Dois poemas de Salvatore Quasimodo

Giuseppe Migneco, Paesaggio di Castelmola, 1951

DOIS POEMAS DE ACQUE E TERRE (1930) DE SALVATORE QUASIMODO
Tradução de Tatiana Faia

VENTO EM TINDARI

Tindari, mansa te sei
entre amplas colinas suspensa sobre as águas
das ilhas doces do deus,
hoje atacas-me
e vens afundar-te no meu coração. 

Escalo picos aéreos precipícios
imerso no vento dos pinheiros,
e a companhia que ligeira me acompanha
afasta-se no ar
onda de sons e amor,
e tu prendes-me
daí tracei eu o meu mal
com medos de sombras e silêncios,
refúgios de doçuras outrora assíduas
e morte da alma.  

Desconhecida para ti a terra
onde a cada dia me afogo
e onde secretas sílabas nutro:
outra luz te desfolha ao alto nas janelas
na tua veste noturna,
e há uma alegria que não é minha
no teu peito. 

Áspero é o exílio,
e a minha busca de harmonia que era
para se encerrar em ti hoje muda-se
num medo precoce de morrer;
e cada amor é tela da tristeza,
silencioso passo no escuro
onde me deixaste
pão amargo para repartir. 

Tindari torna serena;
suave amigo que me desperta
que me puxa
para o céu a partir de um penhasco
e eu finjo medo para quem não sabe
que vento profundo me procurou.

  

ANTIGO INVERNO

Desejo das tuas mãos claras
na penumbra da chama;
sabiam a carvalho e rosas;
a morte. Antigo inverno. 

Procuravam milho os pássaros
e subitamente fizeram-se neve;
assim as palavras.
Um pouco de sol, um halo de anjo,
depois a neblina; e as árvores,
e nós rarefeitos na manhã.

Dois leopardos e algumas distracções

Um amigo que é poeta uma vez contou-me a história de como costumava atravessar toda a baixa de Nova Iorque, num tempo anterior aos telemóveis, para ligar a outro amigo nuns telefonemas em que ambos tinham umas conversas alucinantes, entre outras coisas, sobre as pausas de Frank O’Hara para o almoço, de onde saiu Lunch Poems.

A coisa que mais prendeu a minha atenção nesta história é que no fim o meu amigo contou-me que tinha querido escrever um poema sobre aqueles telefonemas desde sempre, mas só o conseguiu fazer bastantes anos depois do amigo ter morrido. Quando lemos esse poema parece que a conversa entre eles está a acontecer naquele momento, mas o que nele fica registado não é tanto o conteúdo de algum diálogo mais memorável quanto o tom e o estilo deles dois a conversar, as frases banais trocadas entre pessoas que sentiam uma pela outra um amor imenso. Há ali ainda qualquer coisa da alegria interminável daquelas conversas e a medida exacta da gratidão do meu amigo por aqueles diálogos alguma vez terem existido no mundo.

Penso que as minhas aspirações a poeta se vão e irão reduzindo cada vez mais a tentar escrever poemas que sejam da ordem deste tipo de conversa. A escritora italiana Antonia Pozzi, que se suicidou bastante cedo, com apenas 26 anos, escreveu numa carta que os poemas são sempre expressões de um desejo frustrado por alguma coisa. Não sei se para mim é bem isso. Parece-me às vezes que os poemas são um pouco mecanismos que na verdade amplificam tudo, o lugar de uma atenção absoluta, o exercício de uma atenção que imita a forma como nos apaixonamos, ou lugares onde se registam os contornos de visões que de outra forma desapareciam sem deixar rasto. Há muito disso, parece-me, no Leopardo e Abstracção, e, também, gente que se perde, que desaparece e ressurge em lugares inesperados, ou estão deslocados, ou onde não é suposto. Os trespasses de um modo geral interessam-me, os acidentes das desadequações e das inconveniências. Os poemas são bons lugares para isso.

