Gonçalo M. Tavares, entrevista ao Le Monde

Entrevista de Gonçalo M. Tavares ao jornal Le Monde, publicada no dia 30 de novembro de 2024 (https://www.lemonde.fr/livres/article/2024/11/30/goncalo-m-tavares-ce-qui-m-interesse-est-l-idee-d-ecrire-comme-verbe-intransitif_6421753_3260.html). Tradução de Victor Gonçalves.
Um ângulo hermenêutico que se desvia ligeiramente da nossa oligarquia intelectual.

Com um ouvido atento, escuta as nossas perguntas, depois a interpretação do seu tradutor, Dominique Nédellec. Com gestos rápidos, desenha palavras numa folha de papel — «Bíblia», «Biologia», «Talho» — circunda-as e traça linhas para ligar os termos entre si ou a símbolos obscuros. Ao sairmos do encontro com Gonçalo M. Tavares nos escritórios parisienses da sua editora, Viviane Hamy, lamentámos não ter roubado os esquemas que resumiam a conversa numa espécie de linguagem científica. Mas esse sentimento dissipa-se. Diferentemente do escritor português, filho de uma professora de matemática e de um engenheiro, nós não temos o condão matemático. É melhor ficarmo-nos pelas suas palavras e pelos seus livros, cujo poder evocativo e clareza profunda se assemelham a fábulas que atravessam os séculos.
Ao longo de cerca de vinte anos, este professor de epistemologia da Universidade de Lisboa construiu uma obra prolífica e multifacetada, estruturada em torno de dois ciclos: O Reino, uma exploração do mal no século XX, inaugurada com Um Homem: Klaus Klump e A Máquina de Joseph Walser (2003 e 2004; ed. Viviane Hamy, 2014), e O Bairro, iniciado com O Senhor Valéry e a lógica (2002; reedição de Viviane Hamy, 2008), a que se juntou uma dezena de habitantes — entre os quais O Senhor Brecht e O Senhor Calvino (2004 e 2005; ed. Viviane Hamy, 2009 e 2010). Cansado de constatar, no animado café lisboeta onde trabalha, como «todos pensam da mesma maneira, mesmo em cidades democráticas onde existe liberdade de pensamento», Tavares quis criar uma cidade imaginária habitada por «verdadeiros indivíduos». Em 2021, foram reunidos numa obra de 800 páginas (Le Quartier, editado por Viviane Hamy).

À volta destes dois ciclos romanescos gravitam contos, poesia, teatro e publicações que o antigo estudante de física, desporto e arte não associa a qualquer género literário. «O que me interessa, e Roland Barthes falava muito sobre isso, é a ideia de escrever como verbo intransitivo», confessa. A resposta à pergunta «O que é que escreves?» é uma redução da linguagem. Muitas vezes, agarra-se ao mesmo tempo a um livro científico, um livro de arte ou uma coleção de contos. «Neste momento, leciono “corpo, cultura e pensamento contemporâneo”. Avanço aos saltos e ao acaso, admite. Tenho uma relação perversa com a epistemologia, porque gosto muito da contradição, da ambiguidade. É aí que reside a força do pensamento».
A dos seus livros baseia-se no facto de não buscarem a verdade, mas em «aumentar as interpretações possíveis». É o caso de O Osso do Meio, o seu novo livro, que completa o ciclo de O Reino. Tal como em Jerusalém ou Aprender a Rezar na Era da Técnica (2004 e 2007; publicados por Viviane Hamy, 2008 e 2010), encontramos nele um mundo em guerra, habitado por indivíduos rebeldes ou consumidos pela loucura, pelo medo, pela sede de controlo; um exame do mecanismo das suas almas. Escritos há muito tempo, os livros que compõem O Reino foram revisitados pelo autor «de forma infinita» antes da publicação, o que explica a sua dimensão, nomeadamente o último, que passou muitos anos a reduzir. «Queria fazer um livro no osso, explica Gonçalo M. Tavares. Escrever como se tivesse uma faca, como se fosse o talhante a escrever. Como se esses cortes servissem para abrir a pele, para a levantar, para ver o essencial».
No início, Gonçalo M. Tavares não fazia ideia do que significava o “osso do meio”. O que sabe é que, como sempre, este texto nasceu de uma imagem, que acabou por ausente do livro. «Há alguns anos, em Lisboa, ouvi um russo a cantar no metro, recorda. Sem perceber uma palavra de russo, comecei a chorar. Havia uma tristeza incomensurável nas suas canções». Essa tristeza persegue-o no desenvolvimento da cidade de O Osso do Meio. Os ricos vivem nas alturas; os pobres, na cidade baixa. Restam-lhe quatro personagens nos braços: um assassino, uma adúltera, um voyeur e um carniceiro. O traço comum: carregam dentro de si «uma espécie de tristeza inicial».
O escritor está convencido de que nascemos tristes, o choro do bebé que sai do ventre da mãe não tem que ver com o choque do ar nos pulmões. Nascemos tristes e depois esquecemo-nos. «Mas, por vezes, como nas minhas personagens, lembramo-nos», diz. Gonçalo M. Tavares segue-os, curioso com essa «tristeza inicial», sem causa aparente, próxima da malignidade.

