Um casamento no inferno: sobre romãs e poemas

Korê com Romã, Museu da Acrópole, Atenas, séc. VI a.C.

1.      

Ultimamente dou com romãs em toda a parte. Estão em caixas de madeira à porta de todas as mercearias que não ficam longe da rua onde vivo ou aparecem de todos os tamanhos, em cores castanhas e vermelhas, embaladas em esferovite, nas bancas do mercado às quartas-feiras. Em Atenas, de onde voltei há poucos dias, havia-as de quase todas as cores nas lojas de comida em Exarcheia, ou no enorme mercado da Praça do Teatro, ou moldadas em cerâmica nas lojas de recordações de turistas que se multiplicam por todos os bairros da cidade. Vi umas quantas nas mãos de estátuas nos museus dedicados à antiguidade clássica e até completamente secas e ainda a pender da sua árvore junto às ruínas do teatro em Delfos. Durante boa parte da viagem esperei cruzar-me com a mítica romã azul que Yiorgos Seferis descreve na segunda parte de um poema intitulado “Tordo,” um poema que ele escreveu acerca da paisagem da ilha de Poros, pouco depois de ter regressado à Grécia durante a Segunda Guerra Mundial. Esta romã é a noite, e a obscuridade de um seio, e um pouco um talismã que permite uma estranha metamorfose, a de preencher alguém de estrelas. A romã desse poema é, enfim, um objecto misterioso e inexplicável, um pouco perigoso, como acontece com a maior parte das coisas que Seferis escreveu sobre o desejo. “Não te esqueces,” diz o último verso do excerto que cito aqui, mas aquilo de que cada um não se esquece é aquilo que as sucessivas imagens deste poema evocam em cada um, ao mesmo tempo algo privado e partilhado, com a sua própria profundidade.

— ‘Maybe the night that split open, a blue pomegranate,
a dark breast, and filled you with stars,
cleaving time.
                     And yet the statues
bend sometimes, dividing desire in two,
like a peach; and the flame
becomes a kiss on the limbs, then a sob,
then a cool leaf carried off by the wind;
they bend; they become light with a human weight.
You don’t forget it.’

(Tradução de Edmund Keeley)

2. 

Paestum, Parque Arqueológico, ca. 2018

Devo ter visto muito poucas árvores de romãs na vida e sei quanto disso é a tristeza de uma adolescência e idade adulta urbanas, por isso acho as romãzeiras as mais surpreendentes das árvores. Por isso também raramente esqueço as que vi. Sinto que são sempre um pouco minhas. Algumas destas míticas árvores estavam (estão? estarão?) num campo que é cortado pela estrada que vai dar ao parque arqueológico de Paestum, entre Nápoles e Salerno, onde se podem ver alguns dos mais bem conservados e mais monumentais templos da Antiguidade. Os templos são massivos e gregos, foram erigidos no tempo em que esta região era a colónia da Magna Grécia. Gente de quem sabemos pouco ali os contruiu entre o século VI e o século V a.C. Mal vemos os templos, sentimo-nos pequenos. Mal vi essas árvores senti-me contente de me livrar da monumentalidade, a alegria de ser perecível. Era o princípio do outono e elas estavam alinhadas como vinhas até perder de vista, com as romãs ainda não bem maduras. Os gregos e os romanos acreditavam que as romãs eram o fruto dos mortos. Um fruto amargo e doce, com uma mitologia ambivalente a acompanhá-lo. Nos frescos que estão no museu do parque arqueológico há romãs por toda a parte.

Frescos com Romãs, Museu Arqueológico de Paestum, 340 a.C.

Uma outra romãzeira de que me lembro bem está plantada numa campa bem mais recente e mais discreta do que qualquer templo, num cemitério em Roma. A árvore foi deixada mesmo ao lado da lápide e começa a florescer na estação em que a terra começa a morrer. Não penso nesta árvore sem pensar em Deméter e Perséfone. Não há muitos deuses gregos que morram e permaneçam mortos, ou que ao morrer adquiram poderes formidáveis, mas Perséfone é uma excepção. Há muitas coisas para dizer sobre esta deusa que morre jovem porque um deus se apaixona por ela.

Romãzeira, Roma

3.

Morta de fome no Hades, recusando-se a comer há vários dias, depois de ter sido raptada e violada pelo deus dos mortos, Hades, que se quer casar com ela, o fruto que Perséfone por fim come é uma romã. Mais tarde, assim é contado no Hino Homérico a Deméter, um desses primeiros poemas que nos chegaram em que a mitologia dos gregos foi cifrada em poesia, Perséfone contará à mãe, a deusa das colheitas e da agricultura, Deméter, como comeu esse fruto. É um dos momentos mais estranhos e mais extraordinários na história da poesia arcaica, um daqueles raros instantes na literatura desse período que chegou até nós em que duas mulheres têm uma conversa a sério.

Depois de Deméter ter percorrido toda a terra à procura da filha, a deusa esconde-se num subúrbio de Atenas, Elêusis, para se afastar dos deuses e deixar tudo o que estava na terra perecer. Zeus entende o lado impiedoso da raiva de Deméter e envia Hermes ao mundo dos mortos para pedir a Hades que traga Perséfone de volta. O deus deixa-a voltar, mas não sem antes lhe dar uma semente de romã. Quando a mãe e a filha se encontram, mal se abraçam, a mãe imagina o que aconteceu:

Enquanto [segurava a filha querida nos braços]
[de súbito o seu coração suspeitou de algum engano. Com um medo terrível,]
soltou-se [do abraço e logo lhe perguntou:]
“Minha filha, tu não [comeste nada enquanto estiveste lá em baixo,]
pois não? Fala [e não cales nada, para que ambas fiquemos a saber.]
Pois se não o fizeste, podes estar [entre os demais imortais]
e comigo e com o teu pai, [o filho de Crono de negra nuvem,]
viver honrada por todos [os imortais,]
mas se provaste algo tens de voltar lá para baixo e [as profundezas da terra]
habitar durante a terça parte [do ano]
e as outras duas junto de mim e dos [demais imortais.]
Quando na perfumada Primavera a terra florescer
com flores de todo o género, então da sombria escuridão
ressurgirás, para grande espanto dos deuses e dos homens mortais.  

Perséfone responde:

... às escondidas,
ele pôs-me na boca uma semente de romã, alimento doce como o mel,
e obrigou-me a comê-la contra a minha vontade.[i]

É com esta frase que Perséfone diz a Deméter que ficará para sempre ligada ao mundo dos mortos, que não pode exactamente voltar nunca, que nada tornará a ser como antes.

