelos humanos, não são habitados, mantendo-se cada indivíduo anónimo e solitário, abandonado. Há apenas frequentadores ou passageiros, desalojados ou refugiados, consumidores ou utentes, são espaços, nas palavras do autor, somente de “circulação, de consumo e de comunicação”.

À partida, parece lógico que a arte mais interventiva (engagé) tome os não-lugares como irrelevantes, se são anódinos para o desenho do humano, então os artistas devem antes procurar exprimir e reflectir os lugares (relacionais, habitáveis, significativos, referenciais...), neste mundo “saturado de imagens e mensagens”. Mas não é isto que Marc Augé diz num texto de 2010, Retour sur les “non-lieux?”. Les transformations du paysage Urbain.

A arte, escreve, sempre teve dificuldade em distanciar-se da sociedade que deve, no entanto, exprimir e reflectir, ainda por cima em termos que sejam razoavelmente compreensíveis para os espectadores (veja-se a catástrofe do experimentalismo ou esoterismo artístico contemporâneo, causa, embora não única, de um neo-elitismo e do folclore consumista). Ora, os não-lugares são cada vez mais... lugares, ou seja, aquilo que parecia a Augé – de um ponto de vista antropológico bastante tradicional, diga-se – irrelevante para o desenho do humano, foi ficando cada vez mais relevante. Os não-lugares que dominam o “nosso novo mundo”, aeroportos, estações, viadutos, hipermercados, centros comerciais... são cada vez mais pensados por arquitectos como “espaços comuns susceptíveis de fazer pressentir aos utilizadores, enquanto utentes, transeuntes ou clientes, que nem o tempo nem a beleza estão ausentes da sua história.” São, como refere, “fragmentos de utopia”, capazes de superar, mais mal do que bem, creio, a angústia global que nos assalta pela degradação social e ambiental que parece ter-se alojado na realidade empírica e, sobretudo, no lado pessimista da mente, que vê o progresso, nas palavras de Steinbeck, como uma “progressão para o estrangulamento”.

Ora, quer porque a intervenção da arquitectura redesenhou os não-lugares, pelo menos os mais recentes, quer porque eles fazem já consolidadamente parte da vida quotidiana (facilmente se está durante anos 2 horas numa auto-estrada por dia, ou se passa várias horas por mês num aeroporto, ou se passeia assiduamente nos centros comerciais...), as artes devem começar a olhar com mais cuidado para eles. Exprimi-los e reflecti-los será uma forma de, no final, compreender melhor o ser mutante que é o humano. Acrescento a isto o peso que a cibercultura (esse novo grande “regime de trocas simbólicas”, como refere Manuel Frias Martins) tem na sobremodernidade. Nos últimos 20 anos, tornamo-nos outra espécie, e a arte, completando a ciência, tem de a compreender e reflectir, isto é, de mostrar, à sua maneira (que é sempre múltipla e surpreendente), no que se transformou o ser humano.

TODA A VERDADE!!!

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Science is really an excuse for people to be stupid.

Mike Hughes[1]

 

 Cassidy: Curiosity won’t just kill the cat, it will bite its head off and stump-fuck the remains ‘til the sun comes up!

Garth Ennis & Steve Dillon, Preacher, vol. 1

 

 1. Celebração da iniciativa privada

 Mike Hughes
62 anos
condutor de limusines
de Apple Valley
California

em 2002
estabeleceu um novo recorde mundial
de salto em limusine
pouco mais de 30 metros

em 2014
voou 400 metros
propulsionado por um foguete
que construiu na garagem
quase perdeu a vida
na aterragem

em 2016
planeava voar mais longe
dos 150 000 dólares necessários
conseguiu angariar
310 no Kickstarter
doados
por uma multidão de dois

este é o homem que cantamos
e o motor irrefreável de sua mente
noite adentro carburando
vastas reservas de combustível
para libertar a humanidade
das densas névoas do engano

 