Por que razão a personagem Kahnnak mata em O Osso do Meio? Decidir que é por causa da sua origem social ou dos maus-tratos sofridos na infância seria «dizer que ela não é como nós», ignorar que um empregado normal pode, um dia, esfaquear o seu patrão. Pois «trabalhar atrás de uma secretária das 9h00 às 17h00 não nos torna menos instintivos», acrescenta o professor.

Como prova, partilha uma cena estranha observada ao pequeno-almoço num hotel confortável. Muito rapidamente, o pão acabou. «Eram talvez vinte pessoas para três pães», explica, já divertido com a anedota. Quando chegaram mais dois pães, os clientes lançaram-se sobre a comida, ignorando os mais velhos. «É em situações como esta que o ser humano se revela, quando falta o essencial. Não se trata de uma questão de classe social, de força ou de fraqueza. Trata-se de manter uma forma de delicadeza, mesmo em situações extremas. A delicadeza é, sem dúvida, a caraterística humana mais extraordinária». E a mais misteriosa.
«O Osso do Meio reenvia para aquilo que nos resiste, mas...», começa a dizer o romancista. A frase do tradutor fica suspensa. Tavares volta a pegar na caneta e desenha o esquema de um corpo. De seguida, os seus olhos castanhos fitam-nos por detrás dos óculos. Continua. «O Osso do Meio é um pouco o que todos procuramos. É o que nos daria a nossa estabilidade, o que seria também a causa do que nos acontece. Para um freudiano, o osso do meio talvez fosse a infância». Falemos da sua, em Luanda. Nos anos 60, o pai foi chamado a Angola, então colónia portuguesa, para construir uma ponte. Tem «memórias orgânicas» do país que deixou com a família aos 5 anos. Tavares recusou dois convites do governo angolano por discordar da sua política. «Agora penso em voltar, confidencia. Vai ser um regresso emotivo e acredito que vou chorar muito». As lágrimas sufocam-lhe a voz. Fala das imagens que os pais lhe transmitiram, dele, muito jovem, dançando. «Há qualquer coisa de não-racional em Angola», acrescenta. Algo que toca o autor, que se interessa pela «parte não burguesa do cérebro, essa que não se senta num sofá. A parte que anda, salta e às vezes cai». A parte imprevisível.
Habitualmente, Gonçalo M. Tavares não fala da sua família, diz, mas faz questão de nos contar, para terminar, como o seu pai, nascido em Portugal no seio de uma família muito pobre, pôde prosseguir os estudos graças à insistência dos seus professores. Sem eles, ele próprio não teria começado a escrever, aos 14 anos, na «enorme biblioteca» do pai. Sem este «momento decisivo», tema preponderante na sua obra, as suas filhas, que estudam matemática no Reino Unido, nunca teriam dado «esse salto».

Crítica a O Osso do Meio (L’Os du milieu, trad. francesa Dominique Nédellec, ed. Viviane Hamy, 160 p., 19 €).

