Frank

a filha encontrou
entre a tralha
empilhada no sótão
uma velha antologia
de poesia italiana
bolor
tempo
e uma caligrafia
demasiado complexa
tornaram a dedicatória
praticamente indecifrável
só a palavra
sposa
e a assinatura
Frank

mãe
quem era o Frank?
a mãe
não se recorda
não se lembra
de alguma vez
ter conhecido um Frank
é tão pouco
o que ela consegue
recordar por estes dias

mas ainda sabe
alguns versos de cor

Cosmopolitismo

Ángeles Santos, Um mundo, 1929

Ángeles Santos, Um mundo, 1929

Não se pensa espontaneamente, é-se obrigado a pensar (Gilles Deleuze). A velha definição do humano como ser racional, uma essência que não poderia ser intermitente (é essa a condição das essências), há muito que serve apenas o hábito e o mito (apelando à autoridade, convoque-se, tendo ou não em conta as linhas de desenvolvimento, Darwin, Freud e Nietzsche).

Neste caso, o que me obrigou a pensar foi um artigo de Juan Arnau Navarro para o El País, “Cosmopolitas sin salir de casa”, 11 de julho de 2020, e a visão do Largo da Graça, Lisboa, sem turistas (sobretudo porque redobrou o meu interesse no artigo). O primeiro abanão foi mais conceptual, o segundo mais emocional (mistura necessária ao pensar, segundo António Damásio). A ideia-problema central é a de saber se ainda podemos ser cosmopolitas? Com os aeroportos a meio gás, a imposição de quarentenas, os medos individual e coletivo, parece que teremos de nos enrolar num sedentarismo arcaico, petrificando lenta mas seguramente dentro dos costumes mais conservadores.

Juan Navarro, um viajante aventureiro, escreve que um cosmopolita insiste em contradizer a sua identidade nacional. Este comportamento remonta aos cínicos gregos, Diógenes dizia ser “cidadão do cosmos”, totalidade complexa e diversa. Os cínicos, e também os estoicos, tinham uma vocação errante, “a pátria nas sandálias”. Muito depois, os iluministas, sobretudo Kant, retomaram a ideia de um pós-nacionalismo. Contudo, em vez de um cosmos propuseram um universo, com as suas verdades metaculturais (ou metafísicas). O universalismo é menos cosmopolitismo e mais globalização. Kant, que quase não viajou, procurou encontrar aquilo que era comum a todos os seres racionais, comprimir a diversidade em fórmulas imutáveis. Fê-lo, claro, a partir da sua visão do mundo, da sua cultura pietista e conceptual, da sua crença na infalibilidade das matemáticas e da lógica, na forma como imaginou a arquitetura do entendimento. Se isto continha modelos de colonização cultural? É bem provável, e mesmo que não fizesse parte da sua intenção, acabou por autorizar muitas ações de dominação e uma tendência eurocêntrica.

O verdadeiro cosmopolita não pode escandalizar-se, Diógenes era a personificação do escândalo, e por isso jamais se poderia escandalizar. Há que desabituar-se de si, pôr-se no lugar do outro, rir-se de si, e dos outros. Viver na permanente vertigem do diverso, perspectivar (presente e passado), relativizar o que se julga certo e seguro. Sem se escandalizar, mas espantando-se, disponível para atender às extravagâncias do ser humano.

Portanto, não basta ser anti-kantiano (a maioria das vezes por desconhecimento) para ser cosmopolita. O turista de cartão postal, que escolhe aterrar, cansado, num resort com “tudo incluído” vai à procura do que já conhece. Como refere Juan Navarro, pode-se ser cosmopolita sem sair da biblioteca (Borges) e provinciano viajando permanentemente. Para este autor, o “espírito do cosmopolita encontra-se regido pela hospitalidade e o risco, aceita a vertigem antropológica”. O cosmopolita recria-se pela diversidade. É por isso que “apesar do profuso tráfego aéreo e de transmissão de dados de hoje, a Antiguidade foi uma época mais cosmopolita do que a nossa.” Apesar da nossa hipermobilidade, os Antigos intuíram melhor a natureza errante da condição humana. Sabiam que éramos múltiplos e precários, e nem os deuses fabricavam a verdade.

Ultimate Spider-Man (Brian Michael Bendis, 2000-2011)

Ultimate Spider-Man 49, Janeiro de 2004. Texto: Brian Michael Bendis, desenho: Mark Bagley.

