Hemofilia, Banda Gástrica, Hotspot, Tundra, Crucifixo

Hemofilia

Passar-te nos dedos os papéis em corte.
Deglutir sincera na direção oposta.
Por um triz levaste nos bolsos um esboço sorrindo.
Uma quase neblina que em raiz perdura.

Estancar-te na ferida que abres ainda,
na generosa oferenda cálida do magma,
antes de explodir em sabor bélico,
difuso e torto na mucosa efervescente.

Repete-me:
um corpo nunca é apenas um corpo
é sim, um choque em cadeia numa auto-estrada coberta de chuva,
a um domingo.


Banda Gástrica

 

A minha mão. medida exacta do teu ombro.
Áspera felicidade na certeza da tua ausência,
Oscilo no meu daltonismo emocional.Meia lua ou meia laranja.

Metade sejas de algo que nem início tem.
Estimo distâncias em que te encontro.
Expiro em dobro só para me fazer leve.
Só para me antecipar em nervos e artilharia.
Sempre agitando o já mexido pensamento.
Mostrando em cores o que te escondo.
Opacidade de te ter imaginado e sabido.
Tenaz como o vento soprando violento nos ouvidos.
Tentando o que não torna e não tem conserto.
Organizando-te as entradas e as saídas.
Retocando o tom neutro das tuas investidas.
Nunca desistindo das melodias ocas.
Até que me distraia o ranger dos dentes na noite rouca.


Hotspot

 

Sinto-me basáltica.
Concreta, no brilho escuro das profundezas afectivas.
As vísceras cristalizam,
num processo de compressão das memórias.
Movimentam-se em gestos compactos,
activando a justa melodia de uma voz primária,
instrumento de afinação absoluta.

Passo as mãos a seco pela topografia do texto.
É interrompido e fosco. Pungente como um bom vinho.

Não há nada tão revelador como a intensidade da luz,
batendo certeira no vidro de uma janela imaginada.
Todas as tardes são ecos desses diálogos originais.
As palavras tropeçando vertiginosamente na vergonha partilhada,
convertem-se num excesso de saliva difícil de engolir e percutir. 

Negociamos um acordo, argumentado com diferentes graus de silêncio.
A ausência de palavras,
não nos liberta da análise inútil das nuances e significados.
Planta-se segura no ventre,
transformando a elasticidade dos tubos digestivos em ímpeto tectónico. 

Nasce assim uma história que inverte a sequência natural do processo narrativo.
A distância aumenta durante o ritual de aproximação dos personagens.
A partilha torna-se inversamente proporcional à intimidade.

Procuro conforto na geometria,
nas leis fundamentais da física,
no borbulhar quente e fecundo da geologia.
Calo os psicanalistas e as suas cantigas hipnóticas de adoração à força centrípeta.

Não há nada de errado com a geografia protetora das ilhas.

Já me deitei outrora, em atitude esperançosa,
caindo sôfrega na sua barriga áspera,
tendo acordado saciada, coberta da magma e frutos doces,
dádivas que incham carinhosamente o estômago,
maciando os cabelos da criança que responde pelo nosso nome.  


Tundra

Altivo mastro descendo-me em espaços.
Cortante vento que cristalino nos sussurra cegos.
Oscular-me-ias se eu fosse por aí gritando?
Rasgando-te o baço pela acidez do gesto e do pranto?
Dar-me-ias a mão pela mão, no segredo de seguir-te?
Anoiteço aos pedaços na ilusão de ser mais dócil.
Imaginada e fértil como nos contos da estremecida infância.

Irei exposta até ao precipício que me inundará calma.
Rimando perdida a virgindade no teu aclamado perjúrio.
Mostrando a cor aos mastros que me afundam verdadeiros.
Arrepiada na pele que me baptiza pelo tom e pelo sexo.
Nunca ser o cordeiro em cujo sangue banhamos a diferença.
Dar-me nas mãos o compromisso em detrimento do desejo.
Acordar.
Dispersar-me em pólen doce, frágil magma de correntes seguras.
Encontrar um equilíbrio forte na certeza de uma perfeita tradução.


Crucifixo

 

Quero escrever-me divertida.
Rir alto por cada movimento esquivo.
Por cada passo que te aproxima da porta.

Rir.

Quero ser divertida. Mas não sou.
Já vasculhei em cada canto,
no cesto da roupa suja.
Não há aqui qualquer vestígio de ameaça ou excitação.
Qualquer gargalhada perdida que não uma que solto para ser menos

Vazia.