Não há, ao contrário do que seria de esperar, muitos leopardos em Leopardo e Abstracção. Na verdade, existem apenas dois: o que aparece na epígrafe de Hilda Hilst, onde se lê que “leopardos e abstracções rondam a casa,” e os homens que são descritos como tendo uma força confiante “como a dos leopardos,” num poema que levou dois anos a ser terminado, “materiais facilmente inflamáveis,” que aparece lá mais para o meio do livro. Os homens que são descritos como leopardos são os que aparecem na Ronda da Noite de Rembrandt, um quadro que está no Rejksmuseum em Amsterdão. Estes homens, arquétipos de uma certa prosperidade burguesa numa cidade protocapitalista do início da época moderna, em retrospectiva, não são bem como os aristocratas que aparecem no mais famoso dos livros que contém a palavra leopardo no título, O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. É sabido que o felino que dá título a esse romance não é de facto um leopardo, mas um seu primo distante, o serval, um animal exótico que se parece muito com o leopardo e que na Sicília era por vezes mantido como animal doméstico por aristocratas. O Leopardo de Lampedusa não é tão famoso como a adaptação para cinema que Visconti fez do livro. O príncipe Tancredi sabe que é o último dos leopardos e não sabe muito bem como viver com isso. Há pelo menos um ou dois poemas no Leopardo e Abstracção que são sobre o fim do mundo, ou sobre o fim de certos mundos, mas talvez apenas no sentido em que são salas de espera para as tranformações que trazem consigo outros começos. É, por exemplo, esse o caso dos poemas “ao preço da chuva” e “alguns sons antes da manhã.”

O Leopardo é então uma referência menos obviamente importante para Leopardo e Abstracção do que a epígrafe de Hilda Hilst que acompanha o livro e de onde veio o título, mas tenho-me perguntado se qualquer coisa nos poemas se liga muito indirectamente ao romance de Lampedusa. Isto é porque a primeira pessoa a aceitar publicar O Leopardo foi o escritor italiano Giorgio Bassani (1916-2000) na casa editorial Feltrinelli. O romance saiu postumamente, em 1958, um ano depois da morte de Lampedusa, depois de ter sido rejeitado por outras duas grandes casas editoriais italianas, a Einaudi e a Mondadori. Ora, o único poema em Leopardo e Abstracção em que um leopardo aparece passa-se no escritório de uma grande casa editorial, onde as personagens que nele trabalham recebem a tarefa de destruir livros, ou como se diz no jargão técnico, guilhotiná-los. É estranho reparar em retrospectiva que embora a escrita do princípio e do fim desse poema esteja separada por pouco mais de dois anos, o desaparecimento destes livros na primeira parte desse poema liga-se à mutilação, mais famosa, na segunda parte do poema, d’ A Ronda da Noite, que em 1715 foi cortado pelos holandeses para o fazerem transportar para a câmara municipal de Amsterdão. O quadro não cabia na entrada e foi cortado nos quatro lados, o que fez com que duas figuras desaparecessem da composição.

Voltando a O Leopardo de Lampedusa, estudiosos de literatura italiana há muito que se ocupam de comentar a relação entre esse romance e o mais famoso dos romances de Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, outro texto que se tornou famoso por causa de um filme. Bassani aparentemente tinha um desprezo absoluto pela versão cinematográfica do seu livro, realizada por Vittorio de Sica. Ambos os livros são frescos de períodos conturbados da história de Itália, ambos falam de decadência e mudanças sociais, no caso de O Leopardo, a decadência dos aristocratas na Sicília no período do risorgimento, no de O Jardim dos Finzi-Contini, o horror que é imposto à comunidade judaica de Ferrara nos anos em que os fascistas promulgam as leis raciais que decretam a segregação dos judeus italianos. Talvez a grande diferença entre O Leopardo e O Jardim dos Finzi-Contini é que em O Jardim tudo o que muda jamais voltará a ficar na mesma, daí a melancolia definitiva das personagens de Bassani. Há qualquer coisa no meu livro de outra melancolia, a que vem da minha percepção do que é potência e energia desperdiçada (há qualquer coisa disso no poema “A segunda mulher do escritor,” por exemplo).

