Dois leopardos e algumas distracções

Um amigo que é poeta uma vez contou-me a história de como costumava atravessar toda a baixa de Nova Iorque, num tempo anterior aos telemóveis, para ligar a outro amigo nuns telefonemas em que ambos tinham umas conversas alucinantes, entre outras coisas, sobre as pausas de Frank O’Hara para o almoço, de onde saiu Lunch Poems.

A coisa que mais prendeu a minha atenção nesta história é que no fim o meu amigo contou-me que tinha querido escrever um poema sobre aqueles telefonemas desde sempre, mas só o conseguiu fazer bastantes anos depois do amigo ter morrido. Quando lemos esse poema parece que a conversa entre eles está a acontecer naquele momento, mas o que nele fica registado não é tanto o conteúdo de algum diálogo mais memorável quanto o tom e o estilo deles dois a conversar, as frases banais trocadas entre pessoas que sentiam uma pela outra um amor imenso. Há ali ainda qualquer coisa da alegria interminável daquelas conversas e a medida exacta da gratidão do meu amigo por aqueles diálogos alguma vez terem existido no mundo.

Penso que as minhas aspirações a poeta se vão e irão reduzindo cada vez mais a tentar escrever poemas que sejam da ordem deste tipo de conversa. A escritora italiana Antonia Pozzi, que se suicidou bastante cedo, com apenas 26 anos, escreveu numa carta que os poemas são sempre expressões de um desejo frustrado por alguma coisa. Não sei se para mim é bem isso. Parece-me às vezes que os poemas são um pouco mecanismos que na verdade amplificam tudo, o lugar de uma atenção absoluta, o exercício de uma atenção que imita a forma como nos apaixonamos, ou lugares onde se registam os contornos de visões que de outra forma desapareciam sem deixar rasto. Há muito disso, parece-me, no Leopardo e Abstracção, e, também, gente que se perde, que desaparece e ressurge em lugares inesperados, ou estão deslocados, ou onde não é suposto. Os trespasses de um modo geral interessam-me, os acidentes das desadequações e das inconveniências. Os poemas são bons lugares para isso.

Não há, ao contrário do que seria de esperar, muitos leopardos em Leopardo e Abstracção. Na verdade, existem apenas dois: o que aparece na epígrafe de Hilda Hilst, onde se lê que “leopardos e abstracções rondam a casa,” e os homens que são descritos como tendo uma força confiante “como a dos leopardos,” num poema que levou dois anos a ser terminado, “materiais facilmente inflamáveis,” que aparece lá mais para o meio do livro. Os homens que são descritos como leopardos são os que aparecem na Ronda da Noite de Rembrandt, um quadro que está no Rejksmuseum em Amsterdão. Estes homens, arquétipos de uma certa prosperidade burguesa numa cidade protocapitalista do início da época moderna, em retrospectiva, não são bem como os aristocratas que aparecem no mais famoso dos livros que contém a palavra leopardo no título, O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. É sabido que o felino que dá título a esse romance não é de facto um leopardo, mas um seu primo distante, o serval, um animal exótico que se parece muito com o leopardo e que na Sicília era por vezes mantido como animal doméstico por aristocratas. O Leopardo de Lampedusa não é tão famoso como a adaptação para cinema que Visconti fez do livro. O príncipe Tancredi sabe que é o último dos leopardos e não sabe muito bem como viver com isso. Há pelo menos um ou dois poemas no Leopardo e Abstracção que são sobre o fim do mundo, ou sobre o fim de certos mundos, mas talvez apenas no sentido em que são salas de espera para as tranformações que trazem consigo outros começos. É, por exemplo, esse o caso dos poemas “ao preço da chuva” e “alguns sons antes da manhã.”

O Leopardo é então uma referência menos obviamente importante para Leopardo e Abstracção do que a epígrafe de Hilda Hilst que acompanha o livro e de onde veio o título, mas tenho-me perguntado se qualquer coisa nos poemas se liga muito indirectamente ao romance de Lampedusa. Isto é porque a primeira pessoa a aceitar publicar O Leopardo foi o escritor italiano Giorgio Bassani (1916-2000) na casa editorial Feltrinelli. O romance saiu postumamente, em 1958, um ano depois da morte de Lampedusa, depois de ter sido rejeitado por outras duas grandes casas editoriais italianas, a Einaudi e a Mondadori. Ora, o único poema em Leopardo e Abstracção em que um leopardo aparece passa-se no escritório de uma grande casa editorial, onde as personagens que nele trabalham recebem a tarefa de destruir livros, ou como se diz no jargão técnico, guilhotiná-los. É estranho reparar em retrospectiva que embora a escrita do princípio e do fim desse poema esteja separada por pouco mais de dois anos, o desaparecimento destes livros na primeira parte desse poema liga-se à mutilação, mais famosa, na segunda parte do poema, d’ A Ronda da Noite, que em 1715 foi cortado pelos holandeses para o fazerem transportar para a câmara municipal de Amsterdão. O quadro não cabia na entrada e foi cortado nos quatro lados, o que fez com que duas figuras desaparecessem da composição.

