Tadeusz Rożewicz, Remover um peso

Tradução de Anna Kuśmierczyk e João Ferrão


Veio ter convosco
e disse

vocês não são responsáveis
nem pelo mundo nem pelo fim do mundo
tirou-vos um peso dos ombros
vocês são como pássaros e crianças
brinquem

e eles brincam

esquecem-se
que a poesia contemporânea
é uma luta por respirar

1959

Eduardo Quina, Ausência (recensão)

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Em ausência [pequena liturgia de um regresso] (Eufeme, 2017), Eduardo Quina experimenta uma poética do desconsolo, indicado pelo título e confirmado por uma semântica da dor, do disforme, do abandono, da solidão, do desamor, da desesperança.... Estranho, quando sabemos que há muito se estabeleceu uma corrente isomórfica entre o êxtase poético e o êxtase religioso (entre nós, por exemplo Tolentino de Mendonça ou João Moita). Mas Eduardo Quina quis inverter Novalis, em vez da criação poética ajudar à criação do Universo, vemo-la mais como um apontador, e amplificador, da imperfeição e do desespero. Os recortes que imprime no tecido do mundo abrem para lugares sombrios. A transcendência, mistura de deuses pagãos e bíblicos, não funciona como um refúgio de compaixão, é antes um catalisador do mal. Esta interpretação ousa o que talvez não devesse, como diz Pessoa “Os Deuses são a encarnação do que nunca poderemos ser.” (Livro do Desassossego). Ou seja, a Alteridade jamais compreendida. De qualquer forma, Eduardo Quina compôs a sua língua e com ela fabricou um universo (não o Universo de há pouco), mais perto de Francis Bacon do que de Gustav Klimt, de Nietzsche do que de Kant, de Joseph Conrad do que de Gabriel Garcia Marquez, de Beethoven do que de Mozart. Um universo sem paz nem alegria, mas um universo. E isto é capaz de conjurar muita coisa.

O primeiro poema do livro, “[nota]”, mostra um trilho que podemos seguir para nos aproximarmos do pensamento, mais vasto do que o do autor, que lhe deu origem. Aí se evoca, numa tonalidade trágica, Orpheu, a penúria, a impunidade dos deuses, trazidos à luz pela palavra poética, que não passa de “estilhaços repercutidos e insignificante”. Uma evocação que revela o pano de fundo do livro: “memória e ausência.” Serão estes termos – teológicos e históricos – a compor a possibilidade do recomeço, com gestos tensos, elementos de um corpo que aguçou os sentidos do sofrimento, por isso as palavras, como diz em “[Re]começar”], só podem explodir-nos nas mãos e silenciar-se na voz.

Eduardo Quina desafia o vórtice do tempo com “relâmpagos poderosíssimos / para que se erga a luz sobre as imagens”, mas, como julgamos acontecer aos humanos que juntam arte e eternidade, compõe pequenas ramificações poéticas que parecem rijas, embora acabem por não pesar na política do Cosmos. Por isso, não deve haver “remorsos ou falsos consolos”, a escuridão combate a luz, e parece ganhar-lhe. E quando isso não acontece, a resplandecente e magnânima luz divina tem somente a força caprichosa do seu ensimesmamento: “a vida é apenas um conjunto de subtracções / e parece que os deuses nos sabem magoar / como são belos os deuses desprovidos de misericórdia.” (“3.”). Os deuses transportam “morte e ilusão”, até porque vivem numa “arbitrariedade compulsiva”, mesmo quando imaginamos essa compulsão feita de amor.

Se isto poderia heroicizar o homem, como pensava Nietzsche? Não. A nossa incompetência, com as palavras e com a vida, revela-se irredutível quando lemos Ausência. Não sabemos dizer as coisas demiurgicamente e deixamos morrer a amada duas vezes. Resta ao poeta ir de “alucinação em alucinação”, embora aqui, como não podia quase deixar de ser, Eduardo Quina abra uma frincha por onde entra claridade, permitindo-lhe, quando abandonar o ofício e se proteger com a armadura de uma espécie de amor fati, ainda “escrever humildemente / longe do mundo”.