Na altura em que escrevi os poemas que agora compõem Leopardo e Abstracção eu estava muito obcecada, então, não com Lampedusa mas com Giorgio Bassani. Em 2016 a Penguin começou a publicar novas traduções de O Romance de Ferrara pela mão de um amigo meu, o poeta inglês Jamie McKendrick, e eu comecei a reler os livros nessa tradução. Mas parece não haver traço de Bassani no meu livro, mesmo quando falo de uma rua muito importante para ele em Roma, Via delle Botteghe Oscure, de onde a revista homónima tirou o nome e de onde um outro escritor – o francês Patrick Modiano – retirou o título de um romance seu. Às vezes pergunto-me como é que os escritores se contaminam uns aos outros, como é que as minhas conversas com os meus amigos que são escritores ou tradutores passam para os meus poemas, ou quais são as reconfigurações dos meus diálogos com certos livros e certas ideias no que escrevo. Isto importa-me porque sei que muitos dos poemas vêm daí, tal como sei que por vezes essas ligações são oblíquas e inexplicáveis, e que os poemas também não as tornam mais evidentes, tornam-nas presentes de outras formas ou complicam-nas ou tornam-nas noutra coisa. Isso passa-se no Leopardo, por exemplo, quando uma amiga, a Francisca, me deu uma cidade, Berlim, que aparece no poema “primeiro poema de berlim,” outro amigo ajudou-me a escrever outro poema quando me deu a ouvir as “Leçons des ténèbres” do Couperin, que é a música que dá título ao poema homónimo. Isto talvez também explique porque é que os meus poemas são mais inteligentes do que eu alguma vez serei.

Num dos últimos textos de O Cheiro do Feno, o último volume do Romance de Ferrara, Bassani fala do seu método de escrita e diz que sempre escreveu com grande esforço, às vezes dolorosamente, e muito por acaso, por causa de coisas que lhes foram dadas por amigos, não há nele espaço para grandes inspirações.

Por outro lado, sei que o primeiro e o último poema de Leopardo e Abstracção se lêem um ao outro e isso talvez tenha qualquer coisa do tipo de acidente criativo que vem da inspiração. O primeiro poema passa-se num aeroporto e o último numa cozinha, mas queria pensar que, se não são falhanços completos, ambos são sobre o trânsito dos corpos, sobre a extrema necessidade de vez em quando sermos habitados pelas nossas próprias ultrapassagens, de as reconhecermos com um aceno ao mesmo tempo de espanto e familiaridade, se é que isto faz sentido. São também sobre transfigurações, objectos que significam mais do que aquilo que parecem significar.

Diverte-me pensar que depois de muitos anos passados a queimar as pestanas com a história do império romano, talvez o meu grande contributo para a disciplina tenha sido ter conseguido reduzir alguns dos meus muitos problemas com a figura de Gaio Júlio Cesar, um dos últimos ditadores da república romana, à dimensão de um relógio de cozinha em forma de cabeça de gato que é baptizado com o nome do famoso general e que é o objecto que dá o título ao último poema do livro. Isto talvez seja um daqueles falhanços espetaculares, uma falta de educação até, em sentido literal, que, no entanto, acho mesmo que só pode ser ensaiada num poema. Não sei bem o que é que esta retroversão de um dos mais brutais generais de um regime imperialista, de onde em parte saiu a civilização em que vivemos hoje, diz acerca da relação de homens dotados de poderes despóticos com a suposta domesticidade inofensiva de uma cozinha, da nossa relação de um modo mais geral com o lado convencional da violência e dos papéis que nela representamos, dos modos em que somos partes dela ou a recusamos, ou das formas como a partir da reconfiguração dessa violência no mundo dos poemas se possa procurar pensar outras versões do mundo. Então talvez Gaio Julio Cesar seja sobre uma certa habilidade para amar as coisas apesar da violência do mundo, até da violência, que parece simples e banal, da mera passagem do tempo (os minutos de que tentei falar nesse poema são ao mesmo tempo minutos de alívio e perda). Para concluir, em jeito de spoiler, o meu mais recente relógio de cozinha chama-se Marius Julius Cesariny e é uma joaninha. Não sei o que é que vai sair daí.