 2. A Revelação

quando em 2017
Hughes se converteu
ao verdadeiro credo
financiamento
deixou de ser um problema
e no anno domini  2018
depois de uma série de ensaios
seguidos de estadias no hospital
ele revelou
a Verdade ao mundo
cavalgando um foguete-balão
Hughes subiu
100 Km nos céus
de onde lhe foi possível observar
e documentar
o que há muito sabia ser verdade
com cada fibra do seu ser

a Terra é plana

 

 3. O triunfo da Verdade

a batalha
entre empiricismo e dogma
durou semanas
a princípio parecia
que a evidência da Verdade
não seria capaz de romper
a rede de engano tecida
pela vasta conspiração maçónica
que controla
as grandes cadeias de informação
mas o vídeo
da ascensão revelatória
incendiou o Youtube
passado três dias
tinha sido visto
por um quarto
da população do planeta
passado uma semana
começaram os protestos
esses já não eram
tão fáceis de silenciar
depois vieram as confissões
cientistas de todas as espécies
membros de forças de segurança
políticos
a sua consciência cedeu
como uma casca de ovo
a décadas de pressão
foi assim que descobrimos
entre outras coisas que
o homem nunca esteve na lua
aquilo foi tudo gravado num estúdio
com o apoio
das elites de Hollywood
nunca houve dinossauros
esta fraude
foi particularmente difícil
de manter
afinal
quem é que acredita
que a Terra
esteve cheia
de lagartos gigantescos?
a teoria da evolução é um logro
é tudo parte de um plano
do Movimento Secular Zionista
para ocultar a verdade
do verdadeiro criador
da criação
a teoria da gravidade
foi inventada
por físicos americanos
para impedir o homem branco
de ser bom ao basquetebol
o aquecimento global
como é sabido
é uma invenção chinesa
e John F. Kennedy
cometeu suicídio

 

4. O triunfo do povo

o mundo é vasto
            (very very big)
e cheio de maravilhas
            (very very biutiful)
mas nada há de mais maravilhoso
do que deus
que o criou plano
como eu de resto
sempre afirmei
proclamou o presidente
dos Estados Unidos
na sua conta de Twitter
mas nós
o povo
andamos a ser enganados
e explorados
há décadas
e isso acaba hoje
eu declaro guerra
aos inimigos do povo
e por isso
muitos foram presos
ou despedidos
engenheiros aeroespaciais
astrofísicos
astrónomos
físicos de todos os credos
e bioquímicos
e biólogos
e paleontólogos
e comediantes
e técnicos de controle de qualidade do ar
e técnicos de controle de qualidade das águas
e astronautas
e outros membros da NASA
e jornalistas
e agentes do FBI
e professores universitários
e defensores dos direitos humanos
e professores de liceu
e muitos muitos mais
(very very many)
foram presos
ou despedidos
porque conscientemente ou não
eram culpados de atentar
contra a liberdade do povo

e para salvar a democracia
das maquinações
das elites liberais
foi preciso suspender
as eleições

  

5. Novo mapa do mundo

 no centro
o Pólo Norte e a Antárctica
e à volta
uma parede de gelo

no extremo Norte
acharam uma enorme muralha
maior que todas
as muralhas conhecidas
guardada
por agentes da NASA
para lá da muralha
centenas de quilómetros
de terra nova
uma nova América
isso talvez seja um exagero
mais como um novo Alasca
rico em minerais
abundante em feras desconhecidas
bravios gigantes
antropoides azuis
de uma violência insidiosa
mas presas fáceis
para um exército bem oleado
e para lá das terras de gelo
no limite Norte do mundo
um curioso
complexo turístico

no extremo Sul
uma ilha vulcânica
com temperatura média
a rondar
os 40ºC
em constante
melancolia festiva

a este lugar
os peregrinos chamaram
de Inferno
ao outro
no extremo Norte
de Paraíso

ambos os nomes
eram exactos

 

