1.
Se alguém, na idade em que se encontra, desconhece a arte de amar, não vá ao médico. O médico fará incidir sobre o seu corpo solteiro e despido da cintura para cima o olhar de quem não ama os poetas, mas a seu tempo os leu, para verificar a universalidade de sensações e eventos fisiológicos. O médico não despreza o diagnóstico da poesia para males sem nome ou gestação. Vir-lhe-á à lembrança o dístico
A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim.,
a perturbadora ilusão de contacto que os elementos naturais e alguns objectos concedem às pessoas solitárias. O médico perguntar-te-á se alguma vez sais de casa, se sais à noite, e tu dirás: Caminho com o vento no rosto. Essa impressão de toque é essencial, gentil e áspera, um equilíbrio natural de impulsos que sossega, que comove até.
E, enquanto escuta o lasso tumulto do teu coração, o médico pensará que tem diante de si uma pessoa solitária. Que és culpada da tua solidão – de outro modo não te queixarias dela. Terá piedade de ti e recomendar-te-á que optes pelo duche rápido no polibã, por oposição ao erótico e meditativo banho de imersão.
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Se for irreprimível o desejo de contacto, fuma um cigarro ou procura um salão de beleza, um cabeleireiro de bairro onde te lavem a cabeça. As massagens no couro cabeludo são um excelente bálsamo contra a angústia e contra a solidão. São geralmente hábeis as moças que lavam cabelos, quando afinal apenas queremos que nos toquem habilmente, que a velha e ferrugenta fechadura em nós se abra com um único som estremunhado (essa rotação tão íntima, perguntaria o médico, é difícil ao teu corpo reconhecê-la?).
É-se muitas vezes surpreendida pelas mãos másculas da moça que nos lava os cabelos. Confiamos nos gestos lisos e impessoais. Entregamo-nos com alegria e desdém, como não nos entregaríamos a nenhum amante. E, como depois do amor, fechamos os olhos e caímos na antecâmara do sono. O mundo é um lento céu sem nuvens, gira como um carrossel vazio, máquina nova e por estrear, com as suas formas muito argutas e recortadas que se oferecem ao nosso desejo; um carrossel vazio e contemplado sem ciúme ou cobiça, porque existe para nós apenas e ninguém o montará, aos seus cavalos e cisnes. Para nós existe o seu aprumo, o seu fulgor. Por nós roda eternamente e vaza a pachorrenta melodia. E o nosso desejo, liberto de avidez, não é dor, não sofre humilhação.
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Penso no desejo como um homem incapacitado contemplando os girassóis. Penso no desejo como um homem prostrado na sua cadeira de rodas – um animal mitológico contemplando os girassóis. Um homem que se compromete solitariamente, por capricho, ao comprar os girassóis e, numa banca de artesanato mesmo ali ao lado, um anel muito simples, nem sequer de prata. Esse anel impende melancolicamente sobre todos os seus gestos. É a prova de um matrimónio de que o tempo e o hábito se encarregaram das cerimónias, mas lhe não trouxeram o par.
The other fervor leaves us
at risk, in love, and alone.
Married sometimes forever.
O homem sozinho e aleijado lê poesia, nisso consiste parte do hábito e da intimidade. Anoitece no vidro da janela do comboio. Os lábios próximos do vidro, a respiração acre de muitas horas sem comer ou beber – um homem sozinho esquece-se de comer, parece-lhe indigno comer, e fá-lo apenas em casa, apenas quando necessário.
Lá fora, nos campos por onde o caminho-de-ferro abre passagem, ele vê as chaminés das fábricas e as bocas de rega, os ribeiros, as pontes, os cabos de alta tensão. A própria cadeira de rodas, de onde se ergue já sozinho para sentar-se no lugar de passageiro que lhe está reservado, e que dobra para não atravancar o corredor de passagem – há em tudo uma inegável simetria. O homem nada pode contra a existência solidária das coisas. Nada pode contra a plenitude de uma peça que se encaixa noutra peça, nada pode contra a arquitectura, contra a engenharia, contra as asas das borboletas, contra o próprio rosto dos homens e dos animais. Contra as preferências do mundo, este homem sabe que tem de render-se.