Quatro personagens — Kahnnak, Maria Llurbai, Albert Mulder e Vassliss Rânia — e Klaus Klump, que faz uma aparição, vivem numa cidade nunca nomeada, assolada pela guerra e pela fome. Um deles é um assassino; o outro uma adúltera, «demasiado bela» e sem dúvida amaldiçoada; Albert é um médico que observa secretamente os seus jovens pacientes; o último é um talhante. Enquanto percorrem a cidade, o romance atravessa as suas biografias, disseca os seus pensamentos, ausculta as suas pulsões e instintos.
Porque é que matamos? Como é que resistimos às nossas piores inclinações? Qual é o custo da sobrevivência? O Osso do Meio sobrepõe esta escala humana à da cidade, observada como um organismo vivo. Na parte superior, os nobres bridam com champanhe; na parte inferior, os pobres vivem de restos.
Vinte anos após a publicação em Portugal de Um Homem: Klaus Klump e A Máquina de Joseph Walser, Gonçalo M. Tavares encerra o ciclo de O Reino com O Osso do Meio. Num estilo depurado, o autor desenha, com a precisão de um biólogo, o funcionamento de uma sociedade ordenada, minada pela guerra.
Mas a ciência não sabe tudo — pelo menos, ainda não. Não explica porque é que esta música, difundida nos cafés, entristece tanto as personagens, o que é que ela reaviva nelas. Este mistério essencial leva o autor a escrever — e nós a lê-lo, sempre com a mesma intensidade.

Um excerto em francês

«Kahnnak à présent se souvient, vaguement, d’avoir lu un récit de voyage dans un pays pauvre, en d’autres temps : le mendiant loqueteux s’approchant du visiteur qui écrit ; il boite, ce mendiant, il marche comme mû par une audace terrible, un courage musculaire, il se traîne, tend sa main décharnée et dit : “Je suis vivant, donnez-moi quelque chose !”
“Je suis vivant, donnez-moi quelque chose” ; voilà la phrase qui définit les hommes, leur essence, ce qui reste une fois qu’on a tout retiré, ce qui reste de ce qui est instinctivement humain, jusqu’au dernier moment, une fois que toutes les couches sont tombées – les phrases et les gestes élégants –, quand la faim surgit et que la survie devient la seule urgence des hommes qui, dès que le premier danger se manifeste, oublient leurs belles intentions : “Je suis vivant, donnez-moi quelque chose” (…). » p. 26

Eros, Amargo e Doce de Anne Carson (Edições 70, 2024)

Anne Carson escreveu Eros, Amargo e Doce, agora publicado nas Edições 70 com tradução minha, em 1986. É um livro que faz parte da mesma tradição que é iniciada por Platão em O Banquete: é um discurso sobre eros. Enquanto discurso sobre eros é um objecto inesperado: abre com uma imagem que surge num conto de Kafka, “O Pião,” sobre um filósofo cujo passatempo mais obsessivamente cultivado era tentar deter em plena rotação piões lançados por crianças que ele costumava observar no seu tempo livre, e encerra-se pedindo ao leitor que imagine uma cidade onde o desejo deixou de existir. Sendo um texto relativamente breve, a cronologia aqui revisitada é extraordinariamente vasta: de Safo, que terá sido a primeira pessoa a descrever eros como amargo e doce, a Barthes, passando por Homero, Sófocles, Stendhal, Virginia Woolf, Sartre, Foucault, Velázquez. O fio condutor do ensaio são os dois extremos de eros, a amargura e a doçura. Pensei durante muito tempo, e talvez ainda o pense, que Eros, Amargo e Doce seja a melhor introdução breve que conheço à cultura grega antiga. Quase todos os autores importantes são aqui discutidos do ponto de vista de um aspecto central do seu pensamento, eros. Por outro lado, ao tentar contar a história de eros enquanto conceito vemos os movimentos de progresso e retrocesso que marcaram o modo como ele foi inventado no mundo grego. Da voz arcaica de Safo que o vê como polarizador da alma humana, que o vê como coisa que nos divide e dividindo-nos nos revela, ao mesmo tempo destruindo e deixando viver, até ao melodrama que se procura sempre prolongar nessa forma de proto-telenovela que são os romances gregos que datam já da era cristã, o ensaio conta uma história possível do modo como o desejo é fundamental à vida.

Anne Carson é uma das pensadoras mais inclassificáveis do nosso tempo. As suas associações são tão inesperadas quanto essenciais. Enquanto poeta, Anne Carson raramente tem intuição para o que é a música de um verso. O que é poético na sua poesia é normalmente da ordem da elipse. As suas elipses são tão certeiras que às vezes nos deixam sem ar. É, através de uma elipse, cujo tempo é a velocidade aguda da poesia, que podemos unir, por exemplo, um homem que abre um chapéu de chuva negro numa planície ao deus dos mortos, Hades, no Hino Homérico a Deméter. O que une um gesto feito num dia do século XX numa planície gelada de um continente que não é a Europa ao deus dos mortos tal como pensado por uma inteligência arcaica talvez do século VI a.C.? É neste tipo de associações que a poesia e a prática de ensaísta de Anne Carson se cruzam. 