Se não fosses frustração eu ria.
Mas não queria rir de escárnio.
Queria que as gargalhadas me perfurassem como longas pernas,
Daquelas que em cócega semicerram a barriga,
Numa embrulhada de vísceras quentes e doces
Como um olhar novo estampado num banco de cozinha
Longo e trôpego como o primeiro passo de uma criança.

janeiro

exercício: rodear de qualquer forma a hora da partida
deixando de parte o momento em que os outros se afastam

recordar: não pedi para ser pontual nem para sufocar com a multidão

ansiar por dezembro não deixa nada por adivinhar nem ninguém no encalço
as horas envelhecem e espero que todos os outros partam
deixo-me ser janeiro enquanto houver quem prefira correr até ao final dos dias

Peso líquido

Inquilino na casa
Suspeita, me convenço
Aos poucos
De que, até ver,
Não terá isto passado
De palavras se jogando
À melhor de uma
Delas, a
Estraçalhando
Até perder os sentidos.

Se asseguram aqui
Serviços mínimos. Inventando
Afinal, formas e sinais
Vitais.

Pode
A tensão absoluta
Da verdade, espantar
A origem do olhar?

O engano a tracejado,
Sinalizado de invisível,
No limiar de toda expressão,
Disposto nas entrelinhas
Da coisa pensada.

A solidão não é flor
Que se cheire,
Nem se dá por ela
Ao olhar, é sim
A fria maioria de um
Coração claro
Partindo a direcção.

A natureza
Desta natureza, é imagem
Fora de forma,
Extravagante mão
Quase firme,
Em parte lume
Em toda a parte.

O erro, sério, ainda
Assim postiço, é implantado
Na boca materialista,
Beneficiando em vida, de algum
Corpo perigoso, intruso,
Com princípio
Sem fim.

Dirigido, o objecto
É parte do problema e
Padrão do hábito.

Alguém exagerou, assim
Dizendo, o lugar de olhar,
O lado sintético,
O grau contrário,
De tudo determinado.

Pouco mais longe é
Do motivo a disposição
Integral do texto
Entregue um nada
Aos impulsos da forma. Negativo
Aberto à mão,
No paramento da existência.

Não entra aqui
Luz natural seja
A hora qual ela for,
Em mim enfraquecendo
As paisagens.

Lábios armados
De inocência, residindo
À pele
Na longa multidão
De tons tentados.

Assumo. A intimidade do vocábulo
Repugna, dilacera o mais
Vulgar no espaço
Sóbrio do verso.

Percepções insignificantes,
Consequências
Da intenção.

Enquanto pedras, acreditamos
Para lá do mundo
Matemático. Nada
Pode ser verdade
Inquestionável.

O silêncio é um canto
Estreito, no conforto
Da rua. Vagueamos
Pela espessura mínima
Do céu, aos contrários.

Sobre a fé, há toda
A nomenclatura da neurose,
A negação
De todas as nações, um erro
Encantador. Com belas palavras
O medo canonizou
O perigo no mundo. O maculando
Impressivamente, de impressão
Digital.

Em mudando a hora,
É tempo de
Interrogar os vestígios
Desse animal
De pó. Há
Quem lhe chame
Instinto.

Um conceito entendido
Pelo objecto.

Sacrificava o destino por
Algum brinquedo herdado
De outra existência.

Em profundidade
Uma imagem sofre
Seu grão,
Seu encantamento
Ao ruído, aumentando
Sua obediência
À vida.

Um lume
De fracassos.

Inverter num Deus
Doentio,
A armadilha
Da sua forma
Exacta.

De insuportável grau,
O eco de um
Homem da música
Conformado pela
Sujidade das notas,
Se expressando por
Admirável degeneração,
Se tocando a si
Mesmo.

Estamos acordados para
O instinto
Do suicídio.

Os poetas
Podem mentir
Com as mãos,
Mas nunca sobre
A múltipla compreensão
Das condições adversas,
Sintagma climactérico,
Desta nova realidade
Proposta. Lançam pois,
Contra a ousadia
Da seriedade, a mais volátil
Das armas, dando sua palavra
De honra.

Demasiado; Mano-a-mano

Demasiado

 

O amor é o amor.

3 horas a assar Douro afora,
Nick Cave como leitmotiv,
num setembro quente e negro.
No futuro não deviam haver chuvas de setembro.

Primeira incursão pelo quarto alto
de cassetes gastas e solidão de gesso,
demasiado para ti, suponho.

Naquela tarde corpos se derramaram,
elástica a tarde virou noite
e a noite virou-nos de dentro para fora,
escaldados e gastos como aqueles charros.

