Pousaste em mim (vox propria)

Pousaste em mim. Não te reconheci a letra

navegavas há muito sem que te fingisse

e as velas tinham já desfeito o navio

porque pousaste em mim navegava

ou pensava que andar à deriva é o mesmo

desfizeste-me o rumo antes que viesse

uma tempestade mesmo que pequena

mesmo que imensa mesmo que pousasse

como todas as tempestades repousam em ti

lentas como relâmpagos ou imensas

como a lentidão de uma pétala

ou curtas como o fim de uma estrela

ainda hoje não sei porque pousaste

ou porque não pousaram todas as ruas

todas as rugas do teu rosto ainda hoje

não sei porque morri antes de ti antes que

viesse o sol ou outra estrela anã

desaparecer de mim e me desse um descanso

em que repousasses em mim com prazer

como quando pousas a mão direita

sobre mim e sinto na pele o calor

de uma estrela extinta ou a estrada

em que estava quando ousaste deixar

que a minha mão se desse à tua

com a lentidão de um desejo com pena

com pena tua de te veres sozinha

de repente sem que eu te perguntasse

quando se extingue uma estrela porque me amas

e todos os dias variavas dentro de mim

uma pergunta cabisbaixa antiga remota

porque esperas porque não me tomas

porque não resulta este espaço de sombras

numa escuridão digna de infinito

e de tudo aquilo que os cientistas ainda

ainda não sabem o que é mas repousaste

repousaste na sombra de todas as árvores

mesmo que a sombra nelas não se abrigasse

de toda a chuva que caía de um céu

sem nuvens como todos os relâmpagos

que caem sem que haja luz ou vento

ou sequer os teus lábios que os empurram

com o desastre de todas as estrelas

e as desfazem como o pó delas mesmas

como se o palco as pudesse pousar

sobre os teus lábios que navegam

sem âncora que os possam aportar

nos meus já te disse preciso de tempo

preciso de muitas mais tempestades mesmo

mesmo que surjam muitas depois de ti

muitas depois de mim muito depois de

muito depois de me teres dado a mão

e me teres suplicado nada te peço

a não ser que me libertes e abras a janela

e me digas meu amor vai para a janela

e vê que lá nada pousa ou melhor fica

fica um pouco e logo se abala sabes

sempre disseste abalar como se de facto

o verbo existisse assim tão comovido

que as persianas se fechassem e o porto

se contornasse com sombras de estrela

se é que a escuridão tem estrelas

que apenas não as deixa cair naquilo

que ninguém sabe o que é e à falta de melhor

o vão chamando deus ah como quando

como quando quase te vens e gritas de repente

meu deus e os corpos depois repousam

demasiado rápido porque toda a lentidão

tem estrelas ou não fosse tudo isso inexplicável

eles dizem ainda mas eu digo ainda mais

agora tenho a certeza desta página

deste verso desta linha de ti que agora

me tentas ler com a experiência de um leitor

que repousa os olhos sobre o infinito e descobre

que nenhuma letra interessa senão a tua.


"Leopardo e Abstracção" de Tatiana Faia (Fresca Editores)

 
O novo livro de Tatiana Faia, Leopardo e Abstracção, pela Fresca Editores

O novo livro de Tatiana Faia, Leopardo e Abstracção, pela Fresca Editores

o que eu sei da filha de agamémnon

para lá de tudo isto o teu entendimento
um campo de feno exposto no interior da lente
antes do golpe da luz
quando a precisão de um momento te invade
e se vira exposto sobre si próprio
como papel de prata na violência do vento
e altos edifícios de pedra selam as saídas
de ruas interiores por onde carros circulam
a baixa velocidade

o que eu me lembro não é
o que nenhum poeta da antiguidade
pudesse ter deixado escrito
em versos a que sopro nenhum
imprimiria o ritmo da fala
onde ela assomasse de carne e osso
não uma criatura literária
mas a urgência de um corpo livre do seu enredo

o que eu me lembro dela
é um dia de parada quando o suor
me colava a camisa ao corpo
e a segui por entre a multidão
para lá dos guardas e das linhas de gente
reunidas para ver soldados desfilar
o que me lembro
é entender que pode ser um erro gracioso
a conclusão mais lógica de um passo
e reparar que forma nenhuma
traria de volta o momento antes da manhã romper
quando o rosto encontra o seu duplo
na superfície vítrea de um lago
claro que nada disto teve nada
de uma quietude campestre
a limpidez de uma manhã mitológica
cortada pela seta de um deus em degredo