Isto dá-se sensivelmente no meio do livro, a partir de onde parece ser possível construir “os vícios, etapa a etapa”, mesmo no impasse de “um estático clarão” ou na inclinação para o mal que provoca uma segunda morte. É assim que lemos no poema “13.” “uma papoila que floresce uma última vez: / abre-se onde já nada se espera / no som definitivo da demência”. Este desvio à lucidez é uma pequena bênção que permitirá outra liberdade do corpo (talvez o marcador semântico mais usado por Eduardo Quina), lembremo-nos de Dioniso. A alteridade é agora partilhada entre a transcendência e a imanência, sem empatias salvíficas, mas vemos aparecer uma nova política dos afectos. Pode olhar-se o futuro, mesmo quando nos “rendemos à ideia de tragédia.” O mito e a metafísica, o labirinto e o Céu, envolvem-nos agora sem nos esmagar, podem dilacerar-nos, mas não esmagar como quem se alegra do som de uma barata pisada numa geometria calculada de sapatos caros. E mesmo terminando, noutra “[nota]”, a revelar-nos que há somente medo, facas, barbárie, delírio, inferno, demência e que “a poesia é uma farsa.”, e talvez seja isso mesmo, Eduardo terminou um livro que alguém lerá embebido pelas forças emotivas da vigília. O autor, mão dos deuses, da alma e do corpo, terminou um livro que viajará pelo mundo, com a sua orografia acidentada e a combater – perdendo? – o tempo da pressa. Escolheu cuidadosamente as palavras, teve essa liberdade (apesar de nos alertar para a pujança do destino), olhou para as folhas em branco e anteviu o olhar do leitor em parágrafos com formas orgânicas. Acusou os deuses ao mesmo tempo que os louvou (a indecisão habita os crentes genuínos). Deformou o corpo. Invocou a morte, não como um fim mas como um meio (a pior das mortes, diz-se). Esboçou uma metapoética, à semelhança dos seus companheiros de ofício (quem resiste a esta tentação?). Olhou para o alto e percebeu que se afundava no sem-sentido ou pisava um campo minado. Mas fez tudo isto em júbilo; sombrio, se quisermos. E este trabalho, que exige uma recepção audaciosa, é a luz negra que prova a nossa filiação prometeica, insistimos e rimos, mesmo quando não conseguimos sair da esquina da primeira circunvalação do labirinto e isso nos deveria entristecer para sempre. Experimente-se, pois, a ausência.

Paisagens relacionais – comentário sobre três poéticas de 2017 (Câmera lenta, Ar livre e “Aproxime-se e me aborde”)

mapas e miradas

Antes da cidade asteca Tenochtitlán ser de fato invadida e saqueada pelo Estado espanhol, ela fora previamente fundada no papel, como Nova Hispania. Em brevíssimo tempo, Hernán Cortez, um escritor muito prático e eficiente, rapidamente anexara o território indígena nos seus documentos de relação, que era obrigado a escrever. Conquistar a “América” começa, então, com o controle simbólico dos referentes do espaço, no papel e tinta, construindo um mapa instantâneo com a pena, visto de cima.  

Mas sempre ficam os restos, os excedentes e “outras muitas coisas que por serem tantas e tais não as sei significar à Vossa Majestade.” Excessos que não cabem nas rápidas transições de poder por documentos anexadores.  

Penso nessas muitas coisas outras, na cidade e nas suas sobras, em termos de paisagem – a partir da qual trocamos toda uma experiência afetiva; a paisagem com seus fluxos materiais e sonoros que nosso corpo, imerso, acopla e respira. E penso em tomar o poema como exercício, prática especulativa de descolonização da ordem estabelecida pelas diretrizes do império – ou do governo, para a atualizar os termos.  

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Nesse exercício, a partir do interstício entre o corpo e o lugar, a cidade começaria na textualidade do poema – que, por sua vez, enuncia a experiência íntima e indissociável daqueles. Lembro-me da anotação-poema sobre dois quadros, ainda a serem elaborados – quadros que também seriam mapas:  

“Looking” is & is not “eating” & also “being eaten” 
That is, there is continuity of some sort among  
the watchman, the space, the objects.1 

É do pintor Jasper Johns, que iniciava alguns de seus quadros com rascunhos em verso, sugerindo, num curto circuito, que a paisagem que sempre tentamos mirar, já nos devora quando conseguimos abocanhá-la em alguma parte. Nunca somos um vigilante pleno, mas participamos do ativamente do entorno. Com uma predisposição descolonizadora, que parta do texto, é que a noção de mapa é construída:  

Beware of the body
& the mind. 
Avoid a polar
situation. 
Think of the
edge of the city & 
the traffic there. 2 

Johns pintara o quadro “Map” sobre um mapa dos EUA, que um amigo seu lhe dera. É elaborado sobre o mapa-tela com diversos erros não controlados, mas que são inerentes ao projeto e ato de pintura, de forma que “não há acidentes”. A técnica artística se dá em tensão com o espaço que lhe escapa, no qual borrar os limites está constantemente em jogo.  