 6. Hotel Inferno

tudo tacanho
em desiludido desarranjo
filas e filas de enormes
bungallows a cair aos pedaços
habitados
sobretudo pela ruína
o lugar fora fundado
em tempos imemoriais
uma estância balnear low cost
de apelo democrático
acessível
às carteiras
mais desesperadas
a homens
dispostos a arriscar
toda a decência
por um pouco de excitação
agora
o ubíquo sistema de som
bombava a batida pop
apenas para as almas
mais degeneradas
pervertidos impotentes
hippies nostálgicos
socialistas aburguesados
a ressacar na praia
a ler romances policiais junto à piscina
bebericando licores com chapéuzinhos de sol
mas a maioria dos residentes
só ao fim do dia
sai da toca
e ainda que Santa Valburga
celebre a cerimónia
todas as noites
fá-lo sem alegria
apenas
por dever profissional

diz ela
no seu sermão

senhor
abençoai aqueles
que ganharam ao bingo
pois sua será
uma garrafa de rum

diz ela
no seu sermão

senhor
castigai aqueles
que defendem taxação progressiva
pois inibem o consumo
e atormentam injustamente
os criadores de riqueza

diz ela
no seu sermão

senhor
perdoai àqueles
que dizem
que o inferno são os outros
pois não conhecem
as provações
do karaoke bar

 

 7. Hotel Paraíso

nenhum indicador
reflectia tão claramente
a podridão moral
em que degenerou
a humanidade enganada
como a baixa taxa de ocupação
do complexo paradisíaco

outrora
as almas de reis
barões da indústria
jet set da velha Europa
vinham aqui
passar a sua quarta idade
a da
dissolução da alma
agora
um grupo de cavalheiros sinistros
e suas esposas acessórias
fatos elegantes
os homens com bigode
as mulheres sem
os dias passados
no casino a fumar

por lá
andava também Aquiles
que passava os seus dias
a jogar xadrez
com uma tartaruga

 

8. Deus fala aos homens

quando o criador viu
da janela do seu escritório
os helicópteros a chegar
ao Hotel Paraíso
não ficou contente
era inevitável
como de resto
tudo é inevitável
mas preferia
que não tivessem interrompido
uma sessão de Call of Duty
suspirou
e pôs a barba
e a toga branca
e ligou
os efeitos especiais
e disse
conduzam
os representantes dos homens
à sala de imprensa
estou pronto
e as hostes celestiais
tocaram as cornetas
e deus apareceu aos homens
farei apenas
uma breve declaração
sem direito a perguntas

conseguem ouvir-me
o microfone está a funcionar?
um dois
um dois
ok
vamos a isso

o que vos queria dizer
o que já há algum tempo
vos tenho tentado dizer
bem
ahm
ahm
deixem-me recomeçar
o que eu vos vinha aqui dizer hoje
é que
bem
foi um erro
desculpem
estas coisas acontecem
e depois quando se começa
não há maneira
de voltar atrás
mas foi
sem más intenções
a sério
juro
não volta a acontecer

e deixou a sala
e nunca mais foi visto

e os hayyoth
quando questionados pelos peregrinos
respondem que está de férias
mas que voltará em breve
mais milénio
menos milénio

 

9. Despertar

é deveras lamentável
que a ciência dos paraquedas
ande muito atrás
dos progressos técnicos alcançados
na área dos foguetes

depois da revelação
e subsequente queda
a alma de Mike Hughes
vacilou por seis meses
entre a vida e a morte
e quando se precipitou
para o lado da vida
ele despertou
numa cama de hospital
num mundo mais plano

este mundo
era mais
do seu agrado
podia-se dizer outra vez
feliz Natal
chamar —— a um ——
e a celebridade trouxe
admiradoras belas
e dedicadas
um mundo melhor
sem dúvida
era claro
que o sacrifício
tinha valido a pena
mas como o aborreciam
aquelas infindáveis discussões
se era uma panqueca a voar no espaço
ou um plano imbuído no infinito
em torno da qual
todos os astros giravam
ou a carapaça de uma tartaruga
sempre fora
um homem de acção
cada vez mais
dava por si
a olhar para a lua
a sonhar um foguetão
grande o suficiente
para lá chegar
fazia cálculos
sussurrava para si mesmo
se aterrar na parte de cima
não deve haver problemas