Lá fora a noite caiu bruscamente – é Inverno – e assim, com os óculos de ler – porque tenta ler durante as viagens de comboio, mas acaba sempre por distrair-se a olhar pela janela – e os girassóis abraçados ao peito, parece outra pessoa. Sobressalta-se – estão há tantas horas com os rostos juntos e calados que o homem sente que começa a desejá-lo, a esse outro que o olha a partir do vidro.
O desejo e a menor arte são filhos do homem incapacitado que contempla os girassóis, e o flanco da mulher nasce quando o homem abre a mão e reconhece nela o golpe que ergue o antúrio. Ah, o desejo é uma colagem: cuspinhar anjos em papel pardo, enfiar mãos nos bolsos, apalpar discretamente o forro dos vestidos, analogia vã da seda dos gatos que amámos na infância e dos quais aos rapazes, às actrizes que sorriem nas revistas, rasgamos os olhos pela semelhança, a macilenta dor que investigamos sem que se descubra a imperfeição da causa.
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Falava então da grande vantagem de usar os cabelos longos. Se te sentes só e carente deixa que te cresçam os cabelos, para que te comovam os movimentos de avanço e recuo da moça que tos lava. Se estiveres de bom humor, encontrarás nestes movimentos o consolo de um equívoco jogo de sedução.
Deixa derramarem-se nas mãos da rapariga os teus longos cabelos molhados. Ela apartar-te-á da boca os fios soltos, unindo-os num feixe como se se preparasse para o galope. Os teus lábios começarão a pulsar. Alguém respira perto de ti. Tu inspiras o ar que ela sobre ti expira e prendes nos pulmões o monóxido desse estranho beijo, devolves-lho para recebê-lo mais quente, ardente, saturado, até ao desmaio. Procurarás ocultar da rapariga o desejo que afinal não sentes (a verdade é que estás só um pouco carente), mas ela pousa a sombra da sua atenção sobre a tua garganta arqueada com a silenciosa persistência de uma Hallelujah.
Ainda que a moça que te lava o cabelo nos fundos de um salão de bairro demonstre a ordinária compaixão das moças que lavam cabelos e dos médicos, ainda que tagarele um pouco, em todo o caso mais alegremente que o médico, ela vai deixar-te comovida, confusa, rubra de um pudor inesperado. Partirás convicta de que um prazer novo e ilícito teve ali lugar, como o de duas meninas que brincam juntas no pomar e provam as primeiras carícias. Sobretudo se és mulher de rosto limpo ou rapaz que sonha com o amor cortês, se não sabes o que é o amor e há muito que andas à procura dele, é também possível que partas mais confusa e desesperada do que quando entraste.
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Regressas a casa a pé. Caminhar imprime o justo ritmo aos pensamentos. Enquanto caminhas rememoras a ocasião mais pura e já petrificada da tua existência. Consegues senti-la ainda como uma promessa, como uma aventura. Essa ocasião é o amor, e ainda não aconteceu.
Chegas ao apartamento quando a noite já caiu, não porque sintas tal prazer ao caminhar que percas a noção das horas – o prazer está-te interdito, o prazer nunca te foi mais do que uma irritação – mas porque é Inverno e o Inverno, como um mover de ancas mais brusco, como um mal calculado lance de sedução, traz a cada dia prematuramente a noite e a tristeza.