Nota: Este texto foi lido na apresentação de Leopardo e Abstracção na Casa da Cultura no Porto, no dia 13 de Novembro de 2021. Eu não preciso de atravessar a baixa de Nova Iorque para ligar à Inês Morão Dias, malhas que o WhatsApp voice messaging tece – o que nos dá a ambas minutos ilimitados para gravar divagações surrealistas entre Oxford e o Porto, e devo confessar que é um pouco irónico ter sido ela a apresentar o meu livro, porque quando o livro dela, o Par de Olhos, saiu na Fresca, era suposto ter sido eu a apresentá-lo, o que nunca aconteceu. Sucede que veio a pandemia, e eu também nunca mais voltei a pensar em apresentar o Leopardo. Tendo viajado até ao Porto por alguns dias em Setembro passado, pensei que talvez fizesse sentido tentar fazer a apresentação. Queria agradecer à Inês ter aceitado o convite, ao Francisco e ao Nuno da Poetria terem incluído o Leopardo na belíssima colecção da Fresca e, finalmente, à reitoria da Universidade Porto a cedência do seu espaço para uma conversa em torno do livro.

A Cadeira (do) Fantasma, pelo autor (Fernando Guerreiro)

                                                                   MARNIE

     1.

     Comecemos pela capa.

     A imagem corresponde a um fotograma em que Marnie (Tippi Hedren), depois de roubar o cofre da empresa em que trabalha, e ao ouvir os sons da mulher da limpeza ali mesmo ao seu lado, se descalça e pára num seuil  (fronteira) que ela não sabe ainda muito bem como atravessar (toda a sequência é filmada num plano único, em silêncio e em continuidade, com o ecrã dividido ao meio por essas duas acções).

     Daí a incerteza e descompostura do corpo com um pé ainda calçado e o outro já sem sapato: atravessará ela, ou não, esse limiar? (Em boa verdade ela já o ultrapassou – este não é o seu primeiro roubo – pelo que o problema é o da compulsão à repetição do acto).

     O plano é semelhante ao de Vertigo em que vemos Judy (Kim Novak) a sair de outra “caverna” (cripta): a casa de banho do quarto que ocupa e em que se compõe (metamorfoseia) como Madeleine, o “fantasma” de Eurídice por que anseia e clama durante todo o filme Scottie (James Stewart). (Em Marnie, aliás,  há várias situações em que o personagem, e a actriz, se metamorfoseia(m) noutra “pessoa”: é o que sucede logo no início quando ela passa de “morena” [brunnette] a “loura” – uma cena  que é introduzida pelo próprio Hitchcock que, numa das suas habituais aparições, a vê passar no corredor do hotel em que procederá à sua transformação de Marion (Holland) – sim, o nome de outra “ladra” (e loura) famosa (Janet Leigh), a de  Psico – em Marnie (Edgar).

     O aparecimento de Madeleine, claro, é o do próprio cinema enquanto dispositivo que nos dá a ver mutações (transformações) de corpos (e formas) em acto (E de facto, se Judy e Madeleine, enquanto personagens de ficção,  morrem, ficará para sempre na nossa memória o acto da sua tão precária aparição/ reanimação, contra todas as expectativas, perante os nossos olhos).