[1] Apud Alan Burdick, “Looking for life on a flat Earth”, The New Yorker, 30 de Maio de 2018, https://www.newyorker.com/science/elements/looking-for-life-on-a-flat-earth

vamos provar o sol

com que então acaba

com que então acaba aqui

mas recomeça em breve

assim que acordarmos
vamos provar a canela
vamos provar o sol
e depois vão-nos perguntar
por onde é que andámos
e nós vamos desatar a correr pelas ruelas
como aqueles dois miúdos da aldeia de pescadores
que chegam vindos da praia
ao pôr-do-sol das nove
vamos desatar a correr pelas ruelas
e vamos dizer-lhes
que perguntem ao vento
que perguntem às nuvens já rubras
que a nós
não nos apanham
que é tão fácil intuir pelo impalpável
como pelas nossas caras
e não vão perceber nada
como poderiam perceber
se nunca estiveram de veias enlaçadas
uns aos outros
pouco importa
vamos pelas ruelas
ninguém nos descobrirá
vai pela esquerda
eu vou pela direita
encontramo-nos pela calada da noite
se não hoje
amanhã
ou noutro dia qualquer
entre o vento e as nuvens


agosto 2018


Fotografia: joão coles

Fotografia: joão coles

Histórias de Roma de Enric González

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Para o João Coles, meio italiano e agora londrino, que quando o ler vai gostar deste livro

 A colecção de livros de viagem da Tinta da China é uma espécie de tesouro nacional. Como boa parte dos tesouros nacionais, não é tão bem-amada como merece. A história da génese da literatura de viagens enquanto género é divertida, as suas raízes talvez sejam tão antigas como a Odisseia, muitos e veneráveis autores a praticaram (tanto o atesta esta colecção da Tinta da China). Os livros de viagem frequentemente existem na fronteira com outros géneros, guias históricos, culturais, viagens como metáfora de mudanças abruptas, percursos espirituais de auto-descoberta. Enric González não será o primeiro nome que nos passa pela cabeça quando pensamos nos cultores deste género, mas Histórias de Roma foi publicado pela Tinta da China em Maio de 2014, e sucede a Histórias de Londres, do mesmo autor. Qualquer coisa que virem com o nome de Enric González, confiem em mim e leiam-na por favor. Quem é Enric González? Um jornalista do El País que desempenhou funções de correspondente em Londres, Paris, Washington, Roma, entre outros países e trabalhou como jornalista em cenários de guerra tão violentos como o Golfo ou o Ruanda e algures entre uma coisa e outra desenvolveu o hábito de escrever sobre as cidades em que ia vivendo.
Histórias de Roma é um livro breve que contém algumas das frases mais belas alguma vez escritas sobre uma cidade e uma das melhores paródias de discursos políticos de que tenho memória (uma manta de retalhos com frases de discursos de Berlusconi, ver abaixo). Enric González escreve numa prosa leve, ágil, inteligente, urbana, ou seja, o tipo de prosa que nos dá vontade de convidar o autor para beber uma cerveja (embora a palavra cerveja tenha ficado um pouco danificada para mim depois da audiência de Brett Kavanaugh perante o senado norte-americano).
O livro move-se de histórias sobre a Roma antiga, vinhetas sobre vidas de santos, a experiência faraónica de viver num palácio, os rituais que envolvem a morte de um papa, até às descrições de melancólicos nobres romanos (melancólicos mas às vezes capazes de homicídio), passando pelo amor que se pode ter a uma arte tão ambivalente como o género de comédia praticado por Alberto Sordi. Ao mesmo tempo, é um breve livro que nos recorda da alegria de pormenores triviais que são parte da nossa vida de todos os dias: conhecer na cidade onde vivemos o melhor sítio para beber café, a alegria de ler um jornal escrito em boa prosa, a vida de certos bairros a certas horas do dia. Poucos livros que tenho lido estão escritos numa prosa tão elegante, o que sugere talvez que mais do que haver boa prosa jornalística ou boa prosa ensaística, existe boa prosa e pronto, sem esquecer também o trabalho de uma tradutora talentosa, Rita Almeida Simões. Há momentos profundamente comoventes neste livro, e isso é tanto mais tocante quando pensamos que Enric González está apenas a tentar descrever a vida, ao nível da rua, de uma cidade caótica, antiga e cheia de vida. No rescaldo do dia em que o Brasil deixou um candidato a ditador a um passo do poder, deixo-vos aqui um excerto de uma brincadeira de Enric González que se pode encontrar em Histórias de Roma, um monólogo construído exclusivamente com frases proferidas por Berlusconi:

Quero começar por saudar os participantes nesta Conferência contra a Fome, e muito especialmente as bonitas delegadas. Sou o ungido do Senhor. Carrego a cruz embora não me agrade fazê-lo. E todos os anos faço um retiro espiritual, nas Bermudas... Como é evidente, sou eticamente superior a qualquer outro político europeu. Estou em contacto permanente com a Divindade. Escrevi as tábuas da lei, como Napoleão ou Justiniano... Sou o único italiano que escreve sambas em napolitano... Sabiam que Margaret Thatcher me disse que podíamos ter feito uma grande dupla?

Raymond Carver, "Vocês não sabem o que é o amor (uma noite com Charles Bukowski)"

Tradução: João Coles

Vocês não sabem o que é o amor disse Bukowski
Tenho 51 anos e olhem para mim
estou apaixonado por uma miúda
Fiquei apanhado mas ela também ficou agarrada
portanto tudo bem e é assim que deve ser
Entro-lhes no sangue e elas já não conseguem livrar-se de mim
Elas tentam de tudo para dar à sola
mas voltam sempre ao fim e ao cabo
Todas elas voltam excepto
aquela que desanquei
Chorei por ela
mas tinha a lágrima fácil nessa altura
Não me dêem bebida da pesada
Fico intragável
Podia estar aqui sentado convosco e a beber cerveja toda a noite
seus hippies
Podia beber dez litros desta cerveja
e nada é como se fosse água
Mas se me derem bebida da pesada
começo a deitar pessoas pela janela fora
Atiro qualquer pessoa da janela
já fiz isso
Mas vocês não sabem o que é o amor
Vocês não sabem porque nunca
estiveram apaixonados é simples
Tenho esta miúda estão a ver ela é belíssima
Ela chama-me Bukowski
Bukowski diz ela com uma vozinha
e eu digo O que foi
Mas vocês não sabem o que é o amor
Estou a dizer-vos o que é
mas vocês não me estão a ouvir
Não há aqui ninguém
que reconhecesse o amor se ele irrompesse na sala
e vos rebentasse o cu
Antes costumava pensar que as leituras de poesia eram uma derrota
Oiçam tenho 51 anos conheço a vida
eu sei que são uma derrota
mas disse para mim mesmo Bukowski
morrer à fome é uma derrota ainda maior
Portanto aqui estamos nós e nada é como devia ser
Aquele fulano como é que ele se chama Galway Kinnell
vi a foto dele numa revista
Tem uma bonita fronha
mas é professor
Santo Deus conseguem imaginar
Mas vocês também são professores
e já aqui estou eu a insultar-vos
Não nunca ouvi falar deste
nem daquele
Todos eles são térmitas
Talvez seja do ego já não leio muito
mas esta gente que constrói
reputações em cinco ou seis livros
térmitas
Bukowski diz ela
Porque é que ouves música clássica o dia todo
Vocês não conseguem ouvi-la dizer isso
Bukowski porque é que ouves música clássica o dia todo
Isso surpreende-vos não é
Jamais diriam que um sacana dum desgraçado como eu
pudesse ouvir música clássica o dia todo
Brahms Rachmaninoff Bartok Telemann
Porra eu não conseguiria escrever aqui