Perséfone é uma daquelas personagens da mitologia que tem dois nomes, que em certo sentido apontam para duas identidades, Perséfone, que é o nome por que é mais conhecida, e Korê, que significa simplesmente moça. Alguns estudiosos associam a mudança do nome à mudança de estado de Perséfone, de solteira para casada, de filha de uma deusa (Korê) para rainha do mundo dos mortos (Perséfone). As interpretações deste mito que olham para ele como metáfora de um ritual de transição na vida de jovens mulheres não resolvem a sua carga misteriosa e negativa: casada, Perséfone, que tinha sido Korê, não está exactamente viva. A passagem é, pelo menos da perspectiva de Deméter, brutal, dolorosa e acontece em aparência contra a vontade das duas mulheres. Podíamos dizer que há neste mito qualquer coisa da amargura e da acidez da semente, que traduz o lado inevitável da vida. À excepção da lírica de Safo e das tragédias de Eurípides, textos mais tardios, poucas obras da antiguidade estão tão interessadas na mentalidade das mulheres gregas da Antiguidade como este hino. E, contudo, não conseguimos entrar dentro da cabeça de Perséfone, não a conseguimos nunca entender perfeitamente.

Talvez isto ajude a perceber porque é que os gregos e os romanos usavam este mito para explicar outra coisa, a passagem das estações do ano. A terra morre no inverno, quando Perséfone tem de partir para o Hades e começa a renascer na primavera, quando ela regressa para junto da mãe. Mas Perséfone permanece tão impenetrável quanto todas as outras personagens à sua volta podem ser explicadas.

Num dos poemas de A Beleza do Marido, um livro sobre um casamento quase tão ambivalente e estranho como aquele que uniu Perséfone e Hades, Anne Carson comenta este poema num poema seu: 

Alguma vez ouviste falar do Hino Homérico a Deméter?
Lembras-te de como Hades cavalga para fora da luz do dia
nos seus cavalos imortais no meio de um pandemónio.
Leva a rapariga para um aposento frio lá em baixo
enquanto a mãe dela vagueia pela terra causando dano a tudo o que vive.
Homero narra-o
como a história de um crime contra a mãe.
Porque o crime de uma filha é aceitar as regras de Hades
coisa que ela sabe que nunca vai ser capaz de explicar
e assim despreocupadamente diz
a Deméter:
“Mãe, esta é a história toda.
Com malícia ele depositou
nas minhas mãos a semente de uma romã doce como o mel.
Depois pela força e contra minha vontade obrigou-me a comer.
Conto-te a verdade com pesar.”
Fê-la comer como?[ii]

A semente que Perséfone por fim come, contra sua vontade ou não, é um símbolo de muitas coisas no poema homérico: de núpcias, dolo, posse, juventude, inexperiência, sangue, fertilidade, morte. O gesto de Hades de alimentar Perséfone confirma o casamento mas lembra indirectamente os mortais que na terra estão a morrer de fome enquanto Deméter se recusa a fazer o seu trabalho, a voltar à normalidade. E todo o luto de Deméter está concentrado nesta pequena semente. Na cronologia do hino e na cronologia do desaparecimento de Perséfone, o casamento de Hades e Perséfone não se tinha tornado real e irreversível justamente até ao momento em que lhe é dada a possibilidade de voltar para junto da mãe, que é o momento em que ela come a semente e torna impossível um regresso permanente.

Anne Carson, no entanto, vê no gesto de Hades e na aceitação de Perséfone não o dolo ou o engano, mas cumplicidade, se não aceitação social. A semente exclui Deméter, cria um mundo que só pertence a Hades e Perséfone. Do que sabemos dos casamentos dos gregos antigos, a noiva partilhar uma refeição com o marido, em sua casa, era sinal da sua aceitação da união. Se Hades não enganou Perséfone e se ela sabia o significado da semente quando a aceita (sabia ou não?), então este casamento só existe a partir de um gesto de mútuo entendimento, da tácita negociação da regra que permite a Perséfone passar a existir entre dois mundos.

Este poema que é sobre sementes interroga-nos então sobre outra coisa: quanto daquilo que liga Hades e Perséfone é escolha, quanto disso é deliberado ou irracional, assente na paixão da curiosidade, na ignorância, no medo? Mas o hino não resolve nada disso, estende-nos uma semente, que para Perséfone é um símbolo de uma liberdade comprada (porque a inteligência de Hades é cobarde e canalha como costuma ser cobarde e canalha a inteligência dos patriarcas e a escolha que ele lhe dá não é escolha nenhuma, porque não é exactamente negociada), é também símbolo de desejo e morte e, sobretudo, de inexperiência, do peso de um futuro que ela não entende bem, mas que já não pode ser travado porque alguma coisa na silenciosa Perséfone mudou. A semente da romã é terrível e extraordinária, como as esperanças pouco razoáveis, as paixões tóxicas, e como o que é imprevisível e inesperado, as coisas que mudam a vida de um instante para o outro. Perséfone será a partir daqui aquela deusa que tem o poder formidável de decidir quem pode voltar do mundo dos mortos. Quando Hades, este deus das coisas mais tristes, a viu ainda viva, ele já sabia que ela era capaz disso ou não? E se sim, foi isso que lhe disse que eram iguais e se podiam entender? Mas e o que fazer da mocidade perdida de Perséfone? Da crueldade do inverno sobre a terra?

Então podemos dizer que o Hino Homérico a Deméter é baseado num mito que é sobre aprender a negociar com a dor, a solidão, o aborrecimento da monotonia de um tempo sem esperança, que existe em todas as vidas e não pode ser evitado, sobre deixar tudo morrer para deixar tudo renascer de novo, maniacamente, como acontece com Deméter na sua dor, talvez como aconteça com Perséfone quando ela aceita, ou escolhe, este corte.

4.

Havia outro dos mais jovens dos deuses gregos que tinha uma relação desastrosa com romãs. Numa tradição que não remonta nem a Homero nem a Hesíodo (onde o deus é filho de Zeus e Sémele), Dioniso é filho de Zeus e Perséfone. Nessa versão, o deus é despedaçado por titãs e do sangue dele, derramado no chão, brota uma romãzeira. Normalmente, a árvore e o fruto de Dioniso são outros, a vinha e a uva. Mas fará pelo menos um pouco de sentido que este fruto fosse visto como tendo alguma ligação, mesmo na mais obscura das tradições, ao mais misterioso dos deuses, aquele deus andrógino que conhecia o coração dos homens nos seus impulsos mais irracionais e que, como acontece com Penteu em As Bacantes de Eurípides, os podia levar a ver intoleravelmente um lado de nós próprios que às vezes preferimos negar ou fingir que não existe. Penteu pagará o mais terrível dos preços pela sua negação do mais tresloucado e divertido dos deuses, o deus do desvario. A vingança de Dioniso sobre Penteu, no entanto, não tem nada a ver com romãs. 