     No entanto, Marnie (Tippi Hedren, ela própria um “avatar” de Kim Novak [no filme , Marnie tem vários traços da persona de Madeleine: o formalismo convencional das roupas, o mesmo arranjo de cabelo, com o caracol em espiral, quando vista de costas]), ao contrário de Judy (Kim Novak) sobrevive e nessa medida, tendo de passar por outro pórtico apertado – o do pesadelo vivo do trauma que a marcou na infância (veja-se o flashback final em que revive o “crime original” de que é o produto e criação) –,  configura-se aqui como uma Eurídice que pela segunda vez regressa para salvar o real (para que ele não se afunde) e, com ele, o cinema (admirável, deste ponto de vista, é a cena em que, no barco de cruzeiro, Mark [Sean Connery] a descobre a boiar de costas na água da piscina e a consegue reanimar, trazendo-a de novo da baía de São Francisco onde se afogara anos antes em Vertigo).

     Como em certa medida sucede com Psico – aqui não só Marnie retoma o personagem de Marion como uma mãe castradora é um personagem relevante dos dois filmes –, Marnie continua e refaz Vertigo mas agora do ponto de vista de Judy (dos seus “fantasmas” e “imaginário”), um mobile de ficção e hipótese de ser a que aqui se dá um novo corpo, aura e presença, entreabrindo-se-lhe  a possibilidade de um outro futuro.

     2.

     Poder-se-á ainda dizer que o livro é também ele uma espécie de piscina ou aquário em que corpos, situações e figuras mergulham para dele (re)emergir mudados, com novas formas, propriedades e modos de ser em que, se o quisermos e nos esforçarmos, temos a oportunidade de nos projectar e (re)fundir para desse modo reformular e reatar com a nossa existência?

     Jean Louis Schefer, num livro de 1995 justamente intitulado Question de style (L’Harmattan), observa que se escreve (pensa) para “gerar formas”=”objectos”, ou seja, “hipóteses”=”teorias” (olhares sobre e para dentro) que podem servir para construir (obstruir e ao mesmo tempo des-lindar) ficções em que o segredo do real e o do sujeito se encontram entrelaçados e mutuamente incluídos: “o que legitima a interpretação”, escreve,  é a sua “parte de ficção”.

     O livro, sempre uma “formação”, entidade viva mental-sensacionalista, vê-se aqui entendido como um “retardador” ou “acelerador” de partículas que, nos interstícios da sua substância (ao mesmo tempo concreta e imaginária), é capaz de abrir frechas, áleas, ou mesmo saídas na engrenagem (monótona e repetitiva) em que regrediu e parece ter emperrado a fábrica poiética do mundo.

     Como com o cinema ou os filmes, afinal.


Fernando Guerreiro
(Livraria Linha de Sombra
[Cinemateca], 5 de Novembro 2021)                                                                                          

Homem Sério

Era um homem tão sério que, depois de várias tentativas, lá conseguiu petrificar-se. Terminou, assim, a embaraçosa, e degradante, vontade de, muito de vez em quando, se rir. Não de si, isso nunca lhe aconteceu, meu Deus, mas do que havia de cómico nos outros ou nas cada vez mais frequentes situações caricatas. Antes de se transformar em pedra, o homem sério leu o Nome da Rosa, no qual Umberto Eco reescreveu, e corrompeu, a bela história da dramaturgia antiga ao elevar a comédia a uma dignidade estética e filosófica que a rigorosa censura monástica lhe teria recusado. Obra engraçada e oportunista (produto para um tempo hedonista), pensou o homem sério.

O homem sério a que me refiro não é o homem sério, e muito menos, mutatis mutandis, a mulher séria da nossa cultura popular. Estes são-no pela confiança e fidelidade que demonstram, o masculino na economia do capital, o feminino na do eros. O outro homem sério pode ser pensado a partir de modelos como os de Hitler, Estaline, Franco, Fidel Castro ou Mao Tsé-Tung. Conseguem imaginar as gargalhadas de Hitler? Estaline em autoirrisão? Fidel a contar anedotas sobre a civilização comunista?  Mao a rir com Dr. Strangelove? Franco a sorrir, ainda que ligeiramente, enquanto lia o Dom Quixote? Difícil, não é? O homem que é sério a sério julga, numa intuição que raramente questiona, que foi enviado pela Transcendência para endireitar a humanidade. Impor a verticalidade dos costumes e dos atos, acabar com as curvas da facécia, a impostura da complexidade, o terrorismo do relativismo, a fraqueza da hesitação. Impor a sobriedade social, a verdade revelada, os desejos domesticados, a frugalidade monástica, o castigo categórico dos crimes de lesa seriedade, o rigor de espírito (fundado na pobreza), um vasto e definitivo quadro monocromático que nenhum museu de arte contemporânea, apesar da sua natural tolerância à parvoíce, quererá no seu depósito.