segui-a e perdi-a e tornei a encontrá-la ainda
em ruas paralelas onde os cafés ficam vazios
a meio da tarde por causa do estado de sítio da rotina
e há secretos motivos cultivados atrás
de portas que se fecham subitamente
mas não aprendi nada do mundo dela
nem poderia precisar a extensão do seu segredo

peão e estratega
o que ficou comigo muito tempo depois
foi essa longa caminhada de muitas centenas de metros
por ruas cheias de gente
o cabelo preso que lhe caía pelas costas
o que lhe ia chamar eu antes que soubesse o que fosse
pó, ouro, o corte de papel na memória de um fantasma
inevitável, real mesmo antes
da manhã se derramar com a luz
na impessoalidade de um quarto estranho
depois de uma noite de insónia

Oxford, 3 de Setembro de 2017


o mistério dos homens adormecidos

alguns jazem no plaino abandonado
que a morna brisa aquece
no bolso direito das calças a cigarrilha breve
o peito exposto ao ar os braços cruzados
debaixo da nuca
na vulnerabilidade de um gesto
para lá da farda regimental
do fato e gravata de todos os dias
e depois da poeira sobre os sapatos
a respiração tão regular do corpo
é de repente um acidente da sorte
uma dádiva improvável e oportuna
trazendo de volta a desaceleração do quotidiano

alguns nem estão à espera de ver o mundo arder
cumprem os dias como se tudo
o que alguma vez lhes tivesse sido dado viver
fosse um dia só
e apenas uma só versão desse dia existisse
a profundidade existe apenas
quando jazem sem cuidado
ao comprido num sofá num vigésimo segundo andar
num apartamento de vinte cinco metros quadrados
rodeados por um marulhar de barulhos
por todos os lados e sem que o nada os acosse
um leve sorriso cai sobre os lábios
e um cigarro arde no cinzeiro
enquanto eles deslizam pelo aqueronte do sono adentro
sem espadas e sem escudos que lancem a agulha
da resistência ao desconhecido
noite adentro a confiança ou uma promessa
de amantes pode ser algo como isto

alguns regam as plantas cinco minutos antes
e desfazem os nós dos atacadores
e tiram ordeiramente os sapatos
e reconhecem até mesmo a proximidade da morte
mesmo agora enquanto comem uma refeição enlatada

enquanto me dou conta de que alguns são
ainda até atléticos e musculares e necessários
e mesmo a sua extrema necessidade
alimenta o desejo de todas as coisas
a precisão de alguns instantes quando
rapazes jogam à bola debaixo dos olhares de leões
e as cidades são imponentes e inteligentes e sem perdão
como os aborrecidamente espertos quartetos de mozart

alguns fecham os olhos e inadvertidamente
deitam abaixo a última parede do mito
aquela que postulava que a inteligência que permite
ler os dias é uma espera posta à destruição

adormecendo alguns entrelaçam as mãos sobre o peito
como guerreiros medievais sepultados em túmulos de pedra
no coração das cidades
e é estelar o seu abandono como um fragmento
de vidro que se ilumina de repente na escuridão do ar
e mergulhados profundamente no sono
intuem a profundidade do azul na obscuridade da noite
as chamas que marcam as amuradas da noite
as coordenadas do sal na pele
para lá das horas em que escreveram
linhas em que declararam conhecer bem o sal
que se cola à pele vindo das orlas de certas praias no atlântico

e no entanto alguns persistem e aceleram
para lá do sono em carros que cortam pela noite
demasiado cansados e um pouco decadentes
na fronteira com a extrema incoerência
um pouco para lá do cansaço
para lá do facilmente evidente

Nápoles, 8 de Outubro de 2017

 

Nada de Novo   

 

