Para Ricardo, meu irmão.
‒ Não vou mais a esses lugares [pega o beco]. Por quê? Porque estou cansado e velho [corre, corre!]. Eu sei, tenho trinta e seis, mas sinto nos ombros cinquenta. Há tanto tempo tenho cinquenta! Posso não ter cara, é verdade, mas a idade está na cabeça, não no tempo [ele subiu no telhado]. Sabes muito bem que tempo é movimento. Dentro de mim ideias e desejos tanto se moveram que dizer cinquenta é pouco, talvez sejam milênios. Não exagero, me escuta [cadê tu pra me dar cobertura?].
Sim, há mulheres. Tantas belezas. Sim, divirto-me, mas só porque bebo, e no vício meu corpo se dissolve, expulso de mim estes anseios [vou ter que parar na loja pra comprar armas]. Sim, há música: danço, ébrio, quando enfim me perco. Sim, há a busca multiplicada, seres que tateiam e que, talvez, se toquem e se encontrem. A necessidade de contato é, ainda, o único fio que me prende, mas que agora quero cortar [fica aí que te dou uma carona]. Por quê? Porque enxergo com clareza a ilusão. Tu não a vês porque és um vitorioso. Vives ali como um peixe dentro d'água. Eu não, nasci pássaro, ainda que com asas deformadas, que só servem para curtos e baixos voos [se pular desse telhado vai morrer, putz!, eu avisei]. Escuta, as pessoas não se buscam ‒ elas buscam outra coisa.
Digo-te o seguinte, com toda sinceridade: na imersão de embriaguez, na visão de tão candentes olhares, na dor dos espinhos que me espetam – tamanho é o desejo – ataca-me um veneno que é vontade de distância [vai, entra no carro]. Não sou eu ali; sou o outro que exigem que eu seja. Fantasma que age por impulso, impulso que se asseverou, pela repetição, destituído de clareza [preciso comprar lanche também...]. Quero fugir, e quanto mais quero, mais me desce pela goela a bebida que ludibria a vontade. Meus olhos vagueiam, a pele sente o bafo desesperado da esperança [... e coletes balísticos].
Entenda: não a minha esperança; estou definitivamente perdido. Sinto a delas e a deles, que se traduz nessa falsa alegria. Quem é realmente feliz, convenhamos, não precisa de tanto barulho, sequer de esperança [o esquiloadoidado está nos perseguindo]. Na felicidade, seja isto o que for, não te parece que há silêncio? [fodeu, vai lançar um míssil]. Quando se espera, há dor, e começo a sentir, dentro de tamanha euforia, largado e supostamente feliz como os outros, começo a sentir a dor dos outros. Sua infelicidade, o vácuo de seus corações, manta invisível que impregna minha pele. Sinto arrepios [quase!]. Não posso consolá-los, como não posso consolar a mim mesmo, porque como eles sou bruto sofrimento, estado concreto de incerteza.
Quero ir-me, asseguro-te. Se me perguntam o que tenho, como posso responder-lhes? Que tenho o mesmo que todos os que me cercam? A necessidade a todo custo mascarada de ser visto e amado? A necessidade disfarçada sob roupas de grife, em conquistadores sorrisos, em poses de grandeza? Que me responderão eles? Farão como tu, que dirás: deixa de viagem [vamos matá-lo antes de]. Mas não é viagem. Tudo bem, pode ser que a tristeza seja só minha e que meus compatriotas sejam o povo mais feliz do mundo. Pois bem, que seja. Mas não sou compatriota de ninguém, ao que parece [ele pegou a rua à esquerda]. Irmãos, só reconheço os que como eu sentem a ambiguidade desses lugares [direita, quero dizer].