Eros, Amargo e Doce é, então, um ensaio que se apropria de uma maneira de pensar específica da poesia. Abre com Kafka e tem qualquer coisa de kafkiano. Por exemplo, quando para falar da condição paradoxal de eros, Anne Carson recupera uma imagem de um fragmento perdido de uma tragédia de Sófocles e essa imagem permite uma investigação de um estado paixão como análogo à condição do gelo nas mãos de crianças. A princípio é um prazer bastante novo, mas não é possível continuar a segurá-lo sem que ele se derreta. O instante do gelo derreter e o paradoxo da resposta, de não poder largar, repetem a condição paradoxal de eros, o amargo e doce que dá título ao poema. Uma das reflexões mais estruturais do livro é uma crónica da forma como a introdução da escrita, no momento em que é inventada, muda a nossa relação com o pensamento, com a privacidade, com os próprios sentidos. Publicamos abaixo um excerto, sobre eros, princípio e revelação. Acidentalmente, é também sobre a distância que separa a filosofia da sofística (Sócrates é uma espécie de deus ex machina neste ensaio).

Como Sócrates a conta, a tua história começa no momento em que Eros entra em ti. Essa incursão é o maior risco da tua vida. O modo como reages é um índice da qualidade, sabedoria e decoro do que está dentro de ti. Conforme reages, entras em contacto com o que está dentro de ti, de forma súbita e alarmante. Entendes o que és, o que te falta, o que podias ser. Que é este modo de percepção, de tal maneira diferente da percepção normal que é melhor descrevê-lo como lou- cura? Como é que, quando te apaixonas, parece que de súbito estás a ver o mundo como ele realmente é? Uma atmosfera de conhecimento flutua sobre a tua vida. Pareces saber o que é real e o que não é. Algo te eleva em direcção a um entendimento tão completo e claro que te torna jubilante. Esta atmosfera não é um delírio, segundo a crença de Sócrates. É um olhar para baixo através do tempo, para coisas que conheceste em tempos, tão surpreendentemente belas como o olhar do teu amante (249e–250c).

O ponto no tempo que Lísias apaga do seu logos, o momento de mania quando Eros entra no amante, é para Sócrates o único e o mais importante momento a confrontar e compreender. «Agora» é uma dádiva dos deuses e um acesso à realidade. Compenetrares-te do momento em que Eros olha para a vida e entenderes o que está a acon- tecer na tua alma naquele momento é começar a entender como viver. O modo como Eros assume o controlo é uma educação: pode ensi- nar-te a verdadeira natureza do que está dentro de ti. Assim que o vislumbras, podes começar a tornar-te isso. Sócrates diz que é o vis- lumbre de um deus (253a).

A resposta de Sócrates ao dilema erótico do tempo é, então, a antí- tese da resposta de Lísias. Lísias escolhe suprimir o «agora» e narrar inteiramente a partir do ponto estratégico do «então». Do ponto de vista de Sócrates, riscar o «agora» é, em primeiro lugar, impossível, é uma impertinência do escritor. Mesmo que fosse possível, significaria perder um momento de um valor único e indispensável. Sócrates propõe, em vez disso, que se assimile o «agora» de tal modo que este se prolonga por uma vida inteira e para lá dela. Sócrates inscreveria o seu romance no instante do desejo.

Anne Carson, Eros, Amargo e Doce, Edições 70, 2024.

Podcast Café Filosófico sobre a pós-verdade

Texto de divulgação: «No próximo café filosófico, discutiremos o problema da verdade. É um problema porque não é evidente que a verdade exista, o seu valor não é unívoco e, entre outras coisas, parece ter perdido o poder de cativar.