Demasiado silêncio demasiadas árvores
Eu gosto da cidade é esse o meu lugar
Ponho música clássica a tocar a cada manhã
e sento-me à frente da minha máquina de escrever
acendo um charuto e fumo-o estão a ver
e digo Bukowski és um homem de sorte
Bukowski passaste por tudo
és um homem de sorte
e o fumo azul paira sobre a mesa
e olho da janela para a Delongpre Avenue
e vejo as pessoas a andar calçada a cima e calçada a baixo
e puxo o charuto assim
e depois pouso o charuto no cinzeiro assim
e respiro fundo
e começo a escrever
Bukowski isto é que é vida digo
é bom ser pobre é bom ter hemorróidas
é bom estar apaixonado
Mas vocês não sabem o que é
Vocês não sabem o que é estar apaixonado
Se a vissem compreenderiam o que quero dizer
Ela pensava que eu vinha aqui para o engate
Ela tinha a certeza
Ela disse-me que tinha a certeza
Foda-se tenho 51 anos e ela 25
e estamos apaixonados e ela tem ciúmes
é lindo meu Deus
ela disse-me que me arrancaria os olhos se eu viesse aqui para o engate
Isto sim é amor
E o que é que vocês sabem disso
Deixem-me que vos diga uma coisa
conheci homens na prisão com mais estilo
do que pessoas que vão às universidades
e a leituras de poesia
São sanguessugas que vêm ver se
as meias do poeta estão sujas
ou se cheira mal dos sovacos
Não os vou desapontar
Mas quero que se lembrem do seguinte
só há um poeta nesta sala hoje à noite
só um poeta nesta cidade hoje à noite
talvez só haja um verdadeiro poeta neste país hoje à noite
e esse poeta sou eu
O que é que vocês sabem da vida
O que é que vocês sabem de alguma coisa
Qual de entre vocês já foi despedido
ou já bateu na namorada
ou já levou da namorada
Fui despedido da Sears Roebuck cinco vezes
Despediam-me e depois contratavam-me de novo
Trabalhei para eles como repositor quando tinha 35 anos
e depois fui demitido por roubar bolachas
Eu sei como é já lá estive
Tenho 51 anos e agora estou apaixonado
Esta miúda diz assim
Bukowski
e eu digo O que foi e ela diz
És um grande merdas
e eu digo querida tu compreendes-me
Ela é a única pessoa no mundo
homem ou mulher
de quem admito isso
Mas vocês não sabem o que é o amor
Todas elas voltam para mim ao fim e ao cabo
todas elas voltaram
salvo a tal de quem vos falei
a que desanquei
Estivemos juntos durante sete anos
Bebíamos muito
Vejo alguns dactilógrafos nesta sala mas
não vejo nenhum poeta
Não me surpreende
É preciso ter estado apaixonado para escrever poesia
e vocês não sabem o que é estar apaixonado
é esse o vosso problema
Dá-me um bocado disso aí
Isso mesmo sem gelo
Está bom está óptimo
Vamos lá começar com isto então
Eu sei o que disse mas só tomo um
Sabe mesmo bem
Ok ora vamos lá acabar com isto
e que ninguém fique à beira
de uma janela aberta

in Beauty Will Save the World
(1972)


You don't know what love is (an evening with Charles Bukowski)