E lá dentro quase sou engolido, confesso [visse?]. Há tanto aqui embaixo que ainda me fascina [pulou o muro da casa]. Corpos femininos, amigo, me inquietam [vamos cercá-lo]. Meu sangue ferve e, artista que sou, contemplo o Belo nas mulheres, deixo-me arrastar pelo desejo – e pela frustração que inevitavelmente lhe sucede [não vai escapar]. Você bem sabe, só os exímios esgrimistas desse jogo de egos são felizes. É preciso estratégias, ataques e recuos, habilidade, desfaçatez e malícia [eu por um lado, você pelo outro]. Manejo muito mal o florete, quero vencer sem engajar o ferro ou fazer um a fundo. Minha alma se estampa no rosto, e ninguém quer se deparar com uma alma, esse buraco negro e misterioso. Deixo o terreno de guerra para os verdadeiros soldados, os que não temem a morte ou as feridas da batalha [filho da mãe, tirou metade do meu sangue].
Então vivo nesse inferno e o mereço. Nas minhas mediocridade e cegueira, também não enxergo almas ‒ medo de assombrações, talvez. Entristeço-me com a estética, a proximidade da perfeição carnal me ilude, distorce a percepção [pega o flanco, ele vai fugir]. Há uma crença arraigada em mim, a de que ao externo impecável corresponde o sentimento interno de pura satisfação. A de que é possível consumir a beleza e de que ela é verdadeiro alimento [morri]. Sou como um cão faminto em meio à mais absurda abundância. Babando, sim, como um cão. Não como um lobo, que atacaria, devoraria, lutaria por sua sobrevivência, mas como um cachorro, domesticado pela educação puritana do mundo. Hás de convir que isto não é agradável [mas nasci perto, espera].
Às vezes, meu amigo ‒ a ti posso dizê-lo ‒, sinto essa saudade sem nome, que nem a palavra saudade é capaz de expressar. Porque o sentir, em si, é tão mais amplo. Incomensurável. Vaga de tristeza, não é falta de alguém, mas de uma sensação peculiar, captada, alhures, por um eu criança, ou por um eu apaixonado [matasse ele?]. É ausência daquilo, da expansão inexplicável de mim mesmo, que me deixou na boca um gosto doce, não mais degustado. Sinto tanto por não estar mais aqui dentro, energia pura e imaculada, ainda que tudo no mundo seja o oposto, impureza, caos e violência [é, vamos sair daqui]. O sagrado, sim, o sagrado impronunciável, como o é o nome de Deus: santificado seja.
Não, amigo, não falo de religião [preciso de armas mais poderosas]. Que entendem os homens de religião? Falo do que nem sei e tento explicitá-lo com palavras, mas é possível? Não sei. Tento [já usasse essa metralhadora de combate?]. Porque se não tentar, sufoco. Há uma estopa molhada no meu peito e algo que se move entre os olhos ‒ parecem lágrimas, mas é choro. Choro da alma, silencioso, sem a matéria líquida e salgada que expulsaria toda tristeza [comprei, tô armado e perigoso]. Não me insultes, não pode um homem às vezes dizer o que sente? Também não é isso, não quero um corpo feminino ao meu lado, entenda. Quero a alma do feminino, quero a mulher. Não aquela, não esta, mas a que seria capaz de executar um mergulho comigo, a que destruiria os muros dessa distância que eu criei [tenho granadas].
É verdade, isso me ataca quando as vejo, as belas, com sua insustentável beleza. Com seus gestos tão inocentes de mexer nos cabelos, de sorrir espontâneas, de dançar em deleite [tem um grupo ali]. Ah, como meu coração se aperta então, esmagado pela magia do mundo! [perto do parque]. Expulso, sou dor no exílio, incapaz de dar um passo, submisso, total escravo das formas. E repito: não é a forma que busco. Se eu pudesse, como tu fazes, graças a teu queixo quadrado de macho alpha, me lambuzar nesses corpos com tamanha destreza – e tantas e tantas vezes ‒, certamente já teria me colocado de lado, na certeza da irrelevância, a forma ter-se-ia extinguido em mim, veste surrada, ilusão desfeita, mas não: é pela forma que desconfio da presença. Por trás dela adivinho o caminho de retorno, aquele estado de graça pelo qual tanto anseio [hahaha, explodi todo mundo].
