Dois poemas de Frederico Klumb

No fim ficou dito que não havia passado ou presente.
Eu lia Borges apenas pela segunda vez na vida,
mas lia como alguém que tivesse apanhado muito
e logo depois encontrado uma cama.
Fico pensando se não é mais certo que um livro
seja como sentir frio e dormir assim mesmo.
Talvez, dormir com frio depois de um espancamento.
Estou lendo Borges pela segunda vez na vida.
Bem no início do livro ele fala de um poema
que demorou séculos para ser escrito e ainda não foi concluído.
O poema vai em sonho de tempos em tempos
para as cabeças de um e de outro.
Penso que é como se Borges estivesse dizendo
que não existe presente ou passado.
Ver e lembrar é a cabeça pensando.
É como se Borges estivesse dizendo
que a distância entre a imagem que chega no olho
e o ponto no cérebro que interpreta essa imagem
é a mesma percorrida quando lembramos qualquer coisa,
mas com direções diferentes.
Talvez eu não esteja lendo Borges pela segunda vez na vida.

. .

 

Ando descobrindo o tamanho dos meus dedos
através do que não me é permitido tocar agora.
Assim também vão meus dias, acumulam-se
detrás de quinas, no espaço entre uma coisa e outra,
como se ditassem com muita calma e em silêncio,
para uma criança agitada por chegar no mundo,
cada letra do nome que vai receber no batismo.
A mãe poderia explicar ao filho: é pra isso que lhe servirá
saber dizer a palavra caminhãozinho em voz alta
quando sentir falta dos teus brinquedos.
E pela mesma razão terá de aprender o nome
dos teus pais e daquilo que decidir amar.
Era isso então viver? Olhar as coisas com as mãos
e saber as medidas, os nomes que lhes damos,
quando elas não estão no mesmo espaço que os dedos?
Espero sem pressa, nos livros e na minha janela.
Ando construindo uma cadeira.

II CARTA A VIOLANTE DE CYSNEIROS OU O ANÚNCIO DO REGRESSO*

“Ich habe genug”

          BWV 82

 

Porto um de Agosto de dois mil e dezanove.
Querida Violante de Cyneiros escrevo-te
nova carta para te dar as novas deste lado.
Perdoe-me a minha raiva excessiva que na
minha pena exerci aquando da última carta.
Nada mais era do que amargura tristeza medo
e desprezo sentido pelos que me apedrejam. 
Maldizer é sempre a fuga o lado mais fácil a
negação para o que tem de ser feito e não
mais adiado. É assim que te anuncio o meu
regresso. Virei a ampulheta e espero calmo
o tempo exato a última areia para voltar.
Quero sentar-me sobre as rochas cobertas
de algas e alinhavar como a uma bainha dois
ou três poemas que nada trarão de novo
à grande literatura mas que irritarão uns
quantos. Talvez um punhado de boa gente
com bom fundo que só pretende manter
viva a rima a métrica e o soneto como fosse
isso aquilo que nos irá salvar do fim certo.
Não sabem eles que é na pureza do gesto
da palavra da linha e sombra definidas que
a união ainda é possível ou que a origem
ainda é possível a mão na mão o olho no
olho. Quero o regresso Violante ao sol
abafado aos homens simples aos gestos
puros à amizade e sobretudo ao amor.
Levo Homero Dante Kavafis Jorge e o
imprescindível Prelúdio de Wordsworth
as palavras que me salvaram da morte.
Quero o tempo arrastado pela brisa do
mar o tédio dos domingos os sinos da
matriz batendo no meu peito e ouvidos.
E do alto da torre ver as brancas nuvens
que cobrirão os meus futuros lutos. Não
quero a soberba a inveja e o atrito pois
tudo o que procuro mais do que tudo é
o silêncio o silêncio até nas palavras. E
em verdade te digo
querida Violante que
mais do que eu Barbara escreve-me esta
carta o Teves enquanto o Raúl Milhafre
dorme na sua cadeira de baloiço e palha.
Eu já cansada passo-lhe a caneta pois
estou calma demais para escrever, tomei
dois comprimidos para dormir. Vou-me e
deixo-te com ele mas antes deixa-me só
perguntar-lhe como boa senhora da ilha
“O menino é filho de quem?”. Escreva ele!
E assim deixo-a lentamente adormecer
sem que ela saiba que mais do que ela
sou eu quem aqui escrevo-te Violante.
Esta é a minha carta e talvez por isso
um tanto ou quanto mais sossegada.
Esta é a minha carta a o meu regresso!
Quero ser o búzio preto à beira do mar
a areia negra pisada pela criança que
corre e o sorriso na boca dos meus pais.
Regresso porque escolho o esquecimento
o marasmo das escamas do peixe no rosto
o silêncio azul das algas e o horizonte por
abrir. Regresso porque prefiro estar contigo!
Quem? Tu que sentado me lês desse lado.
Do teu pequeno João. O menino regressa!

                    *último poema de Barbara Stronger (1983-2019).

Nota: Todos os seus poemas, dispersos e inéditos, estarão reunidos em “Lazarus”, a sair, brevemente, pela Enfermaria 6.

Vítor Teves - “A Niké Negra”, 2019.

A Noite

Marc Chagall, 'Maries au village' (Opera Gallery)

Marc Chagall, 'Maries au village' (Opera Gallery)


A noite escondeu o meu corpo
a minha mão sobre o teu peito
o teu nome na minha boca

A noite escondeu os meus ossos
o movimento
exacto das nossas coxas
apagou a nossa rota, a travessia
o catálogo das nossas naus

A noite fez de nós um caminho escuro
um poço sem ecos e sem baldes

Mas foi tarde, sobre a nossa carne
abria-se uma flor insondável
e o amor estava já cumprido

jonas ou a reinvenção

Manuscrito Walter, W.547, fol. 40r

Manuscrito Walter, W.547, fol. 40r

jonas,
voltaste hoje a israel.

era já noite e
bem sabes que
depois das dez
o silêncio jurídico do teu prédio
proíbe
banho água sabão azul.
depois das dez
és sempre essa
coisa suja e ruim em
repouso aristotélico
bactéria-verme e impureza

jonas,
queria lavar o teu corpo uma
última vez

talvez esteja demente
quando te digo que
passo as minhas tardes
com os rebanhos do mar,
talvez esteja demente
quando te digo que
alimento nas rochas
a lembrança de uma
humidade corrompida
em águas cervicais

jonas,
a vontade aperta-me as escamas
e as ondas queimam como o ar


espero-te três dias e três noites e
peço-te
que voltes comigo
para celebrar o batismo
da primeira traição

Os Cobardes

La belleza no es un lugar donde van a parar los cobardes.
Antonio Gamoneda


Talvez venhas a morrer perto
violentado pela luz, pelo assombro
de uma vida pensada junto ao fogo
mas de onde nunca trouxeste nada 

A vida é tanto mais pesada
se te não fere a violência de um deus
se regressas da solidão com o mesmo porte
com as mãos abertas e laceradas

como praças descobertas para a morte