Auto-Ajuda?

queda_do_eu.png

 

Descartes, no célebre exemplo da modificação da vela à medida que se consome (Meditações Metafísicas), acreditava que a razão, e só ela, podia contrapor à impermanência empírica do material uma permanência do eu espiritual. Ainda hoje pensamos assim, somente em casos patológicos questionamos a base identitária que constitui o eu. Quando na verdade, há em cada um qualquer coisa de extraordinariamente instável. Por isso, em vez de perseverarmos nas poéticas da estabilidade, devíamos apostar nas da instabilidade.

Ao «eu é um outro» (Je est un autre, Rimbaud) deveríamos contrapor: o «eu é muitos outros» (essa heteronomia que nos ensinou Fernando Pessoa). Ou, como no Sartre de O Ser e Nada, o eu (para-si) «é aquilo que não é», incapaz de estancar a nadificação que exerce sobre si, isto é, condenado a uma permanente reconstrução; o que supõe, no processo de transformação, a constante negação do que era. Será este, porventura, o sentido do «torna-te o que és» de Nietzsche, movimento sem fim, mantendo-se, até, depois de morrer, já que os vivos dão novos sentidos aos mortos, pelo menos até serem cobertos pelo esquecimento, ou melhor, por uma moratória de esquecimento, na medida em que é sempre possível a ressurreição (a arqueologia pode acordar seres ausentes há milénios).

Torna-se, pois, necessário pensar sobre si, não à maneira das hagiografias do mercado da auto-ajuda, já lá iremos, mas renovando um pensamento crítico que consiga diagnosticar mais os impasses e as dúvidas do que as certezas e os apontamentos narcísicos que nos obrigamos a ter para não sucumbirmos, dizem, à complexidade e à ambiguidade ou ao terror social da depreciação. Numa palavra, é preciso repensar, sem censuras prévias ou enxertos paliativos, os sentidos que vamos tendo. Daí, a importância de renovarmos o compromisso que a modernidade filosófica estabeleceu com o pensamento crítico (Kant, em primeiro lugar, depois as inúmeras figuras da lucidez que alimentaram o Iluminismo), obrigando o pensamento a considerar às condições do seu exercício.

Esta será também a forma de combatermos a moda, profunda, do indivíduo-rei (Soi-Même como um roi, Élisabeth Roudinesco), processos identitários hipertrofiados, baseados na egomania ou nos comunitarismos, que balcanizam as sociedades. Porque se é verdade que a busca de autenticidade relativamente a si emergiu em tradições filosóficas, religiosas e literárias muito antigas (a Odisseia também trata disso), sobretudo ocidentais, nada fazia prever o tamanho desmesurado dos eus atuais (instigador de novas patologias em egos incapazes de encontrar na realidade exterior uma correspondência ao seu auto-heroísmo). É, pois, urgente regressarmos ao escrutínio da ipseidade (conceito que Paul Ricœur preferiu aos de subjetividade e identidade), usando as ferramentas do pensamento crítico.

Se substituirmos o «eu» pela «ipseidade», trocamos a fixidez aparente do primeiro pela mobilidade do segundo. A ipseidade assenta sempre num processo: o da constituição e reconstituição daquilo a que antes chamávamos «eu». Desta forma, a antiga máxima délfica do «conhece-te a ti mesmo» (que talvez se referisse mais ao lugar do humano, entre os deuses e os animais, do que ao do indivíduo), deve ser traduzido por «conhece o teu processo de vida, de ir vivendo, resultado das tuas escolhas e das situações exteriores que te influenciam, como se fosses uma personagem mais evanescente do que enigmática».

Simbolicamente, ser eu é estar afixado: nome, assinatura, fotografia, impressão… Se queremos ser livres (dessa liberdade que cada um consegue obter), é preciso abandonar o eu, o desenvolvimento é sempre impessoal e imprevisível. Por isso, os livros de auto-ajuda, apesar de cada vez mais escorados em pretensos estudos científicos, enquanto manuais, nada surpreendentes, de ortopedia do eu, são um embuste. E se hoje funcionam bem no mercado editorial é porque privilegiamos um individualismo hedonista ou competitivo. Mas, por trás da cortina de fumo policromática, é evidente o seu falhanço: nenhum indicador social nos mostra mais felizes do que os nossos antepassados (bem sei que a felicidade é histórica, penso, por isso, em como nos sentimos, hoje, felizes ou infelizes). Aliás, é plausível que haverá tanto mais publicações de auto-ajuda quanto for piorando a nossa saúde mental, em parte devido, justamente, a essas publicações (como se consegue viver a ressaca da promessa não cumprida de sermos os maiores da aldeia?). Prevejo, porém, um ricochete das promessas não cumpridas.

Correndo o risco de me contradizer, ou melhor, de instituir o paradoxal, deixo-vos uma sugestão: encontrem alguma coisa maior do que vocês, assumam a vossa periferia, mantenham-se nas margens, não fechem as linhas de fuga de admiração pela alteridade, numa palavra: sejam estoicos (os mais despretensiosos e corajosos dos homens).

