Respostas: Miller a Bukowski e Bukowski a Miller

Tradução de João Coles
[Ler a primeira carta de Charles Bukowski a Henry Miller]


[Miller a Bukowski]
22 de Agosto de 1965

Caro amigo,

A única razão pela qual não lhe digo que venha de imediato cá a casa é porque ontem, depois de quase dois anos a protelar o meu próprio trabalho em benefício de outros, decidi que eu estou em primeiro lugar. E assim voltei ao trabalho, a uma peça de acto único já meio acabada – outra peça burlesca! - e não pretendo encontrar-me com ninguém até a levar a bom termo.

O tal amigo que me enviou os (3) exemplares adicionais do seu livro (o qual agora posso fazer chegar a amigos) deve ser o Bob Fink. Se ele ainda não lhe pagou, avise-me. Eu tencionava pagar, como fiz com os três primeiros, mas ele disse-me ao telefone: “já está tudo tratado!” Se ele ainda não pagou o preço total, pretendo acrescentar o remanescente. O livro vale o dobro daquilo que as editoras estão a pedir. Eu disse ao Lyle Stuart que se assegurasse de o pôr à venda na Pickwick's e na Martindale's – aparentemente não pensou nelas. Também lhe pedi mais formulários de encomenda para que os possa enviar a amigos.

Basta disto! Estou tão contente que tenha descoberto Céline. O seu primeiro livro (Viagem [ao fim da noite]) foi publicado quase na mesma altura que o [Trópico de] Câncer. Vivi mesmo ao lado da clínica dele em Clichy, mas era demasiado tímido para o procurar. O segundo livro (Morte a crédito) também é grandioso. Não deixe de o ler. Creio que saiu em edição de bolso (pela New Directions).

Espero que não esteja com as suas bebedeiras de caixão à cova! E sobretudo não enquanto estiver a escrever. É o caminho certo para matar a fonte de inspiração. Beba apenas quando estiver feliz, caso possa. Nunca para afogar as mágoas. E nunca beba sozinho! Perdoe-me por dizer estas coisas – mas porquê dar cabo da sua vida? Existe um ponto de vista, uma atitude perante a vida além daquela de Céline, acredite em mim. Ele acabou tornando-se num homem amargurado – acontece, porém, que ele era uma alma angelical genuína.

Alguma vez tentou escrever prosa? Um dos meus poetas em prosa favoritos é Jean Giono. Alguma vez leu o seu Blue Boy? Creio que significaria alguma coisa para si. Palavra de honra.

Tenho de me deter agora. Desejo-lhe tudo do melhor. Se puder servir de ajuda, diga-me alguma coisa.

Salut!
Henry Miller
 

P.S. Esqueci-me de lhe agradecer pelos desenhos. Eu persevero na pintura sem saber como desenhar. Na escola sempre fui corrido das aulas de arte. É tudo tanta bosta de cavalo feliz, não é?


[Bukowski a Miller]
Finais de Agosto de 1965

não, não sou do género de fazer visitas, e espero que não pense que pretendo impelir-me contra si. estava bêbedo quando escrevi a carta, se é que serve de desculpa. quanto às bebedeiras, se me atolam ou desenroscam a cabeça da minha criatividade, tanto pior então. preciso de algo mais para viver minuto a minuto do que para ser alguma espécie de artista criativo. o que quero dizer com isto é que preciso de alguma coisa que me dê ânimo, senão entorpeço, sou um cobarde, não quero atravessar as soleiras das portas.

livros [Crucifix] pagos, e mesmo a tempo (para mim). tive de fazer uma revisão completa aos travões do meu velho Plymouth. tenho conduzido sem travões. a mulher berrou quando viu o preço. ela acha que sou um idiota. eu sou um idiota. lá vai ela mijar e deixa a porta aberta e olho para as suas grandes pernas, mortas e inanimadas. a seguir liga o rádio. o rádio está sempre ligado. eu cirando pela casa com tampões para os ouvidos na minha cabeça perguntado-me se devia ir à rua comprar uma garrafa de vinho. tal como todos: conta do gás por pagar, conta do telefone por pagar, falésias a cair em cima da minha cabeça... não, não, raramente trabalho com prosa, principalmente porque a rejeição me mataria. toda essa energia desperdiçada. não tenho coragem para escrever um romance por medo de investir metade da minha vida nele para depois acabar sem pernas dentro de uma gaveta. houve uma vez que disse numa revista que aceitaria escrever um romance por um adiantamento de $500, em qualquer momento, em qualquer lugar. não surgiu qualquer comprador, nem surgirá. se lhe pareço ávido por dinheiro, não acredite nisso. é uma questão de energia – de vazamento. eu posso brincar com poemas sem me magoar muito e conseguir na mesma ser rei do meu próprio castelo, se é que me entende. a fedelha está agora a agarrar-se a mim – tem 11 meses e já quer dactilografar. há-de ter a oportunidade, a cabra.