5.

Em 1887 foi escavada na Acrópole, não longe do pórtico do templo onde estavam as Cariátides, uma estátua de uma Korê a segurar uma romã. Essa Korê perdeu a cabeça literalmente. O mármore em que ela foi esculpida não veio de longe, de Penteli, ainda na Ática, o que quer dizer que esta Korê não tem uma origem exótica. O corpo elegante, as vestes, o tipo de penteado, colocam a escultura entre estátuas de uma estética que está entre o período pré-clássico e o clássico. Alguém a esculpiu algures no século VI a.C. Há ainda traços de tinta vermelha na romã, que é mais ou menos contemporânea dos templos monumentais que estão em Paestum, à volta dos quais alguém plantou campos de romãs.

D. H. Lawrence, que nasceu dois anos antes de esta estátua ser encontrada, ocupou-se no início da década de 20 de escrever um poema que é sobre encontros com romãs. É também sobre a progressão do desejo, sobre tentativa e erro. O poema desenrola-se em três partes de Itália, na Sicília, não assim tão longe dos tais templos monumentais, em Veneza e na Toscana.

D. H. Lawrence era bom a escrever sobre a natureza e não só por causa do guarda de caça que ele coloca no campo inglês no mais famoso dos seus romances. Um poemário onde se vê isso bem é em Birds, Beasts, Flowers, publicado em 1923. “Pomegranate” tem um tom provocatório, um narrador seguro de si, mas não há nele nem o mais leve traço do tipo de astúcia de Hades, da habilidade para a contemporização e para o jogo, há talvez exactamente o contrário disso, o lado corajoso, um pouco cego e um pouco temerário, de alguém capaz de se apaixonar e se perder de verdade, sem grande medo de errar ou ser julgado. Isto é particularmente notável tendo em conta a moralidade opressiva do contexto em que Lawrence começou a escrever (basta pensar que Lady Chatterley’s Lover acabaria em tribunal):

You tell me I am wrong.
Who are you, who is anybody to tell me I am wrong?
I am not wrong. 

In Syracuse, rock left bare by the viciousness of Greek women,
No doubt you have forgotten the pomegranate trees in flower,
Oh so red, and such a lot of them. 

Whereas at Venice,
Abhorrent, green, slippery city
Whose Doges were old, and had ancient eyes,
In the dense foliage of the inner garden
Pomegranates like bright green stone,
And barbed, barbed with a crown.
Oh, crown of spiked green metal
Actually growing! 

Now, in Tuscany,
Pomegranates to warm your hands at;
And crowns, kingly, generous, tilting crowns
Over the left eyebrow.

Em D. H. Lawrence, Selected Poems, p. 89. Também aqui.

Esta pergunta “Who are you, who is anybody to tell me I am wrong?” é quase da ordem de um primeiro corte, de uma primeira incisão. A recusa impaciente de qualquer coisa. Digamos que essa recusa é a de deixar que outros julguem por ele como escolher as suas romãs, se é que isso é uma escolha e se é que é de romãs que estamos a falar. O que se segue são descrições de encontros com romãs em três paisagens diferentes. Estas romãs evocam e são também elas gente nessas paisagens, das mulheres gregas tão viciosas na Sicília que apagam a memória de romãzeiras em flor até às romãs que na Toscana aquecem as mãos. Podíamos dizer que a estrutura de tentativa e erro que dá ao poema a sua forma lembra um pouco a interacção entre as personagens de O Banquete de Platão, que é o diálogo platónico sobre o amor e a origem da filosofia. O poema vai progredindo, numa linguagem cada vez mais sexual, cada vez mais provocatória, desarmante e cómica em face do que sabemos da moralidade inglesa à data em que D. H. Lawrence escreveu este poema:

And, if you dare, the fissure!

Do you mean to tell me you will see no fissure?
Do you prefer to look on the plain side? 

For all that, the setting suns are open.
The end cracks open with the beginning:
Rosy, tender, glittering within the fissure. 

Do you mean to tell me there should be no fissure?


Mas o final não tem nada de sobranceria, é antes de uma lucidez e vulnerabilidade deslumbrantes:
 

For my part, I prefer my heart to be broken.
It is so lovely, dawn-kaleidoscopic within the crack.

A metáfora nestes dois últimos versos transforma-se em metamorfose: o coração é uma romã, precisa de ser partido para ser aberto. Aceitando isso, lá dentro há um caleidoscópio.  

(6.

Há uma irmandade de atitude entre este poema e outro que não tem nada a ver com romãs, escrito por Auden em 1957, sobre estrelas, “The more loving one,” onde aparece qualquer coisa desta atitude fraturada, contraditória e irresolúvel, que une desejo e decepção, prazer e dor, vida e morte. A aceitação lúcida e lúdica de Auden deste estado de contradição não é nem um pouco menos espetacular do que no poema de Lawrence:  

How should we like it were stars to burn
With a passion for us we could not return?
If equal affection cannot be,
Let the more loving one be me.

Admirer as I think I am
Of stars that do not give a damn,
I cannot, now I see them, say
I missed one terribly all day.) 

 

7.

Odysseas Elytis nasceu em Creta em 1911 e uma das primeiras coisas por que ele se deve ter apaixonado na vida foi a paisagem da Grécia. Esta paisagem é um motivo constante e quase omnipresente nos seus poemas. Às vezes na limpidez exagerada e quase estereotipada das suas descrições da paisagem grega, imagino o mesmo tipo de olhar com que uma poeta que nasceu apenas um pouco mais tarde e noutro país as viu, Sophia.

O primeiro livro de Elytis continha já um dos seus poemas que iam ficar mais famosos, “A romãzeira enlouquecida,” um dos grandes poemas da tradição surrealista grega. Não é bem certo quem é esta romãzeira enlouquecida. Um pouco como as romãs com que D. H. Lawrence se encontra ela é em parte romãzeira e em parte talvez uma rapariga metamorfoseada em romãzeira, como sugere o tradutor inglês de Elytis, Jeffrey Carson. Há qualquer coisa de uma dança extraordinária na descrição desta árvore, com o narrador constantemente a descrever e a perguntar se a romãzeira enlouquecida corresponde àquela descrição.