Haveríamos de escrever algumas vezes mais
as cartas semanais, a pele a estalar por dentro.

O amor é o amor,
e depois do amor?


Mano-a-mano

 

Arneirós, uma e meia da tarde de calor infernal.
As filhas do caseiro à volta do caldo no seu lado
da casa enquanto cozo as minhas batatas.
Tenho estado de costas para o céu,
interrompendo para de tempos a tempos ir fumar
à janela que ampara o precipício.
Paredes meias, no meu melhor silêncio, meto-me
nas conversas e alegra-me a cabeça dos outros.
Mas a minha presença tem de ser assim: 
furtiva, ágil no ouvido e leve nos dentes para não
me fazer notar e a este olho negríssimo. 
Nesse dia, prometi, e tenho tentado, de resto, 
não voltar ao mano-a-mano desenfreado,
calafetar o coração e beber das fontes mais puras.

Reinventar a autoridade

Alain Finkielkraut e Frédéric Gros, 2017

Alain Finkielkraut e Frédéric Gros, 2017

I

[O problema da autoridade parece oscilar entre a obsolescência e uma necessidade urgente, inadiável da sua recuperação. Mas na verdade, o enfraquecimento da velha autoridade acrítica abre a possibilidade de se encontrarem novas formas autoridade justificadas e reconhecidas, isto é, formas de exercer o poder de maneira legítima e fecunda (é isso que diz Alain Renaut, no La fin de l’autorité, 2004, quando escreve que o desaparecimento da autoridade traz menos uma catástrofe do que “interrogações inéditas sobre as práticas do poder”, tendo isto que ver com o próprio “futuro da democracia, simultaneamente como regime político e como cultura”). Parte da entrevista que traduzo, em modo paráfrase, abaixo prende-se com a relação entre a edução e a autoridade (um verdadeiro problema nacional em França), há muito formulada, em dicotomia, por John Locke (os adultos têm o direito, e o dever, de completar o que falta às crianças, e isso valida a autoridade) e Jean-Jacques Rousseau (cuja palavra de ordem foi: “deixai a criança ser criança”). Portanto, a questão filosófica que hoje se coloca, porque a linha rousseauniana venceu a lockiana, é a de como numa sociedade de iguais se pode limitar suficientemente, e eficientemente, o acesso das crianças e dos adolescentes a essa mesma igualdade? Talvez por isso uma nova racionalidade crítica deva questionar as fragilidades sociopolíticas da falta de autoridade, ao mesmo tempo que denuncia a adesão acrítica, a submissão consentida (muitas vezes amada). Em Resumo, precisamos de uma crítica (prolongando Immanuel Kant) que desenvolva a autonomia individual sem cair em novos individualismos. Por enquanto mantém-se a incerteza em relação às boas estratégias para a coligação social (uma junção que não esmague o diverso), é que hoje continua a velha dissimetria hierárquica, justificada pelos mais estapafúrdios lugares comuns (do tipo: “a velhice é um posto”), acarinhados como se se tratasse de um património reflexivo.]

II

Alain Finkielkraut, o conservador lúcido, Frédéric Gros, o libertário não anarquista, foram entrevistados pela Philosophie magazine em Agosto de 2017, questão de se regressar ao problema da autoridade no início do ano lectivo francês.

Como definir a autoridade? Começa por perguntar, Finkielkraut. Não basta ser competente, é preciso também, diz o pensador, direiteza (droiture), clarividência e firmeza, “uma certa nobreza”. F. Gros refere, por sua vez, que a ideia de autoridade tem pelo menos duas dimensões: ausência de violência física e poder indiscutível, a autoridade impõem-se como não-negociável. Ora, a segunda característica colide com o ethos democrático igualitário, onde tudo é discutível. Por isso, para funcionar, a autoridade necessita de ser reconhecida como legítima por quem obedece. Não se trata, pois, e isto é muito importante para F. Gros, de “fonte de legitimidade”, mas de “reconhecimento” e de “funcionamento”. [ele prolonga o funcionalismo do pós-modernismo francês, não fosse ele um distinto foucauldiano]. Refere que habitualmente a desigualdade esmaga, excepto no caso da admiração, quando se admira alguém (o filósofo, um músico, um político...) isso impele à superação. Face à autoridade legítima nunca nos sentimos submetidos, tentamos antes “estar à altura”. Mas, acrescenta o pensador, poucos são realmente dignos de admiração. [mal seria termos de admirar meio mundo].