"O desconhecido", de Aldo Palazzeschi

Tradução: João Coles



Viste-o passar hoje à noite?
Vi-o.
Viste-o ontem à noite?
Vi-o, vejo-o todas as noites.
Olha para ti?
Ele não olha em volta,
só olha lá para baixo,
alí onde o céu começa
e a terra acaba, lá em baixo
na linha de luz
que o pôr-do-sol deixa.
E depois do pôr-do-sol ele passa.
Sozinho?
Sozinho.
Vestido?
De preto, está sempre vestido de preto.
Mas onde se detém?
Em que sino?
Em que prédio?


Lo sconosciuto

L'hai veduto passare stasera?
L'ho visto.
Lo vedesti ieri sera?
Lo vidi, lo vedo ogni sera.
Ti guarda?
Non guarda da lato
soltanto egli guarda laggiù,
laggiù dove il cielo incomincia
e finisce la terra, laggiù
nella riga di luce
che lascia il tramonto.
E dopo il tramonto egli passa.
Solo?
Solo.
Vestito?
Di nero è sempre vestito di nero.
Ma dove si sosta?
A quale capanna?
A quale palazzo?

Aldo Palazzeschi, in Poemi

Quatro poemas de "Ancestrale", de Goliarda Sapienza



Goliarda Sapienza

Goliarda Sapienza

Tradução: João Coles



Certo dia duvidei
e em plena luz
comecei
a ver a árvore
o pão
a faca e a tesoura
a madeira
o cobre.


As flores crescem
pelos mortos.
Rego-as à noite
com cuidado.
Espio-as na alvorada
da tua lembrança.


Escuta não há palavras para isto
não há palavras para sepultar uma voz
já fria no seu sudário
de cetim e de jasmim.


Separar juntar
espargir no ar
encerrar no punho
conter
nos lábios o sabor
dividir
os segundos dos minutos
discernir ao cair
da noite
esta noite de ontem
de amanhã

In Ancestrale

Dois poemas de Sandro Penna

unnamed.jpg

A vida... é recordar um acordar
triste num comboio ao romper da aurora: ter visto
lá fora a luz incerta: ter sentido
no corpo quebrado a melancolia
virgem e áspera do ar pungente. 

Mas recordar a súbita
libertação é mais doce: ao meu lado
um jovem marinheiro: o azul
e branco do seu uniforme, e lá fora
um mar completamente fresco de cor.

(1938)

 

Também é doce encontrares-te
num bairro desconhecido.
Um rapaz de macacão
passa agora perto de ti.

Tu imaginas a sua vida
–  aquela mesa que o espera.
E a cansada bicicleta
que ele impele perto de si. 

Mas tu continuas pela estrada
desconhecida e infinita.
Tu não pedes mais à tua vida
do que continuar como é.

(1938)


De Sandro Penna, Poesie, 1973, Mondadori.

Tradução de Tatiana Faia



La vita… è ricordarsi di un risveglio
triste in un treno all’alba: aver veduto
fuori la luce incerta: aver sentito
nel corpo rotto la malinconia
vergine e aspra dell’aria pungente.

Ma ricordarsi la liberazione
improvvisa è più dolce: a me vicino
un marinaio giovane: l’azzurro
e il bianco della sua divisa, e fuori
un mare tutto fresco di colore.

***

È pur dolce il ritrovarsi
per contrada sconosciuta.
Un ragazzo con la tuta
ora passa accanto a te.

Tu ne pensi alla sua vita
– a quel desco che l’aspetta.
E la stanca bicicletta
ch’egli posa accanto a sé.

Ma tu resti sulla strada
sconosciuta ed infinita.
Tu non chiedi alla tua vita
che restare ormai com’è.

O caso Amanda Gorman

Amanda Gorman.png

Tradução do artigo de opinião de André Markowicz — tradutor de, entre outros, Dostoievski para francês —, publicado a 11 de março no jornal Le Monde.

 

«Na origem, o poema The Hill We Climb, escrito pela jovem afro-americana Amanda Gorman a pedido de Joe Biden para o dia da sua investidura. Um poema patriótico, whitamiano, com citações bíblicas, nuances de gospel, de poetry slam e apelos aos melhores sentimentos, como exige o género. Esse poema ficou célebre de um dia para o outro, e, por isso, vai ser traduzido em todas as línguas do mundo.