You don't know what love is Bukowski said
I'm 51 years old look at me
I'm in love with this young broad
I got it bad but she's hung up too
so it's all right man that's the way it should be
I get in their blood and they can't get me out
They try everything to get away from me
but they all come back in the end
They all came back to me except
the one I planted
I cried over that one
but I cried easy in those days
Don't let me get onto the hard stuff man
I get mean then
I could sit here and drink beer
with you hippies all night
I could drink ten quarts of this beer
and nothing it's like water
But let me get onto the hard stuff
and I'll start throwing people out windows
I'll throw anybody out the window
I've done it
But you don't know what love is
You don't know because you've never
been in love it's that simple
I got this young broad see she's beautiful
She calls me Bukowski
Bukowski she says in this little voice
and I say What
But you don't know what love is
I'm telling you what it is
but you aren't listening
There isn't one of you in this room
would recognize love if it stepped up
and buggered you in the ass
I used to think poetry readings were a copout
Look I'm 51 years old and I've been around
I know they're a copout
but I said to myself Bukowski
starving is even more of a copout
So there you are and nothing is like it should be
That fellow what's his name Galway Kinnell
I saw his picture in a magazine
He has a handsome mug on him
but he's a teacher
Christ can you imagine
But then you're teachers too
here I am insulting you already
No I haven't heard of him
or him either
They're all termites
Maybe it's ego I don't read much anymore
but these people who build
reputations on five or six books
termites
Bukowski she says
Why do you listen to classical music all day
Can't you hear her saying that
Bukowski why do you listen to classical music all day
That surprises you doesn't it
You wouldn't think a crude bastard like me
could listen to classical music all day
Brahms Rachmaninoff Bartok Telemann
Shit I couldn't write up here
Too quiet up here too many trees
I like the city that's the place for me
I put on my classical music each morning
and sit down in front of my typewriter
I light a cigar and I smoke it like this see
and I say Bukowski you're a lucky man
Bukowski you've gone through it all
and you're a lucky man
and the blue smoke drifts across the table
and I look out the window onto Delongpre Avenue
and I see people walking up and down the sidewalk
and I puff on the cigar like this
and then I lay the cigar in the ashtray like this and take a deep breath
and I begin to write
Bukowski this is the life I say
it's good to be poor it's good to have hemorrhoids
it's good to be in love
But you don't know what it's like
You don't know what it's like to be in love
If you could see her you'd know what I mean
She thought I'd come up here and get laid
She just knew it
She told me she knew it
Shit I'm 51 years old and she's 25
and we're in love and she's jealous
Jesus it's beautiful
she said she'd claw my eyes out if I came up here
and got laid
Now that's love for you
What do any of you know about it
Let me tell you something
I've met men in jail who had more style
than the people who hang around colleges
and go to poetry readings
They're bloodsuckers who come to see
if the poet's socks are dirty
or if he smells under the arms
Believe me I won't disappoint em
But I want you to remember this
there's only one poet in this room tonight
only one poet in this town tonight
maybe only one real poet in this country tonight
and that's me
What do any of you know about life
What do any of you know about anything
Which of you here has been fired from a job
or else has beaten up your broad
or else has been beaten up by your broad
I was fired from Sears and Roebuck five times
They'd fire me then hire me back again
I was a stockboy for them when I was 35
and then got canned for stealing cookies
I know what's it like I've been there
I'm 51 years old now and I'm in love
This little broad she says
Bukowski
and I say What and she says
I think you're full of shit
and I say baby you understand me
She's the only broad in the world
man or woman
I'd take that from
But you don't know what love is
They all came back to me in the end too
every one of em came back
except that one I told you about
the one I planted We were together seven years
We used to drink a lot
I see a couple of typers in this room but
I don't see any poets
I'm not surprised
You have to have been in love to write poetry
and you don't know what it is to be in love
that's your trouble
Give me some of that stuff
That's right no ice good
That's good that's just fine
So let's get this show on the road
I know what I said but I'll have just one
That tastes good
Okay then let's go let's get this over with
only afterwards don't anyone stand close
to an open window