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Nesse desmapeamento poético, os referentes se perdem em movimentos indeterminados, tráfego entre corpo-mente-cidade, como as anotações-poemas de projeto sugerem.  

Lugar do poema este, podemos pensar, que se tece em “ritmo orgânico”, movimentos que vão se borrando num país sem uma cor de origem, cujos Estados se sobrepõem um sobre o outro de forma a se interligarem por suas diferenças (em certa medida, cores em contraste se encontrando). 

Tal como formula, agora, Herberto Helder em Photomaton & Vox: “este intento: o da relação, segundo uma forma básica, entre a intensidade pessoal e a intensidade do mundo.” Assim também num breve conto desse autor, sobre uma escultura que aciona uma “arte relacional” – como os Bichos de Lygia Clark ou Parangolés de Oiticica:  

(as transmutações)  

Escultura: objecto.  

Objectos para a criação de espaço. Espelhos para a criação de imagens. Pessoas para a criação de silêncio.  

Objectos para a criação de espelhos para a criação de pessoas para a criação de espaço para a criação de imagens para a criação de silêncio.  

Objectos para a criação de silêncio.  

Em câmera lenta

A paisagem, o mapa e os deslocamentos de espaço, têm sido temática de intensa reelaboração na poesia brasileira de hoje que, por sua vez, propõe novas olhares e relações afetivas com o entorno. Da forma como vejo, tal perspectiva paisagística é um ponto de partida possível para a leitura do trabalho de alguns poetas contemporâneos – e, portanto, da cisão de um sentido mais tradicional do “poético” da poesia.  

“– o que você está tendo é um problema de realidade” – ele diagnostica quando ela abre os olhos “e tudo fica tremido se fast forward”. Ela chega no mesmo terminal, e semanas depois a cena se repete, num movimento em loop. Do lado de dentro, ela fecha os olhos e a paisagem-mundo passa como um “mapa feito à mão”.  

É a cidade e seus diagnósticos em Marília Garcia, no poema “pelos grandes bulevares”, de Câmera lenta, livro mais recente da autora. Câmera lenta é um cinematógrafo em que entramos, um lugar escuro em que as palavras ecoam sem um corpo definido, mas sempre em movimento. O livro fala sobre imagens em movimento, das suas velocidades, e também sobre a apropriação dessas imagens, nas transições entre o “lado de dentro e o lado de fora”.  

“o cinema é 24 vezes / a verdade por segundo”. Verdade que pode ser desmontada se diminuirmos a velocidade, entrarmos em câmera lenta:  

“este segundo poderia ser 24 vezes a cara dela quando fecha os olhos e vê.”  

O que ela vê? É aí que os poemas começam a atuar no cinema: paisagens em aberto, com seus loops e closes, que o telespectador deve preencher e “usar a um modo”. Como nas cenas de In the mood for love, que prolongam os passos e breves momentos solitário das protagonistas; ou nos fragmentos de corpo que escapam à imagem una da pessoa – também aqui encontramos o lugar entre o dentro e o fora, landscape/inscape. “Para nós, é essa falha – princípio de desfalecimento do sistema construído pelo falso campo-contra-campo ou pelos equívocos efeitos de ‘raccord’ nas cenas do prédio de apartamentos – que estrutura o filme e constitui, a exemplo da pintura de paisagem oriental, o princípio do vazio (o ‘segredo’) que mobiliza o jogo das formas e o seu oscilante acerto de conjunto” – como diz Fernando Guerreiro, sobre o filme citado.  

Os “vazios” da paisagem de que apropriamos, continuam ecoando em pequenas “falhas” das cenas na Câmera lenta.  

Em “tem país na paisagem? (versão compacta)”, tirar fotos do mesmo ponto da cidade remete a um habitar o espaço que sempre escapa; tentativa contínua de uma experiência que almeja captar o que acontece nos momentos presentes, com suas sobras e os excessos. Abarcar o que acontece entre.  

sempre tinha tentado  
pular as etapas da vida  
e apagar o entre.  
como atravessar os meses neste lugar  
e ver o que acontece?  
a fotografia divide o futuro  
e passado – seria possível ver o que  
está no meio?  