Proud, full of danger, tell me is it the mad pomegranate tree
Who mid-world breaks the demon's storms with light
Who spreads from end to end the saffron bib of day
Richly embroidered with sown songs, tell me is it the
             mad pomegranate tree
Who hastily unhooks the silks of day?

In petticoats of April first and cicadas of August fifteenth
Tell me, she who plays, she who rages, she who seduces
Casting off from threat its evil black glooms
Pouring intoxicating birds on the sun's bosom

Tell me, she who opens her wings on the breast of things
On the breast of our deep dreams, is it the mad

             pomegranate tree?

Há nesta árvore que tem uma natureza dionisíaca qualquer coisa de irresolúvel, inexplicável, que se traduz na energia que o narrador atribui a todas as coisas que ele pensa que esta árvore pode fazer. Esta personificação da árvore é um subterfúgio retórico que recorda um pouco uma quadra de Pessoa, para as quais as edições críticas não têm uma data definitiva, mas que talvez tenha sido escrito por volta de 1935, em que uma romã é uma metáfora para descrever uma boca (sendo que o mecanismo aqui corre ao contrário, é o elemento humano que é assimilado ao mundo vegetal):

Boca de romã perfeita
Quando a abres p’ra comer,
Que feitiço é que me espreita
Quando ris só de me ver? 

Podia-se dizer que a enumeração das múltiplas possibilidades deste fruto, nos dois poemas, corresponde a um estado de observação apaixonada. Aquelas asas que se abrem na profundidade dos sonhos podem ser um motivo freudiano que lembra Dalí, mas são também a descrição transfigurada – na visão de um pintor, como Elytis também era – da coroa de uma romã. A relação entre riso e romã no poema de Pessoa torna transparente uma coisa que existe em todos estes poemas, o lado um pouco misterioso deste fruto, metáfora que não se quer explicar de diferentes seduções. Isto é particularmente verdade no caso do Hino Homérico: tentar explicar como e porquê Perséfone come aquele fruto é como embater contra uma parede. Vai continuar a ser um dos momentos mais inexplicáveis de toda a história da poesia. Tentar explicá-lo pelo ângulo da mansa aceitação ou da simples coerção parece-me sempre demasiado óbvio e parece-me sempre reduzir o poder de deliberação de Perséfone, uma forma de a simplificar planamente. São leituras possíveis, claro, mas aquele momento no poema continua a ser mais inexplicável do que tudo isso. É um pouco como supor que as éticas dos gregos antigos não tinham as ferramentas para falar da agência complicada de uma rapariga, da sua formidável vontade, se não dos seus complicados poderes de decisão, quando não de escolha. Se pensarmos em Nausícaa, Cassandra, Antígona, Electra, sabemos que isso não é bem verdade. Então?

8.

Então. De vez em quando é preciso apaixonarmo-nos irracionalmente por poemas inexplicáveis, se por mais nada, por causa desse modo de ver em profundidade que deixa uma romã ser uma romã, uma rapariga, a chave que prende a rapariga no mundo dos mortos e a deixa voltar ao mundo dos vivos, que permite que se descreva uma romãzeira como uma coisa que dança ou a anotação da extraordinária cor azul num fruto normalmente vermelho.  

Não sei se há outro modo de ler poemas difíceis que não são solução para nada e que nenhuma paráfrase pode explicar definitivamente se não admitindo à partida que eles são uma espécie de viagem, que deles não tiramos quase mais nada para além do caminho que fazemos com eles. É por isso que ler certos poemas, tanto quanto rever certas paisagens, é capaz de ser uma maneira de resistir ao tempo. 

As últimas romãs em Delfos, Janeiro de 2022


[i] “Hino Homérico a Deméter,” Tradução de José Pedro Moreira em Hinos Homéricos, Introdução de João Diogo Loureiro, Tradução e Notas de Tatiana Faia, Miguel Monteiro, José Pedro Moreira, Imprensa da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018.

[ii] Anne Carson, “IX. Mas que palavra era?,” A Beleza do Marido: Um ensaio ficcional em 29 Tangos, tradução minha, não edições, Lisboa, 2019.

 

 

Eduardo Quina, Consanguíneo - nota de leitura

O último livro de poesia de Eduardo Quina, Consanguíneo, Officium Lectionis Edições, 2021, traz o esplendor de uma poesia que talvez ainda não se tivesse revelado totalmente. É como se finalmente o rio, ou rios, chegasse ao delta e aí justificasse todo o caminho, cheio de imprevistos e de tentativas, precedente. Não se trata, porém, de um «esplendor» qualitativo, uso o termo para traduzir uma emergência avassaladora. Resultado de um esbatimento da tensão antagónica entre as pulsões de vida e morte, agora desaguamos numa única grande, incalculável economia do thanatos, percorrida por uma violência autoengendrada.

Para quem acompanha o exercício poético (movimento de um corpo pleno) de Eduardo Quina, verá em Consanguíneo (uma irmandade de sangue trágica: «o processo ôntico e fúnebre / da consanguinidade») o extremar de um horizonte de sentido (mais total do que parcelar, mais de arrebatamento do que de discernimento) que habitava já os seus poemas anteriores. A linguagem (clara/obscura), o bem/mal (metafísicos, sobretudo), deus (presente/ausente), a redenção, o desespero, a dor, a morte, várias formas de abismo, um pouco de luz (inesperada e limitada, avarenta e fugidia).

Consanguíneo é um manifesto que ilumina a escuridão (mas a claridade gasta-se logo à entrada das trevas e o excesso de lucidez, que poderia alinhavar artimanhas ontológicas, queima), rastos da luz que presidiram ao começo do mundo, no qual o divino palavroso fez tudo mal feito, «afinal somos o projecto falhado dos deuses», e depois, com a nossa cumplicidade, remediou a incompetência com um tecido de ilusões, um deus que «descansa de todas as mortes» (uma soberania divida fundada no bem seria capaz de, imediatamente, originar uma vontade geral boa). O ofício do poeta (porventura anódino: «o sacrifício inútil da poesia»; «a poesia nada pode»; «a poesia é uma farsa.»…)  é, sem qualquer convicção épica, traduzir em palavras, com estas exatas palavras, a «nossa dor insuportável e definitiva». O que seria da dor se as palavras, aparentemente redundantes, não lhe dessem voz? Se o livro insiste na irrealidade da redenção, o que seria de nós se o poeta não abrisse, também ele, a caixa de Pandora, e nos dissesse que mais fragmentos de niilismo se soltaram logo no primeiro gesto de curiosidade perverso de… talvez deus? Nos dissesse isso, e desta forma — como quem angustiado por uma espada de Dâmocles conhece, finalmente, o desfecho sangrento — nos desiludisse: as coisas são assim, se aguentares mereces ver-te ao espelho sem te enojares. Mas o teste é exigente: «crianças brincam / na dor imensa / de serem mortais. / deus não lhes fala: / é o enigma da cegueira.» ou