Como criar algo que já existe e fazê-lo novo? Como obedecer a uma série de directrizes ditadas pela exigência da indústria, excursos em eventos esmagadores, reuniões de estranhos que preferiam estar sozinhos nos seus próprios quadradinhos a ter de ser figurantes no banquete onde toda a gente é servida McDonalds, e ainda assim contar a história íntima de um rapaz a tentar encontrar o seu lugar no mundo? E apesar de tudo a escrita de Brian Michael Bendis, leve e saltitona, consegue fazê-lo parecer fácil. Este é um mundo em que os super-heróis ainda conseguem salvar o dia, mas onde os super vilões não vestem licra. Os seus erros são os da ganância, tão inocentes nos tempos que correm, porque afinal esses pecadilhos de fato e gravata, cometidos longe do foco da banda desenhada, são perfeitamente desculpáveis, e até protegidos pela lei. E o que pode um pobre rapaz de Queens com um carapuz na cabeça e um fato ridículo, remendado no traseiro, mesmo um capaz de trepar paredes, contra as leis da sociedade? Mas há um lar, uma família, as aulas de matemática, o amor de juventude, todos os pequenos rituais que nos fazem humanos entre humanos. E de alguma forma, também nós fomos convidados e somos bem-vindos nesta casa.

Uma lista de todos os números de Ultimate Spider-Man pode ser encontrada aqui.

Dois cantos de "Arcano 13"


Patrícia Lino, Arcano 2

Patrícia Lino, Arcano 2

Poemas de Marcelo Ariel &  Guilherme Gontijo Flores
Desenhos de Patrícia Lino

Canto 8

 

Até as pedras largadas
talvez mudas
escaldadas sob o sol
junto das costas caladas
numa grandeza solene
trinam memórias do passado
ligadas à sina do meu povo. 

Até o pó sob os teus pés
responde mais amor
aos nossos passos do que aos teus
são as cinzas dos nossos ancestrais
e os nossos pés descalços sabem
seu toque simpático
porque o chão é rico
da vida desta raça. 

Os valentes morenos
e as mães carinhosas
e as jovens alegres
e as crianças pequenas
que aqui viveram e sorriram
de nomes hoje esquecidos
ainda amam estes ermos: 

seus refúgios profundos
no entardecer crescem de sombras
com a presença de espíritos.

Fala o chefe Seattle
numa língua transcrita
e traduzida
e ainda que traída
dali floram fermento e fogo
calcinando mentes
feito neve na língua
abrasa até os dentes
feito flecha estacada
crânio adentro
ainda aduba o mundo.
Esta é a fala de neve e brasa
de flecha e adubo
porque isso somos
até o fim do mundo.
 

E quando o último vermelho
morrer sobre a terra
e sua memória entre os brancos
virar um mito
estas costas vão fervilhar
com mortos invisíveis desta tribo. 

E quando os filhos dos teus filhos
se acharem sozinhos no campo
no armazém na loja
numa estrada ou no silêncio da mata
não estarão sozinhos:

nada na terra tem lugar
dedicado à solidão. 

À noite
quando as ruas das tuas cidades e aldeias
quedarem caladas
e acharem que estão desertas
vão se apinhar com a volta de hóspedes
que antes enchiam
e ainda amam
esta terra linda. 

O branco nunca estará sozinho
que seja justo
e lide bem com o meu povo:
os mortos não restam sem poder.

Patrícia Lino, Arcano 8

Patrícia Lino, Arcano 8

Canto 9

 

Após os oitenta tiros
retornará
o grão da voz
de Evaldo dos Santos Rosa
através do sabiá
cantando na beira do Rio. 

Tradução do canto
do pássaro:  

‘ Que o encantamento gere
encantamento.
Não celebro,
lamento que breves sejam
as sessões do amoroso
pensamento. 

A pressa em não-saber
trará a cegueira
das vozes
silenciadas antes
que sejam,
através da alma
esboçada
como a beleza
do copo de leite
em sua brancura
de metáfora
da morte
de uma estrela
distante. 

E então tudo será reencontrado.

Serão unidos os cantos lentos  dos céus
e para sempre refeitos
os silêncios  do mundo em ruínas
e o silêncio do canil Krishnamurti.  

Pelos quartos abandonados
uma revoada de pássaros irá dormir
e veremos o sol morrendo
mudo como um olho fechado
e feroz feito pedra afundando.’
~