Inês; A planta; Tarkovski

 

INÊS

Inês deu para vomitar pregos
e arames farpados nas noites de lua cheia

Em sua garganta pigarreava
a ferrugem, parafusos e a crença em deus

rezava cuspindo tétanos, salmos
                             e porcas espanadas


Inês era tão bela.

 

A PLANTA

Esta planta está conspirando
em nosso silêncio?
Alimenta-se do quê?
De tragédias, chacinas,
Sombras ensangüentadas,
Esgotos disformes de fuligens
                                  e parafusos?

Ora, esta planta não deveria
resistir
Não deveria suportar tamanha
hostilidade
Não poderia abrir tanta copa e pétalas
e cores nesse sombrio
                                   cinza

Desafias a paisagem?
Afrontas nossos olhos mesquinhos
e cada vez mais rudes?

Multiplica-se qual erva-daninha
sobre o leito estático
                               desse rio avesso?

É urgente eliminá-la.

Cortem-na, desde já,
                             pela raiz
Com golpes secos, precisos


para arrancar-lhe qualquer beleza possível.

 


TARKOVSKI

A casa em chamas
Janela enclausurada nos olhos vermelhos
A mulher põe a manhã no chão
Entre arbustos e palavras
Descosturamos o silêncio

Quatro poemas de Jorge Miranda

 

BILDUNGSROMAN 

Deste vocabulário-órfão
se escreveu o mundo: 
ser educado tirar boas notas
fazer poemas encomiásticos
aos parentes e às visitas
depois
ascender ao sótão
e continuar a mobiliar
o silêncio decorá-lo
com cortinas bonitas
por na entrada um
carpete onde se possa ler
seja bem-vindo.

 

MERITOCRACIA

Ser educado com o mundo
me rendeu muitos triunfos: 
ser chamado de viado bixa
gay boiola vinte-e-quatro
afetado quadrado homem- 
do-século-dezenove livro- 
de-literatura-com-português- 
arcaico
foram alguns deles. 

Minha bisavó teria orgulho
do antimonumento que ela ergueu: 
a cordialidade e o fracasso
em pessoa.

 

O ENTERRO

Enterrar um piano é muito mais fácil na primavera
quando os cachorros estão em silêncio
quando as paredes estão limpas
e os cadeados estão abertos.

O difícil
o realmente difícil
não é ter um piano
ou cavar um buraco de dimensões tão
violentamente consideráveis nas quais se torne
não só plausível mas possível enterrar um piano
ou ter forças suficientes para, após ter retirado
tanta terra, ainda estar disposto a cumprir
a responsabilidade recíproca de lançar novamente
tanta terra retirada de volta ao lugar onde
por numerosos dias ali permaneceu disfarçadamente
intacta e que, até então, era chamado de chão
ao invés de ser chamado de buraco e, agora,
ser chamado de cova.

O difícil
o realmente difícil
é perceber em que momento do mosaico do mundo
está a primavera
e se nela ainda reside a licença necessária
a desfaçatez conveniente a polidez exigida
frente ao luto e à melancolia dispensados
a um piano que acaba de ser enterrado.

 

A PIADA

Aquele que melhor riu de si
nem sequer deve ter entendido
a piada. Só de ter desci- 
do a essa condição do vivido, 
a esse plano pré-concebido
de etcéteras – vulgo existência – 
supôs como prêmio recebido
um prévio atestado de falência
múltipla de todos os sentidos. 
Pois é: tal piada é antessala
de outros tantos indeferidos
ais. Melhor cavar a própria vala.

engano nosso ao pensar; origami; de que adiantaria fingir; é simples, o mar existe, eu imito; cambalhota; sensorial


#1

engano nosso ao pensar
que um grande castelo
resistiria à leveza do mar


#2
origami

barco de papel
executado por mãos ocidentais
afunda sem fundamento
    aparente


#3

de que adiantaria fingir
escutar o mar
quando é a sua voz
que ressoa a cada quebra? 

é um imenso esforço
ouvir as ondas
como repetições, e nada mais.

envelheço
entre um estrondo
e outro.


#4

é simples, o mar existe, eu imito
feita para quebrar-se, a onda
não sacia a sede de infinito
 

#5
cambalhota

envolvida pela brutal onda
senti meu fôlego desintegrar-se
tingir-se violentamente pelo azul
daquele oscilo que era um oceano inteiro
de tão intenso, de tão mortal.
vivi o significado de voragem
antes mesmo de conhecer a palavra. 
mergulhei num turbilhão de sensações
e lampejos como se estivesse no centro
de um tornado submerso. no ápice do trago,
o mar imprimiu toda sua implacável força, marcou
meu corpo e o ensinou a medir grandezas.
no infindável giro, gravei meu tamanho no mundo
e meus olhos passaram a inundar tudo
como os de alguém
que está prestes
a afogar-se.


#6
sensorial

pelo pouco que domino das minhas reações
suponho que meu primeiro contato com o mar
deve ter sido mais atroz que apaziguador.

estar diante do imprevisível
é uma tarefa árdua: por mais que se antecipe
certo padrão
cada sequência de ondas desloca
um cheiro um som uma textura peculiar. 
é impossível interpretar plenamente o canto da água
      até decidir
sugar o lábio inferior para dentro da boca
percorrê-lo cautelosamente com a língua
e tragar o sal do azul
pela primeira vez. 
 

Poço; Demolição


POÇO

Andamos muito
antes que
explicassem-nos
o quão redondo
esse mundo era

em linha reta

sem fim
nem fundo.


DEMOLIÇÃO

somos riacho
que ignora
a correnteza

: criamos atalhos
destruindo pontes

refazemos a margem
à margem de onde
andávamos antes

certeiramente destroços

xxx

se a guerra não estourar
nas próximas 72 horas então
poderemos dormir tranquilos

enquanto entupimos
o freezer com vegetais saudáveis
lavradores se suicidam

nas campos de fumo
trabalhadores agonizam
junto dos porcos nos

frigoríficos as crianças já
não sonham com as profissões
futuras porque entenderam

que se a guerra não estourar
nas próximas 72 horas
não poderá haver futuro

nem haverá. 
xxx

voo de andorinha &
desastres aéreos
: a gravidade é que complica
os cálculos despreparados

o buraco no asfalto
a pedra no sapato
tudo acontece sem
aviso

o abstêmio se vangloria
de estar longe da bebida
e comemora sorvendo sem
culpa goles compridos de
enxaguante bucal

: a realidade, querida
a realidade é um diagnóstico. 

xxx

estas paredes de tijolos
sobre os ombros

são edifícios
são calabouços

alguém que visse
diria como?

a contragosto
dos transeuntes

perambulo pelas
calçadas

e aguardo o toque
da caixa

a estreia da marcha
ao matadouro. 

Três poemas de Marcus Vinicius

 

Doutrina

Ascende-me, Pai
Sou moço luterano faz uma eternidade
Vendado em quatro cantos mudos: - Ai!
Como disfarço a dor e os estalos da maldade.

 

De tarde

Eu vi o poeta da parede
Interna da pele,
Sossegado, costurar o chá no bule
Matar num gole a sede.

 

A bailarina da janela

Desapareceu na luz branca
Não viu os prédios, não ouviu o trânsito
Na floresta, decidiu ser silenciosa.