«a criança espera pacientemente os predadores
 construindo através de pequenas linhas
as gaiolas
onde os intermináveis pássaros negros
esperam resignadamente
as vozes e os vultos da fome

[uma simetria da doença de deus]»

Quando olhamos para a composição do livro, percebemos, desde logo pelos capítulos — «Morrer ou Enlouquecer»; «O Jogo da Cabra Cega»; «Natureza Morta»; «Maligno»; «Ausência»; «Labirinto»; «Cegueira»; «Epitáfio» —, que colocar O Triunfo da Morte de Pieter Bruegel na capa não foi um acaso estético. Consanguíneo é uma epístola, talvez laica, sobre o morrer e a via despida, desgraçada que nos conduz até lá. As positividades são demasiado dolorosas (encenadas num teatro da crueldade com mães e filhos sem afetos, o cordão umbilical rasgado a golpes de desespero, a dor em cada segundo de vida, um deus da facécia e da impotência, uma linguagem que esfaqueia os bem-intencionados) para que uma negatividade, à maneira da fenomenologia sartriana, traga o que quer que seja de bom (é que «os pulmões são feridos pela respiração»). Talvez aqui haja essa radicalidade do mal que Hannah Arendt quis, numa estratégia anti-messiânica que se percebe, suprimir. Um mal metafísico que impede, por isso mesmo, a redenção:

«tens o corpo tombado sobre as flores:
O eco de uma outra língua
Esquecida no passado

Quando cristo chegou estavas morto:
O rosto desfigurado pela verdade

[depois as palavras da ressurreição:
Estavas novamente pronto para o sofrimento]

Eduardo Quina conclui o livro com um epitáfio, a última estrofe diz: «precisava tanto que não tivesses morrido». Se lançarmos este apelo noutra direção talvez acabemos por apanhar um «precisamos todos de viver», transformando o abismo do abandono num amor fati que exulte com a nossa condenação à liberdade. Se o olhar de deus é inútil, se a ideologia se tornou irremediavelmente inconsequente depois da dissolução do eu, então, respondendo ao poeta, somos nós que devemos conduzir esta cegueira, alimentando-nos, como diz Eduardo Quina, da «brutalidade do real». Sabendo, contudo, que «estamos sós diante da nossa solidão». Mas, numa resignação estoica cruzada com a ontologia teológica leibniziana, «Talvez este seja o melhor dos mundos possíveis», por isso: «fecho a porta e assisto ao milagre do fogo». (Re)citando uma ideia de Rui Chafes, que Eduardo Quina põe em epígrafe no capítulo sobre o Maligno, «A beleza é impossível sem as marcas da morte». Certo, mas redobrando de intensidade (o que não desautoriza totalmente algumas paragens redentoras, por exemplo no poema da página 175), Eduardo Quina escreve: «se ao menos a morte te aliviasse da dor.»

"O escudo de Aquiles" de W. H. Auden

Tradução de Tatiana Faia

Ela procurou por cima do ombro dele
     Pelas vinhas e oliveiras,
Pelas bem-governadas cidades de mármore,
     E naus em mares bravios,
Mas ali no metal reluzente
     As mãos dele puseram em vez disso
Um ermo artificial
     E um céu de chumbo. 

Uma planície sem feições, despojada e castanha,
     Nem uma folha de relva, nem um sinal de vizinhança,
Nada que comer e lugar nenhum onde sentar,
     Porém, congregada no vazio, permaneceu
Uma incompreensível multidão,
     Um milhão de olhos, um milhão de botas alinhadas,
Inexpressiva, à espera de um sinal. 

Do ar uma voz sem rosto
     Comprovou por estatísticas que alguma causa era a justa
Em tons tão secos e planos como o lugar:
     Ninguém foi aplaudido e nada se discutiu;
Coluna a coluna numa nuvem de pó
     Marcharam para longe sustentando uma certeza
Cuja lógica os trouxe, mais tarde noutro lugar, à tristeza. 

Ela procurou por cima do ombro dele
     Piedades rituais,
Vitelas coroadas de brancas grinaldas,
     Libação e sacrifício,
Mas ali no metal reluzente
     Onde devia ter ficado o altar,
Ela viu à luz trémula da forja dele
     Uma cena bem diferente.  

Arame farpado cercava um ponto arbitrário
     Onde oficiais entediados se recostavam (um fez uma piada)
E as sentinelas suavam, porque o dia era quente:
     Uma multidão de gente normal e decente
     Vigiava de fora e não se moveu nem falou
Enquanto três pálidas figuras foram trazidas adiante e amarradas
A três estacas enterradas ao alto no chão. 

A matéria e a majestade deste mundo, tudo
     Cujo peso conta e sempre pesa o mesmo,
Estava entregue às mãos de outros; eram pequenos eles
     E não esperavam ajuda nem ela veio:
     O que os seus inimigos gostavam de fazer foi feito, a sua vergonha
Era tudo o que os piores queriam; perderam o seu orgulho
E morreram como homens antes da morte dos seus corpos.

Ela procurou por cima do ombro dele
     Os atletas nos seus jogos
Homens e mulheres numa dança
     Movendo os doces membros
Rápido, mais rápido, à música,
     Mas ali no escudo reluzente
As suas mãos não puseram pista de dança nenhuma
     Mas um campo estrangulado de ervas-daninhas.

Um garoto esfarrapado, sem destino e só,
     Vagava naquele vácuo; um pássaro
Voou para o alto e escapou à sua pedrada certeira:
     Que violassem as raparigas, que dois rapazes apunhalassem um terceiro,
     Eram axiomas para ele, que nunca tinha ouvido falar
De mundo nenhum onde uma promessa se cumprisse
Ou em que alguém chorasse porque outro chorasse.   

O armeiro de finos lábios,
     Hefesto, coxeou para longe;
Tétis dos seios reluzentes
     Gritou de desespero
Ao ver o que o deus forjara
     Para agradar ao seu filho, o forte
o de coração de ferro o assassino de homens Aquiles
     Que não ia viver muito.