Na Holanda, um editor, Meulenhoff, obteve os direitos de autor e atribuiu a tradução a Marieke Lucas Rijneveld, uma das vozes mais brilhantes da nova geração. Tudo correu normalmente até que uma jornalista negra, Janice Deul [holandesa], quando ainda não tinha sido feita a tradução, escreveu um artigo para protestar contra a escolha da tradutora, segundo ela: “incompreensível”, ao ponto de provocar em inúmeras pessoas “dor, frustração, ira e deceção”, pelo motivo de que a tradutora não era negra. “Antes de estudar em Havard, prossegue Janice, Amanda Gorman foi criada por uma mãe solteira, teve problemas de elocução que levantaram a suspeita de atraso mental. O seu trabalho e a sua vida estão necessariamente marcadas pela sua experiência e identidade de mulher negra. Por isso, é no mínimo uma ocasião falhada atribuir essa tradução a Marieke Lucas Rijneveld

O argumento de Janice Deul lembrou-me o que me disse esse crítico russo ortodoxo sobre as minhas traduções de Dostoievski: eram duvidosas porque eu não era ortodoxo — ora, só um ortodoxo pode compreender um ortodoxo. Não o disse abertamente, mas era evidente; o fundo da questão era que um judeu, mesmo sendo russo, não podia dar conta da “alma russa”.

Esta ideologia de atomização da humanidade segundo a cor da pele, a raça e, entre outras, a etnia, é o contrário absoluto da tradução, que é, antes de tudo, partilha e empatia, acolhimento do outro, do que não é seu: a que eu chamo “reconhecimento”.

Ninguém tem o direito de me dizer o que posso ou não traduzir. Mas cada um tem o direito de ajuizar se sou capaz de fazê-lo. Isto é, pelo meu trabalho, pela minha voz, pela materialidade das minhas palavras, sou capaz de dar a ouvir a voz de um ou de outra — sem a reduzir ao que é suposto ser a minha; caso a minha voz seja suficientemente acolhedora, suficientemente livre para fazer ouvir outras.

Em França há ainda traduções “coloniais”: não apenas traduções que pegam nos textos originais como se fossem curiosidades pitorescas, mas também traduções que transformam os textos estrangeiros em textos académicos franceses. Se passei toda a minha vida a traduzir foi também contra este tipo de traduções.

Ora, a natureza fez de mim não apenas um judeu, mas igualmente um “macho branco dominante” (para usar a nova terminologia). Por isso, será que terei o direito de traduzir Marina Tsvetaeva e Anna Akhmatova, ou, neste momento, Kari Unksova (militante feminista assassinada em 1983 pelo KGB)? Com certeza que não, se nos colocarmos na perspetiva destes novos militantes da raça, adeptos da vingança pelo identitário. Quando estes interditos se exercem no domínio da tradução, domínio da passagem, da liberdade assumida, da amizade pela palavra de outrem, atingem um tal grau de absurdo que agem como reveladores.

Alguns asseguram-me que não posso qualificar os argumentos de Janice Deul como racistas, devido ao “privilégio branco” de que gozo. O racismo seria exclusivamente o do poder, dos brancos. Este género de argumento explica como o eleitorado dos trabalhadores e empregados passou do partido comunista para o Rassemblement national [direita/extrema direita francesa], com as consequências que todos conhecem. Como não sentir que este duplo standard (uns são “supremacistas brancos”, os outros defendem a sua “identidade oprimida”) é humilhante e, realmente, pela sua condescendência, racista?

Marieke.png

Acontece que o artigo de Janice Deul foi publicado num jornal com grande tiragem e autoridade. Ora, está aqui o essencial, o editor pediu imediatamente desculpas. Como uma criança apanhada em falta, assegurou que, graças ao artigo, tinha “aprendido muito”, e que no futuro seria mais prudente. Quanto à tradutora, renunciou à tradução e publicou um longo poema, intitulado Everything inhabitable (imediatamente traduzido pelo seu tradutor francês — um homem! —, Daniel Cunin), poema cheio de dor, que é simultaneamente apelo à fraternidade e demonstração de que Marieke, contrariamente ao que alegava um certo número de atores da polémica (aparentemente preocupados em minimizar a gravidade do debate afirmando que o problema não era a cor da sua pele, mas o facto de que não estava qualificada), possui perfeitamente a arte do dizer-oral que caracteriza o poema de Amanda Gorman, podendo tê-lo interpretado.

Meulenhoff publicou comunicados assegurando que estava animado pelas melhores intenções do mundo e era defensor de uma sociedade inclusiva (quem estará contra?). Parece que está atualmente à procura de uma equipa de jovens tradutoras negras para corresponder melhor ao vivido da autora americana.

Mesmo não sendo ameaçado por nada — o artigo de Janice Deul não contém qualquer ameaça —, Meulenhoff pôs-me imediatamente de cócoras, abandonando à horda a jovem autora que tinha publicamente designado para efetuar a tradução, cedendo ao apelo do arrependimento — num clima de terror interiorizado. Não cedeu perante um trabalho de tradução que podia ter sido avaliado pelo resultado, lido e revisto, defendido ou corrigido, mas perante a culpabilidade ontológica de fazer parte de uma instituição “branca”.

Estamos aqui.

Hoje, o medo de dizer estas evidências, o medo de ser posto do lado dos exploradores da miséria paralisa toda a resistência ao que não é, aliás, senão uma forma-reflexo do ódio e do desprezo. Um ódio e um desprezo incompatíveis com aquilo que requer a tradução.»