Finkielkraut subscreve a ideia, mas acentua o erro de se identificar o mestre com o opressor. A seu favor, evoca a teoria da autoridade de Hannah Arendt: obrigação das gerações mais velhas inserirem os neófitos no mundo, exercendo responsavelmente a autoridade. Contrariando a visão de Pierre Bourdieu, e outros soixante-huitardes, para quem qualquer acção pedagógica era objectivamente uma violência simbólica imposta por um poder e uma cultura arbitrárias. [Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, La reproduction. Éléments pour une théorie du système d’enseignement, 1970]. Infelizmente, para Finkielkraut, a instituição escolar preferiu Bourdieu a Arendt. Assim, à força de expulsar a “violência simbólica” da escola, esta tornou-se um “campo de ruínas”. Mais, não haverá transmissão nem, portanto, civilização possível, se toda a hierarquia for considerada arbitrária e denunciada como repressiva.

Frédéric Gros, é menos pessimista, embora destaque que a educação vive no paradoxo, presente em grandes pedagogos como Montaigne, Locke ou Kant, de carecer da obediência para desenvolver o espírito crítico. A emancipação da criança, do adolescente só aparece depois de ele ser disciplinado (para aprender a ler, ter conhecimento do mundo, pensar metodicamente...). É por isso que, defende Gros, a disciplina e a liberdade não são incompatíveis, é necessário passar por uma camada de disciplina para depois a superar. Finkielkraut concorda, mas destaca o ataque que sofreu, e continua a sofrer, a assimetria de papéis na escola, dando-se aos alunos o mesmo poder do que aos professores. Muitas vezes isso faz com que a opinião dos alunos valha tanto como a dos professores, a ignorância eleva-se ao patamar da sabedoria, ou pelo menos vive num registo de impunidade.  

Gros recupera então o velho lamento que desde Platão (República) considera a autoridade morta. Haveria uma espécie de “essência nostálgica da autoridade”, concluindo-se que a autoridade é uma forma de poder que resiste, paradoxalmente, porque se lamenta de já não ser aquilo que foi. Finkielkraut discorda, ele próprio ainda não conseguiu ler Ulysses, mas não atira as culpas para o livro ou a sociedade, foi ele que não teve a confiança suficiente para o fazer. Pelo contrário, hoje o modo de reagir a uma impossibilidade semelhante a esta é atacar a obra nas redes sociais, estamos na era da irrisão perpétua. Mas será isso, pergunta-se Finkielkraut, realmente desobedecer à autoridade? F. Gros, aproximando-se de Finkielkraut [estranha-se que dois pensadores aparentemente tão distantes concordem tantas vezes durante esta entrevista], defende que uma desobediência a priori é tão contra-produtiva e perigosa como fazer da obediência uma virtude incondicional. Em boa verdade (epistemológica e ética), deve saber-se sempre porque se obedece ou desobedece.

O mais importante é, pois, definir os estilos de obediência (conformismo, submissão, subordinação, consentimento...) e de estudar os seus limites. Para Gros, o escândalo surge quando nas relações políticas se instaura a sobre-obediência. O que devia acontecer sempre, seguindo o que diz Aristóteles no livro III da Política, era o cidadão, mesmo quando obedece, fazê-lo de livre vontade, ordenando a si próprio a obediência. Finkielkraut retoma o lema Iluminista de aprender a sentir, pensar e agir autonomamente, este lema deve manter-se. Mas para isso é preciso formar e educar. A violência nas periferias parisienses, as incivilidades mais do que comuns na sociedade francesa, tantas vezes contra os professores, mostram que a humanidade começa pela inibição, não pela autonomia. [Relembre-se que Aristóteles escrevia para a elite virtuosa ateniense].

Finkielkraut evoca uma sondagem de 2016 onde os 83% dos inquiridos pensam que a “autoridade é um valor demasiadas vezes criticado”. Gros responde que isso não conduziu à vitória de Marine le Pen [extrema direita], prova de que há uma real diferença entre autoridade e autoritarismo. Aliás, para este autor as políticas autoritárias destroem a autoridade, visto assentarem apenas no medo, esquecendo-se do reconhecimento. E nestas políticas está a democracia, ou algumas formas de democracia perfeitamente compatíveis com o autoritarismo. Veja-se o caso de Vladimir Putin ou Recep Erdogan, sistematicamente reeleitos. É por isso que Gros defende uma “democracia crítica” ou uma “dissidência cívica”. É que para desobedecer autenticamente, para lá da simples economia da indignação, é preciso “compreender as causas éticas que me fazem obedecer, obedecer agora e sempre.”