Mapas constantemente redesenhados. Essa poética desmonta, em zoom, em câmera lenta, em silêncios, as linhas fronteiriças entre o passado e o futuro – uma “volta ao real” que se constrói em instantes presentes de enunciação, tensionados com a tentativa-e-erro de vozes de outros momentos, agora imprevisíveis. No poema que abre o livro:  

assim,  
esta voz que fala aqui  
é a  
voz de uma marília de um mês atrás  
é a minha voz falando a partir do passado,  
é a minha voz,  
mas sem controle.  

Nesse sentido, Ana Cristina Cesar também abre uma cisão com poema moderno no Brasil. Inaugura – com suas cartas, diários, anotações, projetos de ficções, escrituras à mão dirigidas a si mesma, ao remetente/leitor, a ninguém – um lugar a partir do qual poderíamos pensar a poesia contemporânea, depois da “primeira folha aberta” e da perguta-título: “A poesia pode me esperar?” A leitura, uma questão de tempo de enunciação, pede uma outra relação com o texto e com a escrita.  Em Ana C: 

Não, a poesia não pode esperar.  
O brigue toca as terras geladas do extremo sul.  
Escapo no automóvel aos guinchos.  
Hoje – você sabe disso? Sabe de hoje? Sabe que quando
digo hoje, falo precisamente deste extremo ríspido,  
deste ponto que parece último possível?  

Então, quando penso na literatura que considero experimental (termo um tanto vago), vejo que ela só faz sentido quando, no ato da enunciação, possibilita articular um modo outro de habitar o presente, por sua abertura não totalmente decodificável – mas com outro ritmo e modo de enunciação. Um descontrole da ordem dada, das autorias de “quem diz”. Na paisagem presente de que participamos, é necessário uma abertura da escuta:  

e eu fiquei pensando  
se estaria muito seco nesse dia ou não  
e pensei que talvez a gente pudesse  
fazer silêncio  
e deixar a escuta aberta  
para ouvir.  

Ao Ar Livre

Essa experimentação do itinerário e do literário – experiência das cidades agora como palavra em aberto, carta, rascunho, mapa desenhado – é formulada insistentemente num “teste limite” das relações entre texto, corpo, paisagem e sociedade, ao longo da poesia e prosa de Maurício Salles Vasconcelos.  

Numa escrita em trânsito livre, a descolonização dos símbolos se coloca como um desaprender dos sentidos demarcados: “Encontrei no fim da conversa um chamado de voz por engano, dizendo possuir um precioso pacote de endereços, que eu fosse até o ponto de sua perda”. 

Como em Maggie Nelson – “maniacal bouts of writing, learning to adress no one” – em Ar Livre (2017), recente livro de Maurício (com o qual eu tento um diálogo em celular.quitinete.rua), as formas de habitar o espaço, ao longo desta virada de século (atravessando os anos de 1999 até 2015) são materializadas em inusitadas formulações do que poderíamos entender por liberdade.  

Num “ritmo/rasura”, os “desaprenderes” se dão em pequenas metapoesias que seus versos snorizam. O autor volta à imagem do cão vira-lata para construir espaços intersticiais dentro do sistema global e colonial. Uma atenção a outras formas de vida. Do habitar o presente. Em “Cão (zero)”:  

Atravessa poentes e, sem saber,  
Pontes de uma sombra demarcada,  
De tão ondulado o cão (estará  
Sempre, bem aqui, em companhia  
Dos anos, dentro dos outros,  
No coletivo que o engloba)  

O social mostra-se no texto pelos rastros e restos das megalópoles (populações, praias, apartamentos). Tudo isso ganha materialidade na escrita, atravessada por diversos ecos, acontecimentos fractais, mapas interconectados.  

No “Andar sobre o que resta de praia” o que se capta é  

“(um leve rumor por trás,  

por dentro, talvez o sol,  
talvez o acidente que se azinhavra  

em nome do atlântico, um simples revoltoretorno)  

carioca proliferante piolho universal em mar aberto  
alastrado óleo
onde se antevê a alucinação dos lugares  
sob o menor movimento  

A alucinação dos lugares é uma exigência por outras formas de olhar e sentir o texto e as “populações”, que não devem estar presas ao mundo literário como sistema independente (por isso, em certa medida, seus livros podem incomodar leitores habituados à literatura como gênero essencialmente autorreferencial); mas sim, em dialogismo pleno com manifestações no presente. Uma escrita em abertura que consegue materializar diversos pontos de conexão. E são escritos “metapoéticos” à medida em que deixam mostras de seu procedimento e reformulam modos de fazer poesia.  