Voltando a O Leopardo de Lampedusa, estudiosos de literatura italiana há muito que se ocupam de comentar a relação entre esse romance e o mais famoso dos romances de Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, outro texto que se tornou famoso por causa de um filme. Bassani aparentemente tinha um desprezo absoluto pela versão cinematográfica do seu livro, realizada por Vittorio de Sica. Ambos os livros são frescos de períodos conturbados da história de Itália, ambos falam de decadência e mudanças sociais, no caso de O Leopardo, a decadência dos aristocratas na Sicília no período do risorgimento, no de O Jardim dos Finzi-Contini, o horror que é imposto à comunidade judaica de Ferrara nos anos em que os fascistas promulgam as leis raciais que decretam a segregação dos judeus italianos. Talvez a grande diferença entre O Leopardo e O Jardim dos Finzi-Contini é que em O Jardim tudo o que muda jamais voltará a ficar na mesma, daí a melancolia definitiva das personagens de Bassani. Há qualquer coisa no meu livro de outra melancolia, a que vem da minha percepção do que é potência e energia desperdiçada (há qualquer coisa disso no poema “A segunda mulher do escritor,” por exemplo).

Na altura em que escrevi os poemas que agora compõem Leopardo e Abstracção eu estava muito obcecada, então, não com Lampedusa mas com Giorgio Bassani. Em 2016 a Penguin começou a publicar novas traduções de O Romance de Ferrara pela mão de um amigo meu, o poeta inglês Jamie McKendrick, e eu comecei a reler os livros nessa tradução. Mas parece não haver traço de Bassani no meu livro, mesmo quando falo de uma rua muito importante para ele em Roma, Via delle Botteghe Oscure, de onde a revista homónima tirou o nome e de onde um outro escritor – o francês Patrick Modiano – retirou o título de um romance seu. Às vezes pergunto-me como é que os escritores se contaminam uns aos outros, como é que as minhas conversas com os meus amigos que são escritores ou tradutores passam para os meus poemas, ou quais são as reconfigurações dos meus diálogos com certos livros e certas ideias no que escrevo. Isto importa-me porque sei que muitos dos poemas vêm daí, tal como sei que por vezes essas ligações são oblíquas e inexplicáveis, e que os poemas também não as tornam mais evidentes, tornam-nas presentes de outras formas ou complicam-nas ou tornam-nas noutra coisa. Isso passa-se no Leopardo, por exemplo, quando uma amiga, a Francisca, me deu uma cidade, Berlim, que aparece no poema “primeiro poema de berlim,” outro amigo ajudou-me a escrever outro poema quando me deu a ouvir as “Leçons des ténèbres” do Couperin, que é a música que dá título ao poema homónimo. Isto talvez também explique porque é que os meus poemas são mais inteligentes do que eu alguma vez serei.

Num dos últimos textos de O Cheiro do Feno, o último volume do Romance de Ferrara, Bassani fala do seu método de escrita e diz que sempre escreveu com grande esforço, às vezes dolorosamente, e muito por acaso, por causa de coisas que lhes foram dadas por amigos, não há nele espaço para grandes inspirações.

Por outro lado, sei que o primeiro e o último poema de Leopardo e Abstracção se lêem um ao outro e isso talvez tenha qualquer coisa do tipo de acidente criativo que vem da inspiração. O primeiro poema passa-se num aeroporto e o último numa cozinha, mas queria pensar que, se não são falhanços completos, ambos são sobre o trânsito dos corpos, sobre a extrema necessidade de vez em quando sermos habitados pelas nossas próprias ultrapassagens, de as reconhecermos com um aceno ao mesmo tempo de espanto e familiaridade, se é que isto faz sentido. São também sobre transfigurações, objectos que significam mais do que aquilo que parecem significar.

Diverte-me pensar que depois de muitos anos passados a queimar as pestanas com a história do império romano, talvez o meu grande contributo para a disciplina tenha sido ter conseguido reduzir alguns dos meus muitos problemas com a figura de Gaio Júlio Cesar, um dos últimos ditadores da república romana, à dimensão de um relógio de cozinha em forma de cabeça de gato que é baptizado com o nome do famoso general e que é o objecto que dá o título ao último poema do livro. Isto talvez seja um daqueles falhanços espetaculares, uma falta de educação até, em sentido literal, que, no entanto, acho mesmo que só pode ser ensaiada num poema. Não sei bem o que é que esta retroversão de um dos mais brutais generais de um regime imperialista, de onde em parte saiu a civilização em que vivemos hoje, diz acerca da relação de homens dotados de poderes despóticos com a suposta domesticidade inofensiva de uma cozinha, da nossa relação de um modo mais geral com o lado convencional da violência e dos papéis que nela representamos, dos modos em que somos partes dela ou a recusamos, ou das formas como a partir da reconfiguração dessa violência no mundo dos poemas se possa procurar pensar outras versões do mundo. Então talvez Gaio Julio Cesar seja sobre uma certa habilidade para amar as coisas apesar da violência do mundo, até da violência, que parece simples e banal, da mera passagem do tempo (os minutos de que tentei falar nesse poema são ao mesmo tempo minutos de alívio e perda). Para concluir, em jeito de spoiler, o meu mais recente relógio de cozinha chama-se Marius Julius Cesariny e é uma joaninha. Não sei o que é que vai sair daí.


