Não se pensa espontaneamente, é-se obrigado a pensar (Gilles Deleuze). A velha definição do humano como ser racional, uma essência que não poderia ser intermitente (é essa a condição das essências), há muito que serve apenas o hábito e o mito (apelando à autoridade, convoque-se, tendo ou não em conta as linhas de desenvolvimento, Darwin, Freud e Nietzsche).
Neste caso, o que me obrigou a pensar foi um artigo de Juan Arnau Navarro para o El País, “Cosmopolitas sin salir de casa”, 11 de julho de 2020, e a visão do Largo da Graça, Lisboa, sem turistas (sobretudo porque redobrou o meu interesse no artigo). O primeiro abanão foi mais conceptual, o segundo mais emocional (mistura necessária ao pensar, segundo António Damásio). A ideia-problema central é a de saber se ainda podemos ser cosmopolitas? Com os aeroportos a meio gás, a imposição de quarentenas, os medos individual e coletivo, parece que teremos de nos enrolar num sedentarismo arcaico, petrificando lenta mas seguramente dentro dos costumes mais conservadores.
Juan Navarro, um viajante aventureiro, escreve que um cosmopolita insiste em contradizer a sua identidade nacional. Este comportamento remonta aos cínicos gregos, Diógenes dizia ser “cidadão do cosmos”, totalidade complexa e diversa. Os cínicos, e também os estoicos, tinham uma vocação errante, “a pátria nas sandálias”. Muito depois, os iluministas, sobretudo Kant, retomaram a ideia de um pós-nacionalismo. Contudo, em vez de um cosmos propuseram um universo, com as suas verdades metaculturais (ou metafísicas). O universalismo é menos cosmopolitismo e mais globalização. Kant, que quase não viajou, procurou encontrar aquilo que era comum a todos os seres racionais, comprimir a diversidade em fórmulas imutáveis. Fê-lo, claro, a partir da sua visão do mundo, da sua cultura pietista e conceptual, da sua crença na infalibilidade das matemáticas e da lógica, na forma como imaginou a arquitetura do entendimento. Se isto continha modelos de colonização cultural? É bem provável, e mesmo que não fizesse parte da sua intenção, acabou por autorizar muitas ações de dominação e uma tendência eurocêntrica.
O verdadeiro cosmopolita não pode escandalizar-se, Diógenes era a personificação do escândalo, e por isso jamais se poderia escandalizar. Há que desabituar-se de si, pôr-se no lugar do outro, rir-se de si, e dos outros. Viver na permanente vertigem do diverso, perspectivar (presente e passado), relativizar o que se julga certo e seguro. Sem se escandalizar, mas espantando-se, disponível para atender às extravagâncias do ser humano.
Portanto, não basta ser anti-kantiano (a maioria das vezes por desconhecimento) para ser cosmopolita. O turista de cartão postal, que escolhe aterrar, cansado, num resort com “tudo incluído” vai à procura do que já conhece. Como refere Juan Navarro, pode-se ser cosmopolita sem sair da biblioteca (Borges) e provinciano viajando permanentemente. Para este autor, o “espírito do cosmopolita encontra-se regido pela hospitalidade e o risco, aceita a vertigem antropológica”. O cosmopolita recria-se pela diversidade. É por isso que “apesar do profuso tráfego aéreo e de transmissão de dados de hoje, a Antiguidade foi uma época mais cosmopolita do que a nossa.” Apesar da nossa hipermobilidade, os Antigos intuíram melhor a natureza errante da condição humana. Sabiam que éramos múltiplos e precários, e nem os deuses fabricavam a verdade.