Numa escuta ao ar livre – nos acontecimentos geracionais, entre lugares públicos e habitações comuns, homenagem a artistas recentemente mortos, manifestações populares, hippies, budas, taxistas, vozes da telefonia e da rua –, estão os modos específicos do autor construir sua poética. Na forma textual com que vai compondo ao vivo. Em sintonia com o presente, o registro de tradições e pequenos acontecimentos que retornam e se assimilam no ato da leitura, compõem um inesperado mapa interligado da virada de século, ressoando como novas potencialidades poéticas deste tempo. Qual uma feliz letra de rock:  

“Parque temático” 

Queremos estar – logos insone –  
Ser homens feitos, nomear o que
Não se vê – a origem e a  
Correnteza exangue, à solta –  

Dentro de um panorama, ou então,  
Um parque, um cessar-fogo  
A qualquer hora, pelas tantas   fontanas  

Sob o contínuo rumor do fim da vida.  

Aproxime-se e me aborde

Não na dualidade arte-vida, mas numa linguagem que movimente afetos de um real ainda a se construir, ou do regresso a um corpo-memória que deve ser acordado, estamos em consonância com boa parte da poética de Ricardo Domeneck.  

Nos enjambements em a cadela sem Logos (2007), a posição do sujeito lírico torna-se subitamente estranha diante da disposição dos corpos nas cidades. Em monólogos que se confundem com outros sujeitos enunciadores, entre aproximações e distanciamentos com o leitor, sujeito lírico e as personagens referenciadas (todos em um diálogo indeterminado), criam-se deslocamentos de voz, que vão desmembrando as políticas de cor, imigração, gênero, trabalho, em todo o contexto que se articula a prática literária, escrita e oral no âmbito público. A confusão de vozes acarreta um sentido performativo aos poemas, que se escrevem na tensão entre enunciado e enunciação, de forma que o modo, o corpo e o lugar com que se pronuncia um texto estão sempre em jogo.  

a língua não  
é autônoma mas reage  
à saliva à dor de  
cabeça à boca  
alheia no meio  
da sentença  
percebe o  
esgotamento do assunto  
e vira o  
rosto para evitar  
os olhos do  
interlocutor 

Como magistralmente explorado por Tiago Guilherme Pinheiro, em a cadela sem Logos  “não há nada que indique que tal trajeto seja percorrido por um mesmo sujeito, que cada sentença esteja sendo proferida por um único indivíduo.” Desse modo, num deslocamento da voz, simultaneamente se escancaram as formas de vida política na nossa “democracia”, e abrem-se narrativas que nos fazem perceber, em sua enunciação (na participação do leitor) outras formas de sentir o mundo/ler o texto.  

Em analogia, também parece haver um deslocamento de paisagens muito presente na poesia de Domeneck. Em “Composição como contexto”, último texto de a cadela… e espécie de posfácio  sobre o procedimento de escrita do autor (em que confluem influências literárias com acontecimentos em sua vida e contexto histórico), lemos passagens em que reforça-se que o entorno sempre participa no “interior” do sujeito – fato presente desde a imagem do poeta-anfíbio do primeiro livro do autor.  

“Se está chovendo enquanto caminho por uma rua da antiga Berlim Oriental e penso este início, quanto o caminho, a velocidade dos passos e o vento frio no rosto influenciam o ritmo desta oração?”  

“A multiplicidade do contexto não impede o indivíduo, gera-o”  

“Se já não se sabe o quanto o sujeito mistura-se ao objeto, se sou eu a paisagem contemplada, se amanhã ou vinte anos depois, se o limite não é parte do mundo como a fronteira não pertence ao país, como tratar a COISA de forma DIRETA se a direção do objeto é a mesma do sujeito, movendo-se continuamente entre semântica e sintaxe?”  

E, citando John Cage, Domeneck escreve: “Atento ao ambiente como/ o ambiente ignora a/ minha vontade”.  

Com isso, lembro, no giro de uma década (2007-2017), do poema “Aproxime-se e me aborde”, escrito esse ano pelo autor – e faço esta breve (e mui passional) nota sobre esses versos recentes, em que o mundo (sociedade e natureza) começa numa viagem ao corpo. Nas suas dobras, no contato com a pele outra, habitando as fronteiras tênues que separam indivíduos de uma espécie. Há uma força geológica que desloca as pessoas em livre associação – como se não fosse para estarmos aqui, nosso encontro com acidente, nossa espécie, esse breve desvio de uma dança concêntrica a que participamos.  