vou tentar deitar a mão ao [Jean] Giono, ou pedir à mulher que trate disso. no entanto, não consigo imaginar alguém a ombrear com Céline. este homem tinha a cabeça cheia de parafusos dourados. merda, ai merda, doem-me os braços e o peito! parto amanhã para Del Mar, de comboio. estas mulheres mantêm-me sob rédea curta nestes 2 quartos minúsculos e preciso de me fazer ao largo por um momento: o céu, a estrada, o cu de um cavalo, árvores mortas, o mar, pernas novas errantes – qualquer coisa, qualquer coisa... os desenhos que lhe mandei são atrozes. uma péssima partida. estou a trabalhar num livro de desenhos que me pediram e estes 2 pu-los de parte. o editor quer muitos desenhos e uns quantos poemas – o que torna a coisa agradável: um pouco de tinta-da-china e muita cerveja e estou nessa.

Tutano; Alucinação; Aurora; Quando quase...

Tutano

hoje
tudo parece claro:
a casa que me legaste, 
de alicerces
pouco profundos
e paredes frágeis,
não podia ser reparada.
do cálcio dos meus ossos
-em vão-
então
preparei a argamassa
que não se deixava fixar
aos tijolos:
escorria pela sarjeta
em direção ao oceano,
moldando peixes de pedra.
da tua face
igualmente
quase nada restou.
as poucas fotografias que eu trazia
lentamente foram se
apagando
roídas pelas traças
e pelo tempo.
do tutano
-então-
em vão
extraí a goma
com a qual ambicionei repará-las,
ignorando o fato
de se esfarelarem
ao toque.
tive de me contentar
então,
desde sempre,
com tentar conter
teu pó 
entre meus dedos
-em vão.    

 

 

Alucinação

Antes
Houve um céu azul.
Hoje,
Sobre nossas cabeças,
Só uma massa
                  Sonolenta e cinza.
Que se torna negra
À medida que encontra as águas
                               Adormecidas.
Por onde navagueiam
Sonâmbulas vitórias-régias
De sacolas de supermercado
E jacarés
De dentes enferrujados.

Por cima delas salta um índio
                                        Nu.
Tensionando seu arco,
Persegue um animal impossível.
Alucinado,
Em meio à selva
De malocas de compensado e zinco.

Aurora

Eu
sou a puta,
a travesti,
sou o michê
numa esquina mal iluminada,
perdida na noite dos tempos
[perfume barato, calçados gastos, esperando].

De dia
sou o menino
pra quem os vidros dos carros se fecham
[barriga roncando, dente cariado, esperando].

Aquela que quebra o silêncio da madrugada
ao ser golpeada pelo marido
[olho roxo, roupas rasgadas, esperando].

Sangramos
um riacho de águas turvas
que contamina o solo e que leva até o céu.

A terra é vermelha nos dias de chuva,
e a Aurora [com seus dedos de rosa] espeta as nuvens, 
esperando livrar-se do abscesso. 

 

 

Quando quase
tudo já nos foi tirado
inclusive o alento de poder enlouquecer,
e a limpidez da consciência transforma
o corpo numa condenação –
as têmporas ardem
acinzentando o cabelo
com chumbo
incandescente
da cabeça
– como que decapitada –
toda misericórdia
converte-se em desperdício, e
apenas uma cândida coragem ainda
sustenta os punhos em riste – 
porque a loucura
tomou as ruas,
e o que numa
primeira visão
pôde parecer um festim
era o riso de desespero das
hordas a devastar
suas próprias
cidades. 

húbris

“The basic human need to be watched
was once satisfied by god
[...]
The autopsy report read: 
the insides were beautiful”
(In: “Ison”, Sevdaliza, 2017)


e se há uma tradução errada no mínimo na ponta de cada dedo
na quase involuntariedade de um dom de línguas
no ler ou empunhar tais dizeres certos sentidos aproximados
katana adaga machete ou leitura de palmas
imagina por exemplo as eficácias necessárias ou diferentes
pra abrir caixas de presentes e pra abrir caixas torácicas
na tradução escolhida vai já um punhado de territórios desunificados
um utensílio que provesse todos esses chamamentos
e sem problemas um coração partido em dois
por exemplo
a um legista podia talvez ser algo e poder-se-ia dizer 

olha aqui se pra um não interessa tem cá pra outro esse significado
há agora empíricas uma parte pra cada lado

que grande talher não é mesmo mas que grandiosidade pode ter
o talher que parte as coisas em pedaços de bocado do tipo
um pra mim outro pra mim ou um pra você outro pra você