No mundo da filosofia, Hegel, Kierkegaard ou Nietzsche viram bem o peso mentiroso do espírito da seriedade. Sartre, Ionesco ou Beckett escreveram e encenaram peças memoráveis sobre a tirania do sério. Musil, Orwell ou Gunter Grass mostraram a mediocridade da ação e o medo incrível da liberdade dos homens sérios. De uma ou de outra forma, estes pensadores críticos (autocríticos, antes de mais) denunciaram o perigo do homem sério, que, se não sucumbir a niilismo que o leve a transformar-se numa rocha, quer sempre tornar-se tirano. Porque julga que através dele, como muito bem viu Simone de Beauvoir (Pour une morale de l’ambiguïté), se «afirma o valor incondicionado do objeto». Isto é, de qualquer coisa exterior ao sujeito, tangível ou intangível, mas sempre visto como universal, sem qualquer antinomia.

Genial simplicidade, a do homem sério. E perante a desilusão tem a fórmula mágica de se transformar num niilista, que é o outro lado do fanatismo. Foi nisto que desembocou o nosso homem-sério-rocha.

Partir a cabeça

Katerina GÓgou (talvez no filme Parangelia, 1980)

Katerina GÓgou (talvez no filme Parangelia, 1980)

Ocorre-me que há toda uma espécie de catástrofes que só nos podem acontecer em dias de semana se tirarmos um dia de férias ou praticarmos qualquer outra alteração da rotina. É um pensamento triste saber que só posso ser atropelada por um autocarro em Trafalgar Square às onze da manhã numa quarta-feira se tiver tirado um dia de férias. A rotina, com o seu ângulo cortante de mania letárgica, com as suas rígidas proposições prisionais (a dor mansa, como lhe chamou O’Neill, num poema sobre uma rotina que não pôde ser quebrada), está afinal concebida para que o nosso corpo se mantenha inteiro, estável, ainda que no mesmo sítio, ao abrigo de boa parte de imprevisíveis intempéries. Digamos então que a rotina pode anular o risco e a ansiedade e mitiga a intensidade dos corpos em trânsito. Neste sentido a rotina tem um papel vital em manter a estabilidade das ordens sociais em que vivemos. É por isso que, de vez em quando, é absolutamente necessário desconfiar dela com horror. E que ela nos mantenha perfeitamente seguros, é, claro, uma falácia. A única perspectiva em que as nossas vidas são previsíveis é em aparência, mas talvez as estranhemos mais quando saímos da rotina e, mesmo assim, talvez não as estranhemos tanto quanto é necessário.

Estou a pensar nisto porque estou a pensar na última vez em que parti a cabeça e estou a pensar na última vez em parti a cabeça por causa de um verso de Katerina Gógou que li há uns dias. O verso em que estou a pensar aparece no quarto poema de Três Cliques à Esquerda, um livro publicado pela primeira vez em 1978: “e segurarão as tuas mãos/ com amor e cuidado a minha cabeça/ prestes a desfazer-se em mil.”

Os livros às vezes estilhaçam completamente a nossa rotina. Podemos conviver com eles como se convive com um irmão difícil ou com um desconhecido que em três frases nos desarma. Lê-los pode ser como partir a cabeça. Três Cliques à Esquerda (estes três cliques à esquerda são uma referência ao processo de ajuste da mira de uma metralhadora) foi recentemente traduzido para português por José Luís Costa e vem numa bela edição da Barco Bêbado, com desenhos de Gonçalo Pena e uma breve e excelente introdução do tradutor. O volume é duplo e contém também traduções de Cancro, do poeta inglês Sean Bonney, pela mão de Miguel Cardoso. (O livro de Bonney é inspirado nos poemas de Gógou.)