Recordaremos as críticas de Platão aos sofistas: um idealismo fundamentado na ideia de verdade — ainda que apenas acessível para alguns — contra o relativismo e a eloquência de um pragmatismo sofístico avant la lettre. Passaremos por Nietzsche e o seu perspetivismo, orientado por um desejo de veracidade que relativiza a verdade universal, incluindo a verdade científica. Continuaremos com os jogos de verdade e a parrésia — retomada dos cínicos gregos e de Sócrates — de Michel Foucault. Terminaremos com Claudine Tiercelin, uma filósofa francesa a meio caminho entre a filosofia continente e a filosofia analítica, e o seu último livro La Post-vérité, ou le dégoût du vrai (A Pós-verdade, ou o nojo do verdadeiro).
Nesse trabalho, Tiercelin apresenta algumas razões pelas quais muitos, atualmente, sentam repulsa pelo verdadeiro e indiferença pela verdade. Preferimos, diz a autora, acomodar a realidade (que é mais do que um conjunto de factos objetivos acessíveis individualmente) às nossas crenças, em vez do contrário. Por isso, negamos ou desvalorizamos a ciência, preferimos factos alternativos, consumimos fake news, tememos o que é sério, tornamo-nos impostores ou vítimas de imposturas. Em muitos aspetos, o mundo da pós-verdade difere do mundo orwelliano, mas, em ambos, rompe-se com as relações entre linguagem e realidade.
Para regressarmos ao reino da verdade, devemos, então, aceitar que há valores éticos nos valores epistémicos. Devemos reconhecer a importância de cultivarmos as virtudes epistémicas e, com Bertrand Russell, a necessidade de basear a política na verdade. Reanimar uma vontade de metafísica para esclarecer o sentido de realidade e enfraquecer o poder dos factos alternativos.»

Caminhar na floresta

Pombares, trás-os-montes, 2 de novembro de 2024

Caminhar. Imaginar uma República dos Viventes. Ter a noção e a coragem de nos sacrificarmos para nos igualarmos a um carvalho. Não basta abraça-lo. Muito menos cortá-lo e, depois, elogiar as brasas portentosas da lareira. É preciso respeitá-lo, como se respeita o vizinho da frente de quem gostamos. Ser um transfuga de espécie. Superar o humanismo, um dos poucos «ismos» imune à razão crítica, kantiana e pós-kantiana. Ninguém se preocupa com o seu grau de impostura.
«Obedece aos sentidos», dizia Feuerbach. Mais atual do que a atualidade, após um século e meio a venderem-nos a ideia de um progresso imparável. Há até quem se diga, sem qualquer sombra de dúvida, «progressista». Mais atual, dizia, do que a «exaltação do banal». Democratizar por baixo.
Numa floresta, depois da adaptação à potência da vida, experimenta-se uma vertigem horizontal. Sem esperança, sem receio. Um instante prolífico, mais vibrante do que perfurante. Um clarão, sim, mas um clarão lento.
A biodiversidade é quase só um conceito. «Meninos, vamos falar de biodiversidade». Como se fala da descoberta do fogo. Sabemos, desde sempre, que «Não é meia noite quem quer», mas por que razão amar os outros seres vivos como nos amamos ao espelho, aos espelhos, deve ser algo demasiado grande para nós?
Estamos obcecados pela economia da atenção: business, com certeza. Mas também uma forma de escapar ao apocalipse do vazio (À Espera de Godot). Em ambos os casos: «preparar-se para futuro nenhum».
Caminhar numa floresta, sem esperar alcançar uma clareira, ter a certeza de que o finito contém o infinito. Os anjos não descem do céu, emergem da Terra.
Esqueçamos a ode ao homem de Sófocles. Levemos às últimas consequências o evangelho negativo de Bartleby («I would prefer not to»). Como uma folha no outono, que, após o esplendor cromático, se transforma em estrume que fecunda a Terra.
E nós, dia após dia, a boxear no vazio. Como o guarda noturno do museu que desconhece o valor da coleção que vigia.
Os adolescentes, preocupados com o power dressing. Os adultos, viciados na economia do lamento. Pedro Mexia, interessado «pelo mergulho em si mesmo». Eu, a querer apagar o «mesmo». Polícia de pleonasmos.
Fernando Pessoa, a indisciplinar as almas. Marc Augé, a mapear «não-lugares». Derrida, que jogava ténis para se equilibrar no patamar social ao qual a sua filosofia poética o catapultou, definindo, com milhares de palavras, a sua «mythologie blanche». Eu, a admirar os franceses por resistiram à a(c)tualização da escrita. A imaginar, com Derrida a espreitar com cima do meu ombro, uma forma de escrever que não se relacionasse com a oralidade. Uma escrita que fosse o que era, e não o que significasse.
Eu a caminhar na floresta, cada vez mais fundo, cada vez mais pleno, cada vez menos eu. Como o mundo de um homem feliz é diferente do de um infeliz, escreveu o infeliz Wittgenstein.

Fermentações

Trincar as romãs abertas

tocadas pelo orvalho –

manhã de Outubro.

 

Antes do longo sono

as folhas aproveitam

o último Sol.

 

Terão também emigrado

as rãs do poço? –

verde silêncio.

 

São agora os únicos

moradores do poço –

peixes cor-de-laranja.