 

1952 (primeira reedição em 1955 em The Shield of Achilles)

Desconstruir / Construir

«Uma herança lega‑nos sempre subrepticiamente formas de a interpretar. Ela impõe‑se a priori à interpretação que produzimos, transformando-nos quase sempre, numa certa medida, e até um ponto difícil de estancar, em repetidores.» (Jacques Derrida, Du droit à la philosophie, Paris: Galilée, 1990).  Em resposta, os críticos da marginalidade pós-moderna — e da sua aposta, bem nietzschiana, em que tudo é interpretação — acusaram várias vezes Derrida de relativista estéril (sobretudo Jürgen Habermas e John Searl). É que Derrida multiplicou os textos de desconstrução das velhas tradições filosóficas, textos sedutores, ainda por cima. O exemplo paradigmático é Glas (Paris: Galillé, 1974), onde pôs lado a lado, na mesma folha, o metafísico Hegel e o mestre da violência metafórica que foi Jean Genet. Tudo em estado puro, sem qualquer nota de rodapé ou citação bibliográfica. Os dois campos discursivos afetam-se mutuamente no espaço que partilham (a folha), manifestam uma heterologia de corpo a corpo, e dessa forma desenvolvem uma (de)formação que os ultrapassa individualmente. Este jogo diferencial entre discursividades heterogéneas faz emergir a própria desconstrução, i.e., o que no interior de cada texto tem a força de o arruinar enquanto depositário de um sentido homológico; mas, ao mesmo tempo, também o projeta para outras possibilidades de sentido. Marca-se, assim, a crise do discurso filosófico logocentrado, numa crítica sem complacência às habituais grelhas discursivas. Para combater a acusação de leviandade filosófica, de falta de rigor ou capacidade sistematizadora, repetiu algumas vezes o que, primeiramente, escreveu no posfácio a Limited Inc («Toward An Ethic of Discussion»), onde deixa claro que nunca encorajou a leitura caprichosa, o dizer «não importa o quê». Por exemplo, uma boa leitura de Rousseau exige, segundo ele, a compreensão progressiva da língua francesa e o conhecimento do corpus rousseauniano e contextos que o estabeleceram e estabelecem.

Mas levado por este jogo de ordem e excesso («Il faut l’ordre e il faut l’excès», Georges Bataille), de determinismo cultural, talvez antropológico, e de desconstrução libertária e provocadora, quero, como quem quer, a medo, a sua parte do saque, pensar um pouco ao lado, exercer, talvez, uma pequena desconstrução sobre Derrida. Sigo em parte Michel Foucault e recupero algumas ideias dos últimos anos, presentes também aqui na Enfermaria 6.

É possível tornarmo-nos estranhos a nós, interpretar de forma livre não se funda, ao contrário do que muitos dizem, no aprofundamento da soberania do Eu. O Eu é sempre um produto histórico, um patchwork, com camadas de preconceitos, da época, da cultura, ou culturas, dominante (ou, sendo minoritária, com suficiente força para desenhar sentidos próprios). Por isso, na procura quase insana de uma verdade universal, Descartes, e depois a fenomenologia husserliana, pretendia que o Cogito fosse estritamente racional, sem contexto, uma fábrica divina de algoritmos autossustentados. Tratava-se, pois, de desencarnar o homem, de o des-historizar (compreende-se o anti-cartesianismo de Ortega e Gasset quando diz «Eu sou eu e a minha circunstância»), de o purificar, epistemologicamente, primeiro, e depois, talvez, ontologicamente. Seria um ser sem as «paixões da alma».

Regressemos ao Eu como produto da situação, de um processo de subjetivação (o «para-si» de O Ser e o Nada de Sartre) alimentado pelo exterior. Sabendo isso, como tornar nossa parte das interpretações, evitando reeditar constantemente o que já se pensou e disse? Há exemplos que podemos seguir, emulando-os mais do que imitando-os. Indico o de Michel Foucault e o seu trabalho metódico para se tornar outro, pensar de outra forma (como Nietzsche queria que cada um fosse, uma força permanente de autossuperação). Na década de 60 do séc. xx escreveu sobretudo sobre literatura (Raymond Roussel, Georges Bataille e Maurice Blanchot), a morte do autor e do próprio homem (Les Mots et les Choses). Depois, consagrou-se à questão do poder (Surveiller et punir e Histoire de la sexualitéLa volonté de savoir). Na década de 80, regressou ao sujeito a partir da Grécia Antiga, (L’usage des plaisirs, Le souci de soit e vários cursos no Collège de France); mas não o fez para glorificar os gregos ou esboçar um manual de autoajuda, antes para que o sujeito se reinventasse, porque estudá-los permitia desenvolver uma estranheza em relação a nós.

Ora, este «estranhamento» é a melhor forma de nos libertarmos dos preconceitos que conduzem as nossas interpretações. Trata-se, pois, de nos desfazermos do que somos, reavivar o nosso processo de subjetivação, superar-nos, advir outros, reconfigurar as mil-folhas que enquadram a nossa visão do mundo, estimulando um pensamento livre (uma liberdade em situação, nada que ver com o cogito cartesiano ou a subjetividade transcendental kantiana). Desejarmos ser mais margens do que uma centralidade ruminante e redundante. É que não somos somente um labirinto de segredos ou um catálogo de categorias, mas sobretudo exterior, exteriorização, o íntimo foi abusivamente sobrevalorizado (Freud, Estruturalismo…). A vida é um campo dúctil, modificável, a ética de Foucault, o ethos fabricado de cada um, seria o resultado de um trabalho pessoal sobre si («techniques de soi»), um esforço de transformação, de apropriação de novas formas. Pensar é um artesanato que vai compondo cada indivíduo, na sua relação com os outros e com o mundo, ou melhor, com a Terra.

Mas não haverá aqui mais do mesmo? Esse exercício de libertação não será ainda uma astúcia, mais subtil contudo, das várias instâncias de condicionamento? Talvez, mas vale a pena arriscar, pormo-nos a andar de lado, obliterar o que somos, desconstruir as caixas onde nos vão, e nos vamos, colocando.

Que o horizonte de expetativas futuro seja o de sermos heterodoxos canonizados.