Morreste e nesta nova década, continuas morto, parece impossível 

Que haja algo realmente definitivo, algo tão familiar e abismal, 

Incompreensível não voltar a ver o teu cabelo branco rampa acima, 

Enquanto a tua transit da mesma cor te esperava o regresso, 

Preferia ser carro, não sentir a falta de ninguém, era vendido 

E pronto ou apodrecia numa garagem ou numa eira 

Onde garotos perderiam inocências e virgindades na companhia de vespas, 

Não passa de uma semana em que não a veja novamente, 

A dos outros, sempre a dos outros e a minha sempre possível 

A cada instante, contudo a tua é a que mais estranho, 

Todos os teus ódios apagados como a pólvora que acendias 

No escalpe do inimigo em África, o medo às camas armadilhadas 

Um esquecimento encaixotado em forma de eternidade, 

A palidez perfumada das francesas um desejo mudo nos teus lábios, 

Nada nunca mais, e não há nada mais estranho nem mais certo, 

Agarra cada oportunidade, dizias-me, entra em tudo o que se abrir, 

É o que se leva da vida, mas na verdade, da vida não se leva nada, 

Só se estranha tudo, então aborrece e depois nada, 

A década é outra e tu continuas morto e eu não apodreço numa eira, 

Nenhum garoto perdeu a inocência em mim, as vespas só dentro, 

Nem isto é um poema, é só um pedaço de tristeza que não pinga. 

 

Turku 

09.01.2020 

  

visões da serra

1

ela vai sempre adiante
abre o caminho a passo de desejo
e curiosidade         a cada volta
o mesmo é novo porque há
a miríade do outro

como se eu fôra cego
abriu-me os olhos ao rato
esquivo que joga às escondidas
a toupeira cega pequena Dédalo
cujas patas são mãos e dá
vontade de cumprimentar num aperto
afável         o esquilo onda de fogo
vermelho que abrasa a vista
o coelho medroso célere fodilhão
produtor de chocapic natural que aprecia
o veado de nádegas brancas em saltos elásticos
como molas de carne e pelugem à procura de deus
o javali que lhe enche o coração
e os sonhos de uma caça infinita

se a soltasse          por instantes
                    desta corda que a mim a ela me prende
vê-la-ia de arpão em baleeiro batel
e para rimar chamar-me-ia Ismael

2

quando me encontrava
na funda cova de mim
escavaste um túnel
desde um buraco onde te estendias

à noite          a princípio          só
uma pata e uma mão
palma com palma se tocavam
para          palmo a palmo
        me ensinares a trepar para fora
                                                           de um pensamento

a ti         cadela        meu sol negro
minha sombra canina
      devo mais que um poema

3

a minha cultura não te arrebatou
por completo         o teu traço
abre ainda o olho à presa
e tomas-me na tua matilha
como eu a ti na minha morada

distraído não vi o ataque
fechei os olhos quando dei conta
da vida na tua mandíbula

como a um cego o quebrar dos ossos
narraram-me a tua violenta dança

agora calma caminhavas a meu lado
olhando por vezes para mim
com o esquilo pendendo da tua boca
um olhar que hoje traduzo e dizia

vi como esse súcubo te deixava
sentado com as suas melancólicas
mãos sobre os teus ombros
e na janela jazia o teu olhar de afogado
sabia o que tinha de fazer
convido-te
o jantar é por minha conta

4

que importância tem         redobra o olhar
é uma cadela num mundo-
cão

com menos de um ano mal conhecendo
o cheiro que exalava forçou-a
a natureza à ferocidade de uma matilha

os homens que anteriormente de si cuidavam
não se dignaram a procurá-la
de qualquer modo já o interesse da novidade
se tinha retirado dos olhos das crianças

quando nos vimos         a alta noite        só pele
e osso e medo da pedrada
ou pontapé-de-sai-daqui
vi a rainha de pêlo de ébano que és
esse porte que portas em minha companhia
perna cruzada a observar o animal que escreve
o quarto poema das visões que lhe dás

5

és um pedaço de carvão que respira
nessa cama algodoada         uma lasca
de grafite a cortar os campos
sempre verdes das terras alemãs
a sombra de uma sombra ou uma alma
a suspirar quando te sentas
ao meu colo pedindo atenção e com prazer
concedo as mãos no teu dorso
pelo queixo massajando
os teus triângulos de veludo que cobrem
o vasto mundo de barulhos sons e gentis
ares alheios ao meu sentido e
a tua barriga tracejada a branco
onde o bisturi te raspou a nada
o que ao futuro darias

dormes numa espiral de número d'ouro
numa perfeita paz que me desperta a inveja e
a curiosidade         quem te faz
ganir e uivar e ladrar e correr
no vazio        quem te habita
o sonho        será o meu         o de olho
a olho e entendimento estendido
por cima da areia de diferenças
a imergir no mar da tranquilidade
em que tu e eu nos sabemos iguais
                                        ou o da rainha da floresta teutónica
protegendo as suas crias da tua manha

se lesses este poema saberias que te respeito
te levo ao peito e memorizo o teu corpo
e movimentos e apenas procuro livrar-me
desta doença da interpretação humana
demasiado humana impedindo-te de seres
um simples animal intocado e colonizando-
te com a minha linguagem quando sou eu
quem é surdo cego e analfabeto
ao que dizes com a tua vida vivida a meu lado

AÇORES

“Sovente il sole

risplende in cielo”

  - Vivaldi (RV 117)

 

                                                                                    a Urbano Bettencourt

  

                        I

NOUGAT E GORREANA

 

Entre palavras o fio é retomado.