Preparas o que comer e em seguida deitas-te na banheira cheia de água quente. Parada, escutas os ruídos cristalinos da água. O teu corpo surge acompanhado pela transparência, pela ondulação, pela presença ampliada e distorcida de si mesmo. Algo na carne serena e livre de perigo que é a tua faz pensar em mutilações antigas, em cicatrizes brancas. A ideia é disparatada ou mesmo obscena, pensas. Vives num tempo sensato, numa cidade segura, rodeada de todos os confortos, e o perigo é para ti uma história tão distante e inofensiva quanto as histórias de ciganos e de monstros que te contavam na infância os teus pais, para te obrigarem a comer. Nunca correste perigo. Não combateste nem desertaste da frente da batalha, nem tão simplesmente, como se o ar, a casa, a mesa e a cama se tivessem tornado insalubres, desapareceste um dia sem deixar rasto. Mas o teu próprio corpo nu e vencido é avistamento tão raro que não podes impedir-te de contemplá-lo. Vives numa cidade pacata, mas é como se o teu corpo regressasse ferido de uma batalha e fosse, como víscera ou borra de café, um oráculo. Quando as feridas cicatrizarem, pensas, quando os cotos sararem e a pele nova tapar a carne como se a emudecesse serás um animal submerso, trazendo aos homens e às mulheres notícias quietas do fundo do mar, já não capazes de esclarecê-los mas de infundir-lhes, pelo medo, outra espécie de prazer.
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Apercebes-te de que é a encenação do teu corpo perante si mesmo que te leva a ver as feridas, a sofrê-las e a aceitar sem contradição a longevidade que para ele se adivinha.
Não é por isso urgente que descubras o objecto do teu amor. Não terás por certo, desde que os alvores da adolescência tomaram de assalto as tuas coxas, feito mais do que procurá-lo. Julgas tê-lo experimentado sob diversas formas. Mas o amor é dissipação. Se pudesses guardá-lo tempo suficiente para dele fazer prova, não encontrarias prova de coisa alguma. A menos que estendas à janela do teu quarto um lençol tingido de sangue ou de esperma, ninguém fará registo do teu amor. Porque do amor, como de qualquer negócio, há que tirar lucro; mesmo um desgosto ou uma traição, sob certa perspectiva, significam lucro. Menos do que isso nem serve o florescente exercício da confissão entre amigos às primeiras horas da madrugada.
2.
Acreditei que rejeitá-lo me faria digna do amor. Acreditava que o amor fosse o vento açoitando o tronco da nossa natureza. Acreditava em Deus – Deus é uma grande tentação para os solitários. Mas que não procure um padre quem procura amar. O padre dir-te-á: “Hás-de amar. É teu dever amar”. E tu não o compreenderás de imediato. Tais palavras não servirão de consolo à tua incapacidade de amar – essa incapacidade tem uma precisão cortante, definitiva, e um sentido inequívoco, o da solidão, de que se regozija o padre, mas não tu.
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Depois, caminhando pelas zonas altas da cidade, procurando as melhores vistas sobre o rio, espantei-me que não tivessem ainda derrubado os bairros insalubres da encosta para construir condomínios de luxo – quem vivesse dormiria de olhos limpos pelo rio e de costas para a pobreza da cidade. É por causa dos aluimentos, pensei. Chove muito e o terreno é instável. No Inverno há sempre notícias de derrocadas e de gente soterrada. Pensei que o amor não seria a criação de um espaço mas o afundamento do que existe já. Que o amor é um acidente, a terra dobrada, a supressão do lugar.
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“Prosterna-te”, dizia o padre, “esse é já um estilo de amar. E tu hás-de amar. É teu dever amar”. E eu pedi a Deus que me mostrasse o amor frugal ao próximo, o amor do filho pela casa, do cordeiro pela lâmina. Mas pensava no conhecimento cruel que cada amigo tem do seu amigo. Pensava nos dedos ásperos e deformados do meu amante, nas varizes da minha mãe, no suor enegrecido pela fuligem das fábricas nas camisas do meu pai. Pensava nos operários de todo o mundo regressando a casa de camioneta ao fim do dia. Pensava no hálito forte deste homem, na verruga no rosto daquela mulher, na fácil e traiçoeira compaixão que se sente às vezes por um desconhecido.
Tinha dito o padre que o amor é um imperativo. Não uma aptidão, uma faculdade. Nem sequer mencionara a hipótese de uma humilde aprendizagem.
O padre tinha razão. Com o tempo também eu deixei de acreditar no amor que, como uma gramática, se decora, obediente e sereno. Deixei de acreditar na espera e no gosto adquirido. Soube que o amor viria como veio, sem qualquer cedência da minha parte, sem paciência, ou então não viria.