 

Anne Carson

Anne Carson

O percurso de Anne Carson enquanto escritora é bastante difícil de classificar. As designações mais óbvias poderiam descrevê-la como poeta, tradutora e ensaísta mas estas três práticas contagiam-se umas às outras mais ou menos constantemente. Por exemplo, em 2009, Anne Carson publicou uma tradução da Oresteia. A Oresteia, assim explicará qualquer estudante do primeiro ano de clássicas, é uma trilogia composta de três peças de Ésquilo (Agamémnon, Coéforas, Euménides). O Agamémnon narra a história do regresso do Rei Agamémnon de Tróia e da morte deste às mãos da sua mulher, Clitemnestra, depois de este ter morto a filha de ambos, Ifigénia, para propiciar os deuses e poder partir para Tróia. Coéforas narra o dilema e a decisão do filho de ambos, Orestes, de matar a mãe para expiar o homicídio do pai. Orestes é instigado a tomar esta decisão pela irmã, Electra. A última peça é um marco na história do teatro na Europa e na história da filosofia ocidental sobre a justiça, talvez ainda mais do que todas as outras. É sobre como Orestes é perseguido pelas Fúrias, divindades tresloucadas que o enlouquecem por causa do crime que ele cometeu e de como, em Atenas, ele é finalmente julgado segundo uma nova forma de justiça, no tribunal do Areópago, o que põe fim a um ciclo de violência ancestral que, de outra forma, se perpetuaria infinitamente. Tudo isto estaria certo, mas a peça de Anne Carson não é nada disto. Anne Carson desconstrói a Oresteia de Ésquilo, agrupando três peças que não estas exactamente: passamos do Agamémnon de Ésquilo para a Electra de Sófocles e daí para Orestes de Eurípides, cujo final opõe ao peso da justiça esquiliana (e à narração vagamente propagandística do mito fundador de um respeitável tribunal ateniense) uma acção tragicómica, preocupada com a mesquinhez humana e com a vingança, com muito humor negro e melodrama à mistura, numa das representações mais negativas de Helena de Tróia que a tradição clássica nos legou. A peça termina com o casamento de Orestes com Hermíone, filha de Helena. É só depois de casado com a prima que Orestes é enviado para Atenas para ser julgado.

Há nos clássicos uma intensidade e uma violência que de várias formas são profundamente próximas do estilo de Anne Carson. Em Grief Lessons, outro volume de traduções de tragédias gregas, desta vez dedicado à tradução de quatro tragédias de Eurípides, Anne Carson escreve a propósito de Eurípides:

 

Who was Euripides? The best short answer I’ve found to this question is in an essay by B.M.W. Knox, who says of Euripides what the Corinthians (in Thucydides) said of the Athenians, “that he was born never to live in peace with himself and to prevent the rest of mankind from doing so.” Knox’s essay is called “Euripides: The poet as Prophet.”

 

E continua:

 

There is in Euripides some kind of learning that is always at the boiling point. It breaks experiences open and they waste themselves, run through your fingers. Phrases don’t catch, theories don’t hold them, they have no use. It is a theatre of sacrifice in the true sense. Violence occurs; through violence we are intimate with some characters onstage in an exorbitant way for a brief time; that’s all it is.

 

“There is in Euripides some kind of learning that is always at the boiling point...” e “through violence we are intimate with some characters onstage in an exorbitant way for a brief time…” Há qualquer coisa nesta frase que podia servir para descrever a inteligência de Anne Carson e a experiência de a ler. Pensamos, por exemplo, nas suas traduções dos fragmentos de Safo, a mais importante das poetas líricas gregas, intitulada If Not Winter onde, com um cuidado que relembra um pouco o cuidado mítico dos tradutores do Pentateuco em Alexandria, Carson traduz todos os fragmentos de Safo, enfatizando assim a nossa relação com a perda desses textos e expondo a paixão da nossa curiosidade pelo que é fragmentário, enquanto ao mesmo tempo somos envolvidos nas paixões fragmentárias de Safo. Este “some kind of learning that is always at the boiling point,” por outro lado, assoma no seu primeiro livro de ensaios, Eros the Bittersweet, o seu estudo das representações da fragmentação das emoções na literatura erótica da Grécia antiga.

Há depois livros que são alicerçados num dos traços mais vincados do estilo de Anne Carson, as ligações inusitadas, extremamente improváveis, que definem o seu pensamento crítico. Anne Carson é provavelmente a grande poeta comparatista do nosso tempo, se bem que esta etiqueta não descreve exactamente o seu método. Mas, The Economy of the Unlost, por exemplo, é um longo ensaio sobre a relação entre outro poeta lírico grego, Simónides de Ceos, o primeiro poeta a colocar um preço a um poema e a vendê-lo por dinheiro e não por outra coisa qualquer, e o poeta alemão Paul Celan, que, tão isolado no seu contexto como Simónides, teve de escrever poemas sobre coisas às quais é impossível colocar um preço. Penso que esta ideia de quanto vale um poema é uma obsessão de poetas de um modo geral, mas uma obsessão muito particular de Anne Carson, que, por vezes, nos seus livros, encontra expressão indirecta noutros contextos. O que vale um poema em face do suicídio de um irmão é uma das perguntas que pode parecer estruturar Nox, o livro que ela escreveu após a morte do irmão e sob a influência de um poema do poeta romano Catulo, um poema também ele escrito sobre a morte de um irmão, o chamado carmen 101.

Ou, para falar dos livros que a não edições tem traduzido e editado em Portugal, eles às vezes expandem a nossa percepção do que os géneros literários podem fazer para lá de quaisquer designações mais óbvias. Por exemplo, em teoria, Autobiografia do Vermelho, originalmente publicado em 1998, publicado pela primeira vez em Portugal em 2017, em tradução de Ricardo Marques e João Concha, é uma reescrita do mito de Gerião, mas é também algo que nunca antes tinha sido escrito, é um bildungsroman, um romance de formação, que é também a autobiografia de uma metáfora. Gerião é Gerião mas é também a metáfora de uma infância e adolescência de um artista, definidas pelo trauma e pela desadequação, pela auto-descoberta e pela auto-invenção. Gerião, a personagem e a metáfora, apesar do trauma, não se fecha, continua a procurar fora de si qualquer coisa que o traduza, apaixona-se, descobre-se parte de um triângulo amoroso, e regressa para uma sequela, red doc. Anne Carson chama a esta autobiografia um romance em verso.