que grande talher não é mesmo
uma língua que provesse ela mesma e todos os nomes de lâmina

fusão viva das coisas mortas

e se ficamos sós nas sentenças aproximadas
empilhando possibilidades de não saber do que se fala
esperando estar certa ou errada aquela ou tipo essa
quando o ultimo leitor morrer deus deixará de existir ou de armar-nos
mas não rasgamos nem perímetros como mais essa imagem
aqui sem eficácia daquele cometa que pensou ser ícaro
mas nem deixamos em paz a espada
nem sabemos se procuramos o mal ou o bem estar
nos dias ou nos séculos e não há problema nisso
e se há uma pauta pós metonímica
o esventramento a sua mão essa fala
pela qual me percorro e nos conheço adentro

"da última vez que mariana olhou para cima..."


da última vez que mariana olhou para cima
havia  o céu
e luz solar
e algumas nuvens pairando iludindo
que o céu movia
quando eram elas que moviam
nas maiores partes do dia mariana olhava para cima e havia teto
e algumas vezes havia Heródoto ou caio mas também eliza
e osíris se anunciando numa cor de pulcra
ou burgandy e o sorriso de mariana virava
outras vezes que olhava para o céu havia apenas a ilusão e a vontade de que o tempo corra
em outras chuva
em algumas nuvens o novo sorriso de juliana reconquistado
e quando mariana coçava o umbigo e gemia
havia um feixe da internacional
ou talvez uma prismática acumulação de agua condensada
espraiando em arco a bandeira da diversidade sexual
muitas vezes olhava para o céu
mas o teto bloqueava
e muitas vezes o teto era o céu
ou uma redoma
teto branco transparente ou parreiras de uva
ou guirlandas sob as quais era bom os lábios
de alguém nos lábios e a mão na nuca
e outras eram pontas de figueiras
que os olhos de mariana viam
com luz azulada desfocada do próprio céu
própria atmosfera em que se é
quando olhava para cima e havia alguém
como Heródoto
sim era sempre Heródoto
que queria
pois havia o suor e o gemido
e a alegria
e a pequena morte

Imagens Roubadas: texto de apresentação do autor

Spontaneous Combustion de Tobe Hooper

Spontaneous Combustion de Tobe Hooper

                                                              THE BIG SLEEP

1.  A propósito do culto dos mortos, fala-se muito da intenção dos vivos de se apropriarem  deles, de os conservarem – e se, por esse mórbido cerimonial, se tratasse sobretudo da vontade dos mortos de encontar um caminho, via, para o seu regresso?

2.   É conhecida a resistência da Igreja em aceitar a incineração dos corpos, uma relutância que parece ter a ver com a necessidade física do corpo para a ressurreição final.
     Contudo, para Tertuliano (Da alma) – para quem, bem platonicamente, Deus “tudo criou pelas imagens” -, a “alma”, pelo “son(h)o” – altura em que ela, descontente com essa impressão da finitude, se liberta, solta do corpo -, poderia ter a experiência de um simulacro da morte” capaz de a preparar para essa “ausência” a vir, futura. “De facto, a alma suporta o sono de tal forma que parece movimentar-se noutro lugar, preparando-se para a sua ausência futura por meio de um fingimento da sua presença”, escreve.
      Deste modo, ao acordar, o indivíduo, reencontrando o seu corpo, conheceria uma “confirmação da resssurreição dos mortos”. 
     Tudo se passaria, afinal, como num son(h)o. Entre diferentes regimes de “imagens”.

3.  Tal como no cinema – David Lynch sugeriu-o em Mulholand Drive – que pode ser encarado como o son(h)o (alucinação) de um morto.
      A necessidade da preservação dos corpos, com efeito, é uma questão que não se coloca no cinema que não deixa atrás de si cadáveres e a tudo permite uma 2ª vinda por meio de corpos de luz (e sombra) que transportam consigo o seu próprio (ir)real.
      Em boa verdade, no cinema, o sonho (que não precisa necessariamente de imagens)  nunca se interrompe e acordamos, já reconfiguados e refeitos, em pleno paraíso. Como diz Mallarmé da literatura (ou poesia), também o cinema nos dá não a “flor” mas a ausente (a melhor, mais perfeita) do “ramo” (bouquet).
      O cinema portanto entendido como uma câmera de incineração.
       De transmutação em imagens – tudo matéria leve e aérea, construções (amálgama) e precipitações de fluxos (ondas de energia) em torno de átomos=esporos de matéria animada (vida) que circulam e pulsam no espaço.
       Forma profana e pagã, no cinema os corpos ardem, autorizando-nos a experiência  concreto-abstracta e abstracto-concreta de uma epifania do mundo.

                                                                                              (Linha de Sombra,

                                                                                           19 de janeiro de 2018)