Elas me enganam o tempo todo, as mulheres. Não que sejam culpadas de culpa a se apontar com o dedo. É o feminino que se sumiu de mim, homem racional, projeto de rispidez e brutalidade [vão revidar, cadê tu?]. É o não-ser que me atrai e que, absurdamente, também me rejeita. Ah, como é difícil a rejeição da beleza quando se crê que só nas suas entrelinhas [um tá no metrô], nos bastidores de curvas tão perfeitas [acho que o outro na esquina], se encontra a Verdade. É como se Deus te renegasse um canto onde repousar, um oásis de alegria. Deportado do Reino, tento retornar, mas me batem a porta na cara, temem a poesia a remover-se, como larva vulcânica, nesse trôpego suspeito [é guerra!]. Na superfície dos machos, queixos e ombros como os teus, no alto dos teus oitenta metros, o sorriso maroto, incitação natural ao sexo, é que apostam. E é bom para você, meu amigo, tire proveito. Mas entenda, eu sou o avesso, sabes o que é se sentir o avesso? [atira daí mesmo].
E quando, além de ser avesso, julgas que ser assim é divino, imaginas a dor? [vou no banheiro, segura a onda aí]. Quando se vive em poesia, imaginas o que é ser apartado, escanteado, tratado como bicho esquisito, animal de zoológico, que se observa, curioso, do outro lado das grades? Não sabes, nunca soubeste. E que assim seja. Bom para ti. Sei que sofres por coisas que eu não sofro. Cada qual com suas misérias. Ninguém, nesse mundo, escapa do seu cálice de abandono. Sim, era esta a palavra que buscava. Estou no meio de todos, de muitos, abandonado, exposto como um inseto que se pode esmagar – frágil fingindo firmeza, cumprindo meu papel de homem.
Não, não aguento mais [voltei]. Ou melhor, aguento sim, eis o pior. Ver que é possível suportar, está aí a via crucis. Porque se não suportasse, morria e pronto [matasse alguém?]. Mas não morro, minha covardia tem essa coragem em si embutida. Eu suporto a cisão do mundo que me pôs desse lado, na margem dos que observam, já que não lhes pertence o gozo querido [foge, foge!]. Sei que não compreendes tudo que falo, teu sucesso no ambiente cega a visão, torna invisível o que é eternamente não-visto. Botar-se na pele do outro é sempre o mais impossível [se eu fosse tu, saía daí]. Mas se pudesses ver essa angústia como um corpo concreto, me dirias, como amigo, “tudo bem, te deixo no teu canto” [então fica, mas o cerco tá montado]. Porque os amigos são aqueles que não querem ver o outro sofrer. Se te faz feliz esta exuberante dança de brilhos, desejo-te que nela estejas. Mas como a mim só me provoca desamparo, deixa que me recolha ‒ e que me esconda [tu vai se foder aí atrás, estão te vendo].
Houve um tempo tão simples, meu irmão. Em que não havia pena. Eu era um com tudo. Depois veio o resto que hoje se esfacela: veio o amor, a decepção, as mágoas, o amadurecimento, enfim, tanto que não consigo dizer [boa, vou tentar matar os outros]. Veio o adulto do qual quero agora me livrar, porque o adulto ainda é um conceito que me aprisiona [errei]. Porque o adulto é essa construção social que precisa agir como o desprezível ser humano normal [porra, matasse o outro, pega o terceiro]. E por isso ir a festas, embriagar-se, sair em busca de mentiras. Preso num papel [errei de novo, ele tá bem perto, cuidado!]. Não dá mais. Minha liberdade é essa nostálgica escrita, meu refúgio. O mundo brilha bastante, mas qual o valor real desta joia dourada? Na escuridão de mim [do outro lado, porra!], canto a linguagem, uso-a para me instilar nas veias o antídoto da inominável doença. Injeto no sangue o único remédio contra a rejeição dos outros [morresse?].
Não espero que compreendas.
‒ Morri.
‒ Vamo pra onde hoje? Ouvi falar de uma festa que é o pipoco! Só gata!