Lavas, crateras, oceanos, continentes, evoluções – deslocares acordados pelos órgãos, pelas suas fissuras, erupções e fendas que nos fazem sentir – nos fazem expandir – os limites do corpo. Processos de cisão e abertura, pensamentos e continentes que se desdobram conjuntamente. Quando toca a outra pele, essa fronteira em risco de extinção, os estímulos mútuos voltam-se em pleno wishful “changing”. 

Uma volta a um afeto (uma escuta do corpo) que integra sem hierarquia a pessoa e o entorno, paisagem móvel de monções, correntes de ar a entrar com o habitar humano, o ar que bombeia os pulmões e faz trocar material, fluidos, sopros e movimentar palavras entre-nós, em rearranjos de formas de vida, palavras-ações em dinamismo com o globo. 

Nada como culpar o movimento da terra e sua inclinação torta, o deslocar de paisagens, continentes, cidades e acidentes, os thousand natural shocks that flesh is heir to de Shakespeare, entre o ser e não ser – por justamente você não estar aqui. Etc.  

“Aproxime-se e me aborde” 

Até mesmo os continentes afastam-se, 
colidem, formam cordilheiras e oceanos, 
detêm correntes de ar, mobilizam monções, 
separam membros da mesma espécie
que se adaptam, mutações de azar e sorte.   
Por que não seria assim conosco, tão mais
bruscos em nossos joelhos e cotovelos, 
tão mais destrutivos em nossas erupções
pelas fendas deste corpo no qual a pele
dobra-se úmida, anunciando as crateras?   
Em nós também contam apenas as quinas
e buracos. Montanhas, fiordes, precipícios. 
Felizes as bactérias inquilinas de nossa pele, 
como cegos que apalpassem um elefante, 
só parte do planeta doente em que vivem.  
E já nem sei se maldito ou bendito esse mar
de lava sobre o qual dançam nossos pés, 
as erosões e tremores que expõem fósseis
onde buscamos pelo elo perdido da espécie, 
aclare a desgraça de cambalearmos bípedes.  
Eu culpo o eixo torto da Terra, as estações
incansáveis, essa rotina do brota-e-murcha, 
a neve, seu despenca-e-derrete, eito e horto
da boca que troveja quando queria ensolarar, 
une ríspida os dentes e morde ao mal lamber. 


Referências

Sobre Hernán Cortez e a conquista pelas “letras”: Mago Glantz. La desnudez como naufragio. Borrones y borradores.  

Sobre Jasper Johns: Marjorie Perloff. “Watchman, Spy, and Dead Man: Johns, O’Hara, Cage and the “Aesthetic of Indifference”. <http://marjorieperloff.com/essays/watchman-spy/>  

Sobre In the mood for love: Fernando Guerreiro. Imagens Roubadas. <https://enfermaria6.squarespace.com/fernando-guerreiro-noites-na-enfermaria> 

Sobre a cadela sem Logos e a voz: Tiago Guilherme Pinheiro. “Espectros sonoros: voz, corpo e democracia em Ricardo Domeneck”. <http://dx.doi.org/10.1590/2316-4018529>

Pedro Braga Falcão, Os Poemas Fingidos

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Pedro Braga Falcão
Os Poemas Fingidos

Poesia

Enfermaria 6, Lisboa,
fevereiro de 2018, 168 pp.
Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha  

12€

Como comprar
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Nunca souberam mais nada:
inventar que o dia continua.
Decerto solenes procissões, enredos,
preces e votos, e bairros ermos
fizeram para consagrar à ilusão
a luz que ela nunca teve.
Para quê? Para que um dia
pudessem fingir que o sol não importa.


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Pedro Braga Falcão

Pedro Braga Falcão é um poeta nascido de pais açorianos no final do século passado. Talvez por isso ensine línguas clássicas e história das religiões, e insista em traduzir poesia com mais de dois milénios. Como a infância e a juventude foram passadas numa aldeia que ninguém conhece, teve tempo para se tornar também músico. Como seria de esperar, é violetista e especializou-se em música antiga. Por vezes tenta manter-se no seu século ou, em alternativa, no sítio em que vive. A literatura que escreve e publica têm-no ajudado nesse sentido, sem grande sucesso.

Tadeusz Rożewicz, Como é bom

Tradução de Anna Kuśmierczyk e João Ferrão

Como é bom Posso colher
mirtilos na floresta
pensava
não há floresta nem mirtilos

Como é bom Posso deitar-me
à sombra da árvore
pensava as árvores
já não dão sombra. 

Como é bom Estou contigo
o meu coração bate tanto
pensava o homem
não tem coração