Nota: Este texto foi lido na apresentação de Leopardo e Abstracção na Casa da Cultura no Porto, no dia 13 de Novembro de 2021. Eu não preciso de atravessar a baixa de Nova Iorque para ligar à Inês Morão Dias, malhas que o WhatsApp voice messaging tece – o que nos dá a ambas minutos ilimitados para gravar divagações surrealistas entre Oxford e o Porto, e devo confessar que é um pouco irónico ter sido ela a apresentar o meu livro, porque quando o livro dela, o Par de Olhos, saiu na Fresca, era suposto ter sido eu a apresentá-lo, o que nunca aconteceu. Sucede que veio a pandemia, e eu também nunca mais voltei a pensar em apresentar o Leopardo. Tendo viajado até ao Porto por alguns dias em Setembro passado, pensei que talvez fizesse sentido tentar fazer a apresentação. Queria agradecer à Inês ter aceitado o convite, ao Francisco e ao Nuno da Poetria terem incluído o Leopardo na belíssima colecção da Fresca e, finalmente, à reitoria da Universidade Porto a cedência do seu espaço para uma conversa em torno do livro.

Pier Paolo Pasolini, "Giorgio Bassani"


Pier Paolo Pasolini e Giorgio Bassani

Pier Paolo Pasolini e Giorgio Bassani

Tradução: João Coles


A nova temporada literária italiana começou com um livro que li, desgraçadamente com uma profunda «correspondência de amorosos sentidos»: A garça, de Giorgio Bassani. É a história de um delírio - do qual o protagonista se dá conta subitamente, e não num momento «de compasso forte», mas num momento «de compasso menos acentuado» - em conformidade com a diabólica habilidade do autor, ou seja, no momento estilístico mais vazio, narrativamente mais cinzento. O «desgosto inconsciente» pela própria vida de um pequeno-burguês de Ferrara, vulgar mas nada insensível, a não ser pela ferocidade judaica que, tornando-o vulnerável, o arrancou brutalmente da vulgaridade fatal da sua classe social - passando a «desgosto consciente» repentinamente e sem razão nenhuma: talvez por saturação. Uma entropia que explode. Edgardo, o protagonista, é para mim um homem, se não odioso, repelente. Não conseguiria escrever uma só linha sobre este Edgardo. Sobre ele Bassani escreveu um livro inteiro; viveu com ele, portanto, durante anos. Como conseguiu?

Para Bassani, homens como Edgardo são heróis: «heróis burgueses» mal-grado a evidente contradição de termos, «a contradição que não consente». E porque é que são heróis? Porque não pôde ser como eles: um burguês semelhante. E o não pôde ser por factores externos: porque é judeu e durante a sua juventude - excluindo a perseguição racial e a «diversidade» judaica objectivamente operacionais em qualquer momento histórico - durante a sua juventude viveu o fascismo. Bassani foi, portanto, bloqueado na sua crítica à burguesia porque algo ou alguém o impediu injustamente de tornar-se burguês - caso ele tivesse querido. Ele foi privado da sua liberdade de tornar-se burguês. Isto fê-lo ver a burguesia sob uma luz diferente: a luz da nostalgia. Tratando-se para ele de uma «condição perdida» por motivos de força maior e não por escolha própria, começou a ter saudades dela (contrariamente à sua natureza de poeta que não consegue ser burguesa nem consegue ver um burguês como um herói; consegue, quando muito, vê-lo como «criatura» que dá pena ou faz sorrir, como nos filmes de Renoir ou de Tati).

Não sentindo repugnância mas nostalgia pela vida deles, Bassani pode não só descrever o mundo dos burgueses, mas pode, inclusive, descrevê-lo «revivendo» os seus discursos, isto é, citando constantemente as frases feitas e os lugares-comuns destes. Todos provenientes de uma ideologia atroz: conservadorismo, conformismo, consumismo paleocapistalista. Na prática, delineando a própria prosa da linguagem destes, Bassani consegue criar uma analogia entre o pequeno mundo burguês e o seu estilo, que se tornam em duas realidades paralelas. Edgardo decide morrer por causa da própria vida; Bassani, que reviveu a vida de Edgardo através do próprio estilo, parece desejar morrer com ele. Por isso é que a leitura deste livro é tão assustadora.

“Tempo” nº 47, a. XXX, 16 de Novembro 1968

in Il caos, Garzanti