Três Cliques à Esquerda seguido de Cancro, Barco Bêbado, Novembro de 2020.

Katerina Gógou (1940-1993) é uma actriz e poeta grega, autora de poemas violentamente políticos, intimamente ligados à geografia de Atenas, muitos deles passados no bairro de Exárchia, historicamente território de activismo da extrema esquerda, foco de resistência contra a ditadura dos coronéis. José Luís Costa diz no prefácio que é um dos bairros da Europa que terá maior concentração de livrarias por metro quadrado e isto é absolutamente verdade. Há também os editores de vão de escada, os bares, as tabernas de toda a espécie, os traficantes na praça central do bairro, o cinema ao ar livre em Valtetsiou, os pintores que nos vêm vender desenhos e postais quando paramos nos cafés, onde há conversa e conversa que nunca mais acaba. Há ainda uma colina que tem uma vista sobre Atenas que nos deixa sem fôlego, Strefí. E havia os emigrantes e os refugiados, mas este é o bairro onde recentemente o governo de Mitsotakis, um dos governos com uma das agendas mais sinistras da Europa hoje, levou a cabo a sua expulsão de edifícios devolutos onde, segundo a tradição em Exárchia, comunidades solidárias de integração começavam a florescer.
Foi neste bairro que Katerina Gógou viveu boa parte da vida. Os poemas de Gógou são poemas zangados que falam de activismo, pobreza, decadência, desemprego, da letargia inspirada pelos diferentes modos em que o nacionalismo se vai infiltrando de novo na vida dos gregos no período imediatamente a seguir à queda da ditadura, em 1974. Atravessando toda uma geografia da cidade, chegam a nós com uma energia furiosa que nunca desiste de nos interrogar: 

Eu cá os meus amigos são pássaros pretos
que andam de balancé em terraços de casas prestes a desabar
Exárkhia Patissíon Metaxourguío Mets,
Fazem o que calha.
Vendem livros de receitas e enciclopédias porta-a-porta
constroem estradas e ligam desertos
intérpretes em cabarés da Zínonos
revolucionários profissionais
que foram apanhados e lhes baixaram as calças
agora tomam comprimidos e álcool para dormir
mas os pesadelos não deixam.
Eu cá as minhas amigas são estendais
em terraços de casas velhas
Exárkhia Victoria Kukaki Guizi
Neles prenderam vocês milhões de molas de ferro
as vossas culpas, decisões saídas de reuniões, vestidos emprestados
queimaduras de cigarros estranhas enxaquecas
silêncios ameaçadores vaginites
apaixonam-se por homossexuais
dê-esse-tês o período que ainda não veio
o telefone o telefone o telefone
vidros partidos a ambulância ninguém.
Fazem o que calha.
Os meus amigos não param de viajar
Porque vocês não lhes deixaram nesga para respirar
Todos os meus amigos pintam com tinta preta
porque lhes deram cabo do vermelho vocês
escrevem num idioma de palavras de ordem
que o vosso só serve para lamber botas.
Os meus amigos são pássaros pretos e estendais
nas vossas mãos. No vosso pescoço.
Os meus amigos. 