Autobiografia do Vermelho, não edições, 2017

Alguma relação entre consequência, sequela e crise existe entre os outros dois livros que Anne Carson publicou e que eu traduzi para a não edições, A Beleza do Marido e Vidro, Ironia e Deus. A Beleza do Marido é o mais recente dos dois, foi publicado originalmente em 2001, enquanto Vidro, Ironia e Deus foi publicado pela primeira vez em 1995. A não publicou-os inversamente, A Beleza primeiro, em 2019, e Vidro, Ironia e Deus em 2021. Estas coisas confundem-se na cabeça dos leitores, mas A Beleza do Marido foi um dos primeiros livros de Anne Carson que li, durante um verão parcialmente passado no quarto de uma residência de estudantes que ficava nos arredores de Budapeste. Estava a dividir este quarto com uma jovem académica oriunda de Israel que encheu as minhas noites de um relato épico sobre a complicada linha de contactos a cultivar se queria ver os meus artigos publicados numa determinada revista da especialidade, um discurso cheio de confiança debaixo do qual se escondia a terrível precariedade e a competição muitas vezes amarga que são a condição da vida de jovens investigadores. Partilhava esse quarto e pensava constantemente em voltar a Oxford para desistir da tese de doutoramento que estava quase a acabar de escrever para escrever outra tese, o que na verdade acabou por acontecer. Dentro da minha mochila tinha viajado comigo de Inglaterra esse livro de Anne Carson, The Beauty of the Husband: a fictional essay in 29 tangos e eu costumava pôr um fim abrupto àquelas sessões gratuitas de aconselhamento profissional de alguém que, bem vistas as coisas, estava tão perdida como eu, dizendo que precisava de ir fazer um telefonema e ia lá para baixo, para o campo de basquetebol, ver os jogos e ler A Beleza do Marido. Eu estava nessa altura a vários anos de distância de começar a traduzir Anne Carson e de me cruzar com um famoso poeta norte-americano que tinha sido colega de Anne Carson na NYU e que, quando lhe contei que estava a traduzir este livro de Anne Carson, disse que quem lia o livro ficava com a impressão de que o marido era o único responsável por aquele divórcio. Noutra altura eu teria querido mesmo saber mais, mas não me interessou perguntar. Algures entre 2012, quando eu primeiro li A Beleza, e 2018, quando ouvi este comentário, a minha curiosidade febril acerca da biografia de Anne Carson tinha passado. Não há muito que se possa dizer sobre o grande trauma de um divórcio que seja particularmente original ou edificante quando o tom com que a conversa começa é normativo e aponta para questões de justiça retributiva. Nunca tinha pensado em A Beleza do Marido como um livro óbvio desse ponto de vista. O marido que aparece em A Beleza do Marido é certamente uma figura peculiar e tóxica, caracterizado como é pelas infidelidades recorrentes, pelas mentiras compulsivas e desnecessárias, pela fascinação com os jogos perigosos. Mas há qualquer coisa na natureza da mulher que é atraída por esse comportamento e que permanece inexplicada, o que talvez sugira uma natureza elusiva como a do marido. A ambiguidade do marido e a ambivalência da mulher, por outro lado, têm paralelos com o tipo de inteligência conjugal que se encontra na Odisseia, tornam-nos parte de uma longa tradição de literatura acerca de gente casada. Ao longo desses vinte e nove poemas talvez se reconstrua a linha de atracção, decepção, perda e, finalmente, resgate da beleza que podem sobreviver ao fim de uma relação. Pode-se então dizer que A Beleza do Marido é um livro que é um pouco como algumas das tragédias gregas que Anne Carson gosta de traduzir, é sobre expiação e veneno e sobre o veneno enquanto cura também. Desta forma, o livro evoca o lado inexplicável de certos laços que nos definem e da beleza que se agarra a esses laços, coisas que não se confinam puramente a uma lógica da tristeza – amantes, amigos, fragmentos de conversas, torradas, quartos de hotel, bolos de casamento, bagos de romãs, Tolstoi e Homero.

Vidro, Ironia e Deus, que acaba de ser publicado, é um dos livros mais estranhos de Anne Carson, embora pareça, em teoria, um dos mais convencionais. De todos os que aqui mencionei é aquele que em termos de classificação de género literário parece mais fácil de arrumar: cinco longos poemas e um ensaio. Mas os poemas são ensaísticos. Criam até o efeito estranho de subordinarem a uma dicção que muitas vezes parece convocar o tipo de estranheza que caracteriza a linguagem de um poeta difícil e caro a Anne Carson, Ésquilo, versos decididamente prosaicos, de onde qualquer musicalidade parece estar ausente. Este estilo de poesia ensaística gera cortes e elipses que se enchem de associações inusitadas, é fonte de drama e paródia, instaura muitas vezes o ritmo que se podia dizer que é o de alguém a pensar na própria música silenciosa do pensamento.

A Beleza do Marido, não edições, 2019

Vidro, Ironia e Deus é um livro que começa com a crónica de uma leitura obsessiva de O Monte dos Vendavais de Emily Brontë e que termina com um ensaio sobre o género do som ou, melhor dizendo, um ensaio sobre interpretações misóginas de certas vozes. Entre um texto e outro, muitas outras vozes se ouvem: a da narradora, a da mãe da narradora, a de Anne Brontë, a de Sócrates, a de Heitor, a de Deus, a de Isaías, a de uma mulher romana chamada Anna Xenia a quem morreu um filho. À medida que estas personagens se sucedem questiona-se o lado nocivo de sociedades estruturadas por convenções patriarcais, o que sabemos do passado, como reconhecemos os outros, como é que eles nos conhecem a nós, porque decidimos viver de determinadas maneiras, porque viajamos ou empreendemos longas caminhadas pelo gelo. Sentimos, à medida que lemos, que nos tornamos “…intimate with some characters… in an exorbitant way for a brief time…” Porquê essa exorbitância?, é uma pergunta que Anne Carson, que gosta de analisar primeiras causas aristotelicamente, poderia colocar. Não sei se existe uma resposta exacta a esta pergunta, mas no último parágrafo de Vidro, Ironia e Deus lê-se:

 

Ultimamente comecei a questionar a palavra grega sophrosyne. Interrogo-me sobre este conceito de auto-controlo e se realmente é, como acreditavam os gregos, uma resposta à maior parte das perguntas sobre bondade humana e dilemas de civilidade. Pergunto-me se não haverá outra ideia de ordem humana para lá da repressão, outra noção de virtude humana para lá do auto-controlo, outro tipo de eu humano que não um fundado na dissociação de interior e exterior. Ou, de facto, outra essência humana que não o eu.

 

Anne Carson, Vidro, Ironia e Deus, não edições, Lisboa, 2021, p.162 (tradução minha).

VIdro, Ironia e Deus, não edições, 2019