E doce é a entrega do encontro quente

essas mãos de apertada amizade.

 

Deitado em palhas

observa

o invejoso

o arranjo perfeito.

 

                        II

UMA VIZINHA COM ESTILO

 

Gata!

Uma espécie de leopardo das

neves

revestida de salgado marasmo

e lento tempo

desliza

 

não tem pressa.

O prazer traz entre as patas

e mia docilmente.

 

                              III

BANHISTAS DE OUTUBRO

 

A pele arrepiada do Outubro

submerge no líquido circular da ilha.

 

Nós aqui na esplanada frente ao mar

reencontramos o frio interior da espinha

como peixes que fomos.

 

Longe ela submerge para

dentro da nossa memória enquanto

à porta a nossa vontade espera.

  

                         IV

UMA ILHA CHEIA DE VIVENDAS

 

Vivenda Almeida Vivenda Botelho

Vivenda Soares Vivenda Maia

Vivenda Sousa Vivenda Melo

 

No presépio a rivalidade entre vizinhos

sempre foi muito intensa

Este é o meu palácio de dois metros quadrados

Este sou eu longe de ti, maldito!

 

No presépio as placas na parede de cimento

são sempre sinônimas de arame farpado

distância e chapadões.

  

                         V

ÓCULO DE BASALTO NEGRO

 

A Marquesa

senhora da alta elite

vai ao Teatro.

Hoje haverá Schubert e

notícias de Lisboa que

Dona Glória me trará.

 

Vestido o capote há que

espreitar através do óculo

o silêncio da calçada.

Não vá ela esbarrar com

Dom José de olhos gordos e

mãos ásperas.

 

“Se ao menos fosse pianista!”

  

                     VI

     O DIABO DA FOME

Vermelho sobre branco.

Um papel mais velho do que eu.

Queria ter desenhado este sangue!

 

O diabo semeador de misérias

corre pela ilha procurando vítimas

entre as 11 e a meia-noite.

 

Dona Josefa nunca sai de casa

a tais horas não vá a corrente

do diabo agarrar-lhe a perna.

Mas às vezes arrisca e segue

para casa do padre Rui.

“Não há peito peludo má linde!”

  

                   VII

À CHUVA E AO VENTO

 

Meu rico Santo Cristo

mudo-te as flores todos os dias

a lamparina está sempre acesa

meu pão meu senhor meu bom amor

faça de mim uma mulher justa.

 

Ao relento numa parede do quintal

o moço no quadro em lágrimas

reclama tão triste destino

desprezado à chuva a ao vento.

  

                         VIII

UM LAGO DE METROSÍDEROS

 

Num jardim já sem grades

D. Carlos e D. Amélia sentados

numa esplanada não

apreciam as mudanças

“Corre tão depressa esse tempo

hoje, já reparaste?”

 

Indiferentes à mudança os metrosíderos

reúnem-se no vazio do céu

deixam entre si

no meio do jardim

um lago de céu azul.

 

Combinaram entre si manter a memória

do lago circular que os homens

insistiram em destruir.

 

                   IX

O ELEFANTE CINZENTO

 

Muitos nichos quadrangulares retangulares

pés direitos muito altos

basalto negro e cimento branco

uma alta chaminé sobre o dorso.

 

O elefante caminha lentamente

tem mil pés de aranha

tão finos que ninguém os vê.

 

                                            X

MADRE MARGARIDA DO APOCALIPSE

 

Lembro-me do ano de 1988.

Havia crianças entre a entrada e o jardim

e eu morta conhecia ao fim de séculos

alguma alegria.

 

Na roda da dança havia sempre um

miúdo que olhava para mim

sentia-me viva.

Era o único que conseguia ver-me!

 

Hoje tento ir à janela mas não vejo ninguém.

Tenho por passatempo avistar o universo

na humidade das paredes mas confesso

que trocava esse universo pelo olhar

de uma criança um olhar vivo

um que me fizesse lembrar

padre chico       meu perdido amor.

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Vítor Teves - Ribeira Grande