Muitas coisas neste poema falam das consequências do horror deixado para trás por um regime autocrático acerca do qual se adivinha que não haverá uma reflexão histórica que não excluísse aqueles que foram vítimas da sua violência. Esta falta de reflexão histórica é de um modo ou outro persistente nas democracias da Europa do Sul. O poema fala então desse cliché que tristemente parece tornar os poemas mais úteis, no sentido de justificar a sua existência: fala daqueles cuja voz é marginalizada, ou se marginaliza como reacção à sua ostracização, os que foram torturados e abusados, a quem se fez constantemente sentir que ficaram sem escolhas. E chega ao fim da sua sequência lógica com um peso ameaçador e quase metafísico que lembra a lucidez da loucura dos finais das tragédias de Eurípides, fala de como estas pessoas não desaparecem e se tornam a má consciência de novas ordens sociais. E enquanto não insistirmos em falar sobre isto nas nossas sociedades democráticas continuaremos a ser facilmente polarizáveis por mensagens populistas. E o que a polarização mascara e ajuda a perpetuar são formas de alienação social e desigualdade. Não é preciso ser muito inteligente para dizer que o preço a pagar por isso são sociedades mais instáveis, democracias mais frágeis, lugares onde não se vive bem.

A cabeça de Katerina Gógou prestes a desfazer-se em mil pedaços faz-me pensar noutra cabeça de poeta, a de Apollinaire. Não é raro perfis dessa cabeça aparecerem nas capas dos seus livros. Um desses perfis aparece por exemplo numa cópia de Calligrammes, onde um dos meus versos favoritos diz que a beleza de estar vivo ultrapassa em muito a tristeza de ter de morrer. A cabeça de Apollinaire foi ferida por um estilhaço em 1916, durante a Primeira Guerra. A ligadura que tapa a ferida da trepanação não tem nada em comum com uma ligadura que aparece num poema de Kaváfis, escrito em Alexandria três anos mais tarde, sobre alguém que recebe a visita de um amante que aparece com um ombro ferido e ligado, uma ferida que se volta a abrir quando ele tenta tirar da estante algumas fotografias.

He said he’d hurt himself against a wall or had fallen down.
But there was probably some other reason
for the wounded, the bandaged shoulder.

Because of a rather abrupt gesture,
as he reached for a shelf to bring down
some photographs he wanted to look at,
the bandage came undone and a little blood ran.

 

(tradução de E. Keeley e P. Sherrard, poema completo aqui)

Este poema de Kaváfis termina como muitos dos seus poemas acabam, numa reminiscência erótica vista à distância de um passado que fica longe. Há, no entanto, aquilo que o poema não esclarece, que é a origem daquela ferida, o que talvez deixe os leitores de repente olhar de relance para um mundo de gente que viveu perigosamente, à margem, até para lá da marginalidade obviamente imposta por encontros homossexuais clandestinos numa cidade de periferia na viragem no primeiro quartel do século XX. Nada sabemos da relação de Kaváfis com esse mundo. O vermelho desse sangue, por outro lado, não é o mesmo vermelho da tinta com que os amigos de Gógou não podem escrever. No entanto, a marginalidade que ambos supõem tem qualquer coisa em comum. Apollinaire sabia qualquer coisa de marginalidade, pelo menos em parte porque foi em tempos interrogado por uma tentativa de roubo da Mona Lisa. O facto de ele ser estrangeiro parece que teve qualquer coisa a ver com isso.

A última vez que parti a cabeça foi em Madrid. Abriu-se um golpe grande até à nuca, que não parava de sangrar, e a princípio não consegui parar de rir porque achei que seria engraçado poder morrer de outra coisa qualquer quando estávamos todos obcecados com a pandemia. Na manhã seguinte, uma amiga viu o corte, desinfectou-o, pôs-lhe um penso. Estou a pensar nos meus amigos que não param de viajar. O que é que a marginalidade dos poemas difíceis, escritos por pessoas marginais, aquela que é o oposto da retórica, tem em comum com a resistência à letargia e à indiferença?

 Oxford, 24 de Outubro de 2021


Nota: Uma boa recensão às duas obras pode ser lida aqui.

Nota 2: Margarida Vale de Gato dedica a Katerina Gógou um poema no seu mais recente livro, Atirar para o Torto. Um excerto: “não é no campo que se muda o mundo/ disse, mas não te pedi, forrageiro/ cantor de amanhãs extraordinários/ um beijo grego de ressaca fria/ e uma terminação de caluda.”

Atenas, vista de Strefí, em Exárchia