 

Quem terá à noite

deixado diamantes

sobre as couves?

 

Florescem agora

as flores de alecrim –

folhas caídas.

 

Sobre o verde musgo

brilha o sol –

manhã de Primavera?

 

Pedra sobre pedra

sonho sobre sonho –

a universal queda.

 

Como flores abertas

as romãs

ao sol orvalhado.

 

Ignorando a roupa estendida

a borboleta

chega ao alecrim.

 

Vinda das pequenas mãos

a primeira oferta

é uma flor de alecrim.

 

Onde foram as montanhas

que vi

ao amanhecer?

 

As montanhas que vi

ao amanhecer

onde agora?

 

A mimosa secou

chegou à rocha

ou à hora.

 

As uvas esperaram

a chegada de longe

agora secam na videira.

 

Na pipa de castanho

o vinho novo

aos poucos adormece.

 

No pipo de castanho

o vinho novo –

não tardam as castanhas.

 

No dedo queimado

pulsa a lembrança

do pequeno descuido.

 

Ao lado da vinha nova

a minha nova vida

e eu.

 

Para uma próxima volta

seca ao sol

a dorna.

 

Canta o galo –

há horas

as carícias da bebé.

 

Pequenino toque na couve –

gotas de orvalho

como estrelas dançarinas.

 

Lenha queimada

no ar da vila –

anoitecer de Outono.

 

Acordam as lareiras

da vila –

manhã de Outono.

 

Ainda à sombra

da videira

uvas e moscas.

 

Não cheguei a tempo

das amoras –

vinho na barrica.

 

Túmulo de pedra

quebrado

pelo arcaico progresso.

 

Como a juventude

é agora o mosto

apenas uma memória.

 

Cães à solta

nas ruas da vila –

liberdade ou abandono.

 

Lava-se a pipa

à sombra

do fantasma do negrilho.

 

Onde ficou a juventude

da vizinha

que vem das compras?

 

Na mão da bebé

o trevo

tem outra sorte.

 

No colo da avó

prova o mundo

a bebé jardineira.

 

No monte

vestígios da infância

cobertos de musgo.

 

Enquanto componho um haiku

o velho carteiro

lavra um olival.

 

À beira deste lago temporário

o silencioso eco

de quem me acompanhou.

 

Quanto muito

seremos ecos

uma pegada ilegível.

 

Na companhia das moscas

e do silêncio

despeço-me deste Sol.

 

Em cima desta fraga

volto a ser

inteiro.

 

Antes do longo inverno

uma última visita

da primavera.

 

São estas as ondas

que procuro

nos estrangeiros mares?

 

Torre de Dona Chama

 

Uma a uma

acordam as chaminés

da aldeia.

 

No monte

retalho dourado –

manhã de Outono.

 

Ao meu colo

dorme a bebé –

alguém corta lenha.

 

Folhas caiem

cabelos empalidecem

dorme e cresce a bebé.

 

Lenha cortada

bebé acordada –

Sol de meio-dia.

 

Sobre o livro do mestre

a chupeta

aguarda o despertar.

 

A carrinha do pão

chegou –

aldeia reunida.

 

À sombra da figueira

o avô

colhe cogumelos.

 

Pergunta-me o nome

dos dióspiros

ainda verdes.

 

Antes que o orvalho

evapore

lavo os olhos.

 

Dorme ainda a aldeia

ou manhã quente –

chaminés sem fumo.

 

Preferes o ruim?

“Não! Gosto de dar

O melhor aos outros.”

 

Nas couves orvalhadas

o Sol da manhã –

memórias e nostalgia.

 

“Ao descer deste caminho

sente-se a brisa

como no mar.”

 

“Valha-me deus”

grita a beata –

será penico entornado?

 

Contra o vidro da janela

a vespa asiática

dá uma cabeçada.

 

Folhas amarelas

e roupa estendida –

Sol de Outono.

 

Numa ilusão de infinito

fundem-se três cores –

anoitecer de outono.

 

Rodeado de crucifixos

hoje neste quarto

durmo sozinho.

 

Cidões

 

Dissipa-se aos poucos

a neblina –

dia de meditação.

 

Em breve secarão

estas malaguetas

à lareira.

 

Como um marmelo maduro

a bebé ao colo –

tarde de Outono.

 

No tanque da roupa

o cheiro a sabão

lava-me os cabelos brancos.

 

Torre de Dona